Sumário: 1. Aspectos introdutórios; 2. Polícia Administrativa; 3. Contornos essenciais da ordem pública; 4. A defesa da paz e a funcionalidade da força pública; 5. A sistemática legal para o emprego das Forças Armadas; Epílogo.
1.Aspectos Introdutórios
A linha evolutiva do Estado de Direito, marcada por períodos de instabilidade institucional e uso abusivo da força, culminou com o surgimento da dicotomia entre poder militar e poder civil. A subordinação de um ao outro no âmbito da organização política permitirá se fale, conforme o caso, em regime militar ou em regime civil, com distintos reflexos na subsistência da própria democracia. Os Estados contemporâneos, em sua grande maioria, adotam regimes civis, cabendo normalmente ao Chefe de Estado o controle das Forças Armadas, com maior ou menor influência do Parlamento ou de outros órgãos colegiados (v.g.: Conselho de Defesa). [01]
Não parece haver dúvidas quanto à constatação de que o princípio democrático, delineado pela participação popular na escolha dos governantes e pela contínua renovação do poder, é de todo incompatível com o regime militar. Afinal, não há democracia sem liberdade, e regimes militares, de forma nitidamente antagônica, são caracterizados pelo uso da força ou pela manipulação do sistema de modo a afastar o pluralismo político, o que inevitavelmente conduz à tentativa de perpetuação de um indivíduo ou de um grupo no poder.
Princípio democrático e regime militar, em verdade, encerram premissas antinômicas, não sendo possível a sua coexistência, conclusão clara na medida em que inexistem mecanismos aptos a apurar a responsabilidade daqueles que controlam a força e estão no poder graças a ela. [02] A força armada, como assinalou Benjamin Constant [03], não é um poder constitucional, mas é um "terrível" poder de fato.
Não obstante os riscos que oferece, praticamente todos os regimes democráticos têm feito uso do poder militar, o que, por vezes, tem se mostrado especialmente relevante na garantia da soberania e na preservação do próprio regime. O importante, no entanto, é que o poder militar não abandone o seu papel coadjuvante, subjugando o poder civil. Além da imposição de restrições operacionais, afastando a possibilidade de atuação de ofício e exigindo a subordinação a agentes democraticamente legitimados, já se sustentou, inclusive, que o contingente das Forças Armadas deveria ser periodicamente renovado. Montesquieu [04], por exemplo, defendia que as forças armadas deveriam ser o povo e ter o mesmo espírito do povo, o que exigia a responsabilidade por seus atos e um serviço temporário, por prazo não superior a um ano. Esse padrão, à evidência, dificilmente poderia ser alcançado por Estados que contem com grande contingente, o que inviabiliza renovações periódicas de tamanha extensão. Enfraquecer a organização e a especialização das Forças Armadas, por outro lado, não parece ser a melhor solução para mantê-las subordinadas ao regime.
O melhor caminho, ao que parece, é investir na solidez das instituições democráticas, estimulando a ideologia participativa de modo a criar um ambiente sociopolítico infenso a rupturas. Com isto, as Forças Armadas prestarão um relevante serviço para a preservação da paz no próprio território brasileiro, medida de caráter excepcional e que será objeto de algumas reflexões nessas breves linhas. Para tanto, analisaremos alguns aspectos do poder de polícia estatal e da concepção de ordem pública que lhe é inerente, premissas que serão integradas à funcionalidade da força pública no Estado de Direito, permitindo verificar em que situações será possível o emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem.
2. Polícia Administrativa
A "polícia administrativa", também denominada "poder de polícia" ou "limitações administrativas à liberdade e à propriedade", não possui contornos propriamente finalísticos, mas instrumentais, estando essencialmente voltada à garantia da ordem pública (ou interesse público [05]). Não designa propriamente uma estrutura orgânica, mas, sim, uma atividade que impõe restrições à esfera jurídica alheia de modo a preservar a harmônica coexistência do grupamento e a permitir que o Estado execute as atividades que lhe são características. Num Estado de Direito, essa tensão dialética entre liberdade e autoridade deve ser sempre resolvida com os olhos voltados à advertência de Waline: "a liberdade é a regra, a restrição por medidas de polícia a exceção". [06]
Na identificação das estruturas estatais de poder competentes para o exercício da polícia administrativa, deve ser observada a divisão de competências da Federação brasileira. Essa atividade pode assumir contornos preventivos ou repressivos: no primeiro caso, o objetivo é prevenir distúrbios à ordem pública, fim normalmente alcançado com a regulamentação administrativa de certas matérias e com a fiscalização de atividades potencialmente lesivas; no segundo, por sua vez, busca-se reprimir os distúrbios à ordem pública, o que é alcançado por meio da coerção, inclusive com o uso da força pública. [07] Como conseqüência dessas atividades, ainda será possível a aplicação das sanções cominadas pela ordem jurídica. Regulamentação, fiscalização e coerção são as formas de manifestação da polícia administrativa.
A existência do poder regulamentar está associada à concepção de que outras estruturas estatais de poder podem especificar, com imperatividade, as providências a serem adotadas para a integração ou o aperfeiçoamento dos comandos legais postos pelo legislador democraticamente legitimado. Como disse Chapus [08]: "Se não há senão um único legislador, há uma pluralidade de detentores do poder regulamentar". Trata-se de manifestação especial do princípio da legalidade, permitindo concluir que o facere estatal pode assumir contornos concretos, o ato administrativo típico, ou gerais, aqui se enquadrando o regulamento. [09] A generalidade é uma característica indissociável dos regulamentos, apontando para a impessoalidade dos seus comandos. [10] Observados os balizamentos estabelecidos pela lei, os regulamentos podem impor restrições à esfera jurídica alheia, exigindo a prática de atos comissivos (v.g.: definindo requisitos de ordem sanitária a serem observados pelos estabelecimentos que comercializem gêneros alimentícios) ou omissivos (v.g.: obstando a venda de produtos que não observem as especificações sanitárias). No âmbito da polícia administrativa, os regulamentos, como dissemos, assumem contornos eminentemente preventivos.
A fiscalização, como instrumento preventivo de proteção à ordem pública, ocupa uma zona intermédia entre a regulamentação e a coerção. Em outras palavras, reflete a atividade administrativa que verifica o cumprimento dos comandos legais e regulamentares, e, em caso de inobservância, adota as providências necessárias, quer à imediata cessação da ilicitude, o que faz incidir a coerção estatal, quer ao sancionamento dos respectivos responsáveis, o que pode ocorrer nas instâncias cível, criminal, política e administrativa, nesse último caso com a aplicação das denominadas "sanções de polícia" (v.g.: multa). Existem, ainda, atos administrativos intimamente ligados à atividade fiscalizatória desenvolvida pelo Poder Público, indicando a observância das normas legais e regulamentares incidentes no caso (v.g.: a concessão de licença ou autorização para o exercício de certa atividade).
A coerção, em sentido lato, pode ser vista como um mecanismo de execução forçada dos atos administrativos, isto em relação àquelas situações que comportem providências dessa natureza (v.g.: apreensão de mercadorias comercializadas sem autorização legal), não quanto às demais (v.g.: atos meramente declaratórios). A partir da auto-executoriedade inerente aos atos administrativos, que independem de chancela por outro Poder, [11] permitindo que a Administração os implemente tão logo identifique a presença dos requisitos legais que os justifiquem, são adotadas as medidas necessárias à sua efetividade. É importante ressaltar que não se identifica uma linearidade entre os sistemas jurídicos quanto à matéria, havendo grandes oscilações sobre a possibilidade de execução forçada dos atos administrativos (v.g.: enquanto o direito espanhol [12] a reconhece como princípio geral, o direito francês só a admite em situações específicas, expressamente previstas em lei [13]).
Nem toda situação de fato ou ato voluntário dissonante da lei permitirá que a Administração Pública promova a sua execução forçada (v.g.: a satisfação de créditos da Fazenda junto aos particulares). Num Estado Democrático de Direito, atos dessa natureza devem estar necessariamente amparados pela lei, sendo de todo descabida a realização de intervenções na esfera jurídica alheia à margem de qualquer balizamento estabelecido pelo órgão legislativo competente. A lei, assim, há de definir as ações ou omissões a cargo do administrado e a amplitude da coerção estatal (v.g.: o Código de Águas, em seu art. 33, autoriza a apreensão de equipamento de pesca de uso proibido). [14] À míngua de previsão normativa, ainda que a medida seja conveniente, a tutela jurisdicional, em regra, será imperativa. Em situações excepcionais e que exijam ação imediata da Administração para a proteção de relevante interesse público, a coerção, estando caracterizada a urgência, é igualmente admitida, ainda que não haja previsão legal expressa e não seja possível assegurar o contraditório e a ampla defesa de modo prévio (v.g.: demolição de construção prestes a ruir). [15] Nesse último caso, sobre a Administração recairá o ônus argumentativo voltado à demonstração da correção do seu proceder, arcando o responsável com os excessos que venha a cometer.
Assim, apesar da auto-executoriedade que acompanha os atos administrativos, sendo inerente à regra de competência e à presunção de veracidade que ostentam, a coerção exige um plus. Para que a coerção administrativa seja cabível é necessário que (1º) o comportamento omissivo ou comissivo a cargo do particular decorra, ainda que mediatamente, de imposição legal; (2º) haja inobservância dessa imposição legal; e (3º) estejam presentes, no exercício do poder de polícia, os requisitos de todo e qualquer ato administrativo (competência, forma etc.), em especial que a providência adotada pela Administração, além de necessária (rectius: proporcional [16]), encontre amparo na lei "em seu objeto, em seu alcance e em seu procedimento" [17] (v.g.: interdição de estabelecimento). O ato de coerção, além disso, deve render estrita obediência aos direitos fundamentais, em especial o direito à igualdade, evitando que grupos específicos sejam perseguidos ou privilegiados com a ação do Poder Público, isto sob pena de caracterização do desvio de finalidade.
A coerção, como forma de manifestação da polícia administrativa, reflete o emprego da força para a obtenção de um dado resultado de fato (v.g.: apreensão de mercadorias), que pode consubstanciar a execução forçada de atos administrativos ou de normas jurídicas direcionados a esse objetivo. A dicotomia aqui referida, no entanto, deve ser objeto de um prévio esclarecimento: toda coerção será antecedida por uma decisão administrativa, ainda que verbal e não reduzida a termo, que aproximará a abstração da previsão normativa às especificidades do caso concreto, concluindo pela necessidade de consecução de um fim (rectius: recomposição da ordem pública) a ser racionalmente alcançado. Conquanto o ato administrativo sempre se faça presente na coerção, num caso assume a feição de simples "ordem de execução", refletindo reação instantânea a uma situação de fato dissonante do comando normativo; no outro, tem-se o fluxo normal de um processo administrativo formal, com teses e antíteses, assegurando-se o contraditório e a ampla defesa. [18]
Nas hipóteses de cumprimento de ordem judicial a situação é diversa. [19] Aqui não se tem um ato de natureza administrativa, mas órgãos administrativos garantindo a efetividade de um ato judicial. A polícia administrativa, aliás, não se confunde com a polícia judiciária, atividade voltada à apuração das infrações penais e que busca viabilizar a sua persecução judicial, atuando como órgão auxiliar do dominus littis da ação penal, o Ministério Público ou, se for o caso, o particular, e, num segundo momento, do órgão jurisdicional competente. [20] Acresça-se que a polícia administrativa atua voltada para si própria, ainda que sua atividade possa vir a balizar a apuração de responsabilidades na esfera criminal. Polícia administrativa e polícia judiciária, conquanto sejam atividades distintas, podem ser realizadas pelos mesmos agentes e estruturas orgânicas: o ponto nodal de distinção entre ambas é a existência de uma "infração penal determinada". [21] Além disso, enquanto a primeira é regida por normas puramente administrativas, a segunda também é alcançada por normas processuais administrativas. [22]
Enquanto a regulamentação e a fiscalização possuem um caráter continuado, a coerção é eminentemente temporária, cessando tão logo cesse o distúrbio à ordem pública que motivou o seu aparecimento. Essa tensão dialética entre um status contínuo e outro temporário guarda correlação direta com os conceitos de eficácia e efetividade da norma: enquanto a regulamentação e a fiscalização devem ser deflagradas com a só vigência do comando normativo, a coerção exige um plus, a sua inefetividade, a sua falta de eficácia social.
A forma mais drástica de coerção, não só pelos riscos que enseja, como por sua potencialidade lesiva, é aquela realizada com o emprego de armas de fogo, a cargo da força pública. A coerção armada é medida excepcional, último recurso a ser utilizado. Não há liberdade para o seu emprego; há necessidade. [23] Liberdade haverá, unicamente, para que o agente público, iluminado por ideais morais ou teológicos, não obstante compelido pelas circunstâncias e colocando em risco sua própria integridade física, deixe de utilizá-la para preservar a integridade alheia. Caso a ação armada resulte em danos a terceiros, restará ao autor demonstrar a presença de uma das excludentes de antijuridicidade contempladas na legislação penal.
3. Contornos essenciais da ordem pública
A concepção de ordem pública, cuja preservação é o fim último da polícia administrativa, assume feições nitidamente voláteis, apresentando variações que acompanham os referenciais de tempo e lugar utilizados. Sob o prisma etimológico, o designativo ordem, do latim ordine, sempre estará associado ao conceito de correção, que pode ser analisado em diversos planos, como (1) o normativo, onde ordem se assemelha à lei (ordem jurídica), ou o (2) sociológico, onde ordem aponta para a paz e a tranqüilidade públicas (ordem pública).
Na medida em que tanto a realidade social, como a normatização utilizada para regulá-la, são extremamente cambiantes, apresentando variações conforme a época e o local objeto de análise, é fácil intuir que a essência da ordem pública não permanecerá indiferente a esses circunstancialismos, não sendo uniforme e muito menos invariável. Na definição de Hauriou, [24] "a ordem pública, no sentido da polícia, é a ordem material e exterior considerada como um estado de fato oposto à desordem, o estado de paz oposto ao estado de problemas". Reprime-se o que afeta a ordem, protege-se ou tolera-se o que não a perturba.
No direito francês, a concepção de ordem pública é tradicionalmente formada pela necessidade de manutenção da segurança, da tranqüilidade e da salubridade públicas, [25] o que pouco a pouco vai se ampliando para alcançar a salvaguarda de outros interesses de indiscutível relevância para a coletividade, como o meio ambiente e o patrimônio histórico cultural, [26] ou, mesmo, a dignidade da pessoa humana ou a própria "ordem moral", vedando a realização de condutas que as afetem.
Especificamente em relação à dignidade da pessoa humana, merece lembrança o polêmico Caso Commune de Monsang-sur-Orge (lancers de nain), onde o Conselho de Estado francês decidiu que ela deveria ser vista como componente da ordem pública, justificando que os poderes constituídos adotassem as providências necessárias à sua proteção. [27] Na situação concreta, o Prefeito de Monsang-sur-Orge havia interditado os espetáculos de "lançamento de anão" que seriam realizados nas discotecas da referida Cidade, tendo tomado sua decisão não com base no poder de polícia especial relativo aos espetáculos, mas com base no poder de polícia geral, que se destinava a garantir a segurança do público ou a prevenir eventuais turbações à ordem pública. O Prefeito, no entanto, fundamentou sua decisão no fato de o espetáculo ser atentatório à dignidade humana.
Apesar de a ordem pública ser associada à clássica trilogia segurança, tranqüilidade e salubridade públicas (alcançando, em alguns casos, também a moralidade pública), o Conselho de Estado, pela primeira vez, enquadrou a dignidade humana no conceito. Entendeu-se que o lançamento de anão pelos freqüentadores da discoteca terminava por utilizar, como projétil, uma pessoa afetada por uma deficiência física e apresentada como tal. Assim, a redução do homem à condição de objeto seria manifestamente degradante e atentatória à sua dignidade. [28]
A ordem pública, num sentido mais amplo, alcança não só aquele estado de fato imprescindível à preservação da paz social (v.g.: garantia da segurança pública), como aquelas situações que aumentem a comodidade ou a qualidade de vida do grupamento, fins a serem sempre perseguidos pelo Estado (v.g.: proibição de comércio ambulante na via pública). Em alguns casos, pode alcançar medidas que busquem proteger o indivíduo contra si próprio (v.g.: a obrigação do uso do cinto de segurança), evitando resultados que mediatamente poderiam afetar a coletividade (v.g.: despesas financeiras para o atendimento de acidentados e manutenção de hospitais).
A polícia administrativa está voltada ao restabelecimento da ordem material, com abstração das causas de natureza político-social que podem ter influenciado a sua formação (v.g.: situações de pobreza extrema, políticas públicas equivocadas etc.). Não deve ser motivada por interesses financeiros do Poder Público, [29] ou pessoais da autoridade competente, isto sob pena de caracterização do desvio de finalidade.
Cada quadrante da ordem pública será objeto de proteção por órgãos específicos. Naquilo que diz respeito ao nosso estudo, vale dizer, à segurança pública, identifica-se a atuação dos órgãos de segurança pública e, subsidiariamente, das Forças Armadas. Não obstante a terminologia empregada pela Constituição brasileira de 1988, que admite o emprego das Forças Armadas, no âmbito interno, para a proteção da "lei e da ordem", cremos que a primeira é absorvida pela segunda, sendo possível falar em ordem jurídica ou em ordem pública. Considerando que a ordem jurídica está finalisticamente voltada à garantia da ordem pública, parece claro que esta última noção absorverá todas as demais.