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O direito de recorrer em liberdade e o Estatuto da Criança e do Adolescente

1.Introdução

O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, ao julgar o HC 84078/MG, que o acusado em ação penal possui o direito de recorrer para os Tribunais Superiores, em liberdade, salvo se presente circunstância que torne necessária a decretação da prisão cautelar.

Em suma, a Suprema Corte entendeu não ser lícita a execução da pena, antes do trânsito em julgado da condenação, exceto quando presente circunstância concreta que autorize a aplicação da prisão provisória.

Por outro lado, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, no art. 198, VI, que o recurso de apelação será recebido, em regra, no efeito devolutivo, demonstrando que a medida sócioeducativa há de ser cumprida, independentemente do trânsito em julgado da decisão que a aplica.

Posto isso, indaga-se: o direito de recorrer, em liberdade, deve ser a regra, nos feitos regidos pelo Estatuto da Criança e Adolescente?


2.O HC 84078/MG e a mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal

O Pretório Excelso possuía entendimento sedimentado, segundo o qual os recursos extraordinário e especial, como não possuem efeito suspensivo, não seriam impedientes ao cumprimento imediato da pena, mantida, ou aplicada pelo Tribunal de Justiça, ou Tribunal Regional Federal.

Nesse sentido, eis os seguintes precedentes [01]:

"EMENTA HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. PENDÊNCIA DE JULGAMENTO DOS RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIO. OFENSA AO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA: NÃO-OCORRÊNCIA. PRECEDENTES. 1. A jurisprudência desta Corte é no sentido de que a pendência do recurso especial ou extraordinário não impede a execução imediata da pena, considerando que eles não têm efeito suspensivo, são excepcionais, sem que isso implique em ofensa ao princípio da presunção da inocência. 2. Habeas corpus indeferido".

(HC 90645, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. MENEZES DIREITO, Primeira Turma, julgado em 11/09/2007).

"1. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de ser possível a execução provisória da pena privativa de liberdade, quando os recursos pendentes de julgamento não têm efeito suspensivo. 2. Não configurada, na espécie, reformatio in pejus pelo Tribunal de Justiça do Paraná. A sentença de primeiro grau concedeu ao Paciente "o benefício de apelar" em liberdade, não tendo condicionado a expedição do mandado de prisão ao trânsito em julgado da decisão condenatória. 3. Habeas corpus denegado". (HC 91675, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 04/09/2007)

"(...) III - O recurso especial e o recurso extraordinário não possuem efeitos suspensivo, razão pela qual não impedem a execução provisória da pena. IV – (...)" (HC 85616, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 24/10/2006).

Em síntese, esgotadas as vias recursais ordinárias, a expedição do mandado de prisão era mero e obrigatório consectário.

Todavia, o Plenário do Tribunal modificou o referido entendimento, ao julgar o HC 84078/MG, cuja relatoria coube ao Min. Eros Grau, assentando que "a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar" [02].

A Corte Constitucional explicitou, ainda, que "a ampla defesa não se pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive de natureza extraordinária. Por isso, a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição ao direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão" [03].

Logo, se o acusado estiver solto e não houver necessidade de decretação de medida cautelar pessoal, não é lícita a expedição imediata de mandado de prisão, após o julgamento do recurso de apelação.


3) A excepcionalidade do efeito suspensivo recursal, na aplicação de medida sócioeducativa

A aplicação de medida sócioeducativa possui finalidade, eminentemente, pedagógica, considerando-se, nos termos do art. 6°, do ECA, a condição peculiar do adolescente [05], como pessoa em desenvolvimento.

Traz-se a cotejo a lição de Wilson Donizete Liberati [06]:

"A medida sócio-educativa é a manifestação do Estado, em resposta ao ato infracional, praticado por menores de 18 anos, de natureza jurídica impositiva, sancionatória e retributiva, cuja aplicação objetiva inibir a reincidência, desenvolvida com finalidade psicológica – educativa"(grifo nosso).

Logo, é imperativo que, verificada a procedência da representação ministerial, a medida sócioeducativa, em regra, seja, de plano, cumprida, propiciando ao adolescente o acompanhamento psico-pedagógico necessário ao seu desenvolvimento, haja vista que, em tal fase da vida, as experiências adquiridas repercutem, sobremaneira, na formação da personalidade.

A noção de celeridade, na aplicação das medidas socioeducativas, expressa no art.198, IV, do ECA, decorre do postulado, inscrito no artigo 5º, n.5 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São Jose da Costa) [07], que prevê uma maior rapidez no curso de ações que envolvam menores, a fim de garantir celeridade no tratamento.

Veja-se, a propósito, trecho do voto do Min. Napoleão Nunes Maia Filho, no RHC 21.908/SP [08], in verbis:

"(...) Não causa demasia assinalar que, as medidas sócio-educativas, além de seu caráter sancionatório, em resposta à sociedade pela lesão decorrente do ato infracional praticado, possuem a função pedagógica de reintegrar o jovem em conflito com a lei.

Destarte, na Justiça da Infância e da Juventude, a resposta rápida às necessidades sócio-educativas dos menores infratores constitui fator essencialmente associado à possibilidade de recuperação e proteção de um adolescente em choque com as normas positivadas; não foi por acaso, que o ECA previu apenas o efeito devolutivo ao recurso de apelação. (...)".

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Adite-se que a medida sócioeducativa deve cessar, quando a pessoa alcançar vinte e um (21) anos de idade (art. 121, §5°, do ECA), ou, acaso a penalidade seja de internação, quando cumprir o prazo máximo de três anos, conforme determina o art. 121, §§ 2º e 3º do ECA. Logo, é ostensiva a necessidade de executar-se, com a máxima brevidade, a medida sócioeducativa, fixada na sentença.

Vale repisar que a execução imediata da medida, sob comento, tem como escopo, em última análise, acarretar benefício psíquico e educativo àquele que cometeu o ato infracional, por meio da adoção de providência, necessária ao melhor desenvolvimento do adolescente.

Nesse giro de intelecção, convém frisar que, adotada, como regra, posição, segundo a qual o cumprimento da medida sócioeducativa será posterior ao trânsito em julgado do decisum que a impôs, haverá a possibilidade de utilização de recursos, meramente, protelatórios, objetivando o alcance da idade de vinte e um (21) anos.

Destarte, "não havendo nenhuma justificativa para o recebimento da apelação no efeito suspensivo, deve-se aplicar a regra [do art. 198, VI, do ECA] (...)" (RHC 21.380/RS [09], Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 04/12/2008, DJe 02/02/2009).

Em síntese, "(...) o alegado risco de dano irreparável ou de difícil reparação [não] é o inerente a toda apelação, ou seja, possibilidade de provimento. Tal periculum não quis o legislador evitar, caso contrário a regra seria o duplo efeito da apelação (...)". (HC 82.813/MG [10], Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 09/08/2007, DJ 01/10/2007 p. 338)


5.Conclusão

Diante dos fundamentos lançados, entendemos que o princípio da presunção de inocência não resta vulnerado, em decorrência da regra, concernente à aplicação imediata da medida sócioeducativa, consideradas as especificidades da resposta estatal, na Justiça da Infância e Juventude.

Portanto, não deve, concessa venia, ser aplicado, analogicamente, o entendimento, sufragado pelo Pretório Excelso, no multicitado HC 84078/MG, por contrapor-se aos preceitos da norma menorista.

Por conseguinte, é, plenamente, constitucional o art. 198, VI, do ECA, de modo que, o efeito suspensivo do recurso de apelação é situação excepcional, somente, cabível, quando houver possibilidade concreta de dano irreparável ou de difícil reparação.


Notas

  1. Disponível em <www.stf.jus.br> Acesso em: 24 de setembro de 2009.
  2. Disponível em <www.stf.jus.br> Acesso em: 24 de setembro de 2009.
  3. Disponível em <www.stf.jus.br> Acesso em: 24 de setembro de 2009.
  4. Disponível em <www.stj.jus.br> Acesso em: 24 de setembro de 2009.
  5. Às crianças, como é cediço, são aplicadas as medidas de proteção, catalogadas no ar. 101, do ECA.
  6. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 7. ed. São Paulo: Malheiros, p. 101.
  7. Os menores, quando puderem ser processados, devem ser separados dos adultos e conduzidos a tribunal especializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento.
  8. Disponível em <www.stj.jus.br> Acesso em: 26 de setembro de 2009.
  9. Idem
  10. Disponível em <www.stj.jus.br> Acesso em: 26 de setembro de 2009.
Sobre os autores
Thomás Luz Raimundo Brito

Assessor de Desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia. Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal da Bahia.

Themis Saback

Advogada. Mestranda em Segurança Pública. Professora da Faculdade Baiana de Ciências-FABAC. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Gama Filho, Pós graduada em Direito Público pela Universidade Potiguar. Lecionou na Universidade Federal da Bahia e no Curso Damásio de Jesus- Unidade Salvador.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Thomás Luz Raimundo; SABACK, Themis. O direito de recorrer em liberdade e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2283, 1 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13602. Acesso em: 22 nov. 2024.

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