No início do mês adveio a Lei nº 12.037, que de forma inequívoca efetivou a norma prevista no artigo 5º, inciso LVIII da Constituição Federal.
Quando dizemos "efetivou", na verdade, queremos sustentar que a novel norma conseguiu desta vez implementar o preceito constitucional acima asseverado à luz do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana positivado na Constituição Federal, artigo 1º, inciso III.
O inciso LVIII do artigo 5º da CF reza que "o civelmente identificado não será submetido à identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei".
Posteriormente, adveio a Lei nº 9.034/95, que dispõe sobre os meios de investigação às organizações criminosas, cujo artigo 5º consigna que "a identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas será realizada independentemente de identificação civil".
Outra norma que relativizava o direito fundamental de não ser identificado criminalmente, se identificado civilmente, era a agora expressamente revogada Lei nº 10.054/01, que excepcionava tal direito desde que: a) fosse indiciado ou acusado pela prática de homicídio doloso, crimes contra o patrimônio praticados mediante violência ou grave ameaça, crime de receptação qualificada, crimes contra a liberdade sexual ou crime de falsificação de documento público; b) houvesse fundada suspeita de falsificação ou adulteração do documento de identidade; c) o estado de conservação ou a distância temporal da expedição de documento apresentado pelo agente impossibilitasse a completa identificação dos caracteres essenciais do mesmo; d) constasse de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações; e) houvesse registro de extravio do documento de identidade; f) o indiciado ou acusado não comprovasse, em quarenta e oito horas, sua identificação civil.
A partir do dia primeiro de outubro, a única norma que disciplina essa matéria é a norma aqui em comento – pois, conforme já apontado, revogou expressamente a Lei 10.054/01, e o seu artigo primeiro, ao dispor que "o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nos casos previstos nesta Lei", deixa cristalino que tacitamente também revogou o artigo 5º da Lei nº 9.034/95.
A nova norma também facilitou a tão questionável relação de documentos que possuem legitimidade de "identificação civil". Sustentamos isso, pois, como é sabido, tal atributo era conferido a diversos documentos cuja previsão constava em leis esparsas, o que de fato dificultava a constatação de sua veracidade. Podemos citar como exemplos a lei da cédula de identidade e o Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.504/97), dentre outras.
Agora, são considerados como documentos aptos a demonstrar a identificação civil do indivíduo, nos termos do artigo 2º da nova lei: a) carteira de identidade; b) carteira de trabalho; c) carteira profissional; d) passaporte; e) carteira de identificação funcional; f) outro documento público que permita a identificação do indiciado.
Além do rol, o parágrafo único prevê que os documentos de identificação militares são equiparados aos civis.
Importante consignar que muitos servidores públicos que possuíam funcionais que não tinham validade como identificação civil, por possuírem constituição arcaica – eis que elaboradas sem os dados principais de outros documentos, tais como número do registro geral de identificação, cadastro de pessoa física e data de nascimento –, na atual conjuntura tal cártula recebeu "status" de documento de identidade civil, uma vez que se trata de carteira de identificação funcional!
O artigo 3º da norma em comento limita o
direito constitucional previsto no inciso LVIII do artigo 5º nas seguintes
hipóteses: a) o documento apresentar rasura ou tiver indício de
falsificação; b) o documento apresentado for insuficiente para identificar
cabalmente o indiciado; c) o indiciado portar documentos de identidade
distintos, com informações conflitantes entre si; d) a identificação
criminal for essencial às investigações policiais, segundo despacho da
autoridade judiciária competente, que decidirá de ofício ou mediante
representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa; e)
constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes
qualificações; f) o estado de conservação ou a distância temporal ou da
localidade da expedição do documento apresentado impossibilite a completa
identificação dos caracteres essenciais.
A Lei nº 12.037/09 não menciona, como a antiga norma, que o documento em princípio deve ser original, razão pela qual resta cristalina que nada obsta que seja apresentada cópia autenticada do documento, uma vez que possui o mesmo valor que o original nos termos do artigo 232, parágrafo único do Código de Processo Penal.
Conforme afirmamos no início do presente artigo, entendemos que a atual lex vem efetivar o artigo 5º, inciso LVIII da CF, à luz do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, pois não mais se identifica criminalmente em razão do simples indiciamento ou processo do indivíduo por determinados crimes.
Agora, há a necessidade de que seja vislumbrado vício inerente ao próprio documento apresentado pelo indivíduo, o que é justo e, sobretudo, mais digno ao ser, pois, anteriormente, não havia justificativa ética para o fato de identificarmos criminalmente um sujeito processado por roubo e não adotar a mesma conduta com aquele agente que praticasse o crime de evasão de divisas. Onde estava a isonomia na antiqua lex?
Além dos vícios suspeitos inerentes ao documento, outra inovação, importante, já mencionada, diz respeito à análise do caso concreto. Ou seja, caso seja necessária a identificação do acusado, tanto o Delegado de Polícia, tanto a defesa, quanto o representante do Ministério Público, podem representar ao magistrado, que deferirá ou não a medida. A norma permite, inclusive, que o juiz aja ex officio, o que também corrobora para a tese de que o nosso sistema processual é misto, acusatório temperado ou neoinquisitorial [01]!
Mister se faz consignar que o procedimento da identificação criminal, que contempla a identificação datiloscópica e fotográfica e a formalização dos mesmos nos autos do inquérito policial e/ou processo, não sofreu alterações substanciais (artigo 2º, parágrafo único e artigo 5º, da Lei 12.037/09), fora a preocupação do legislador com o indivíduo identificado. Tanto é assim que se afirma que o artigo 4º reza que "quando houver necessidade de identificação criminal, a autoridade encarregada tomará as providências necessárias para evitar o constrangimento do identificado".
Outras inovações trazidas à baila pela norma em comento, que também enaltecem o princípio da dignidade da pessoa humana, dizem respeito aos artigos 6º e 7º, visto que restou vedado a menção à identificação criminal do agente identificado em atestados de antecedentes ou em informações não destinadas ao juízo criminal, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória e, no caso da persecutio criminis administrativa ou judicial não serem efetivadas, por algum fator, como não oferecimento da denúncia, rejeição, absolvição (sumária ou não), é facultado ao agente identificado, após o arquivamento definitivo do inquérito, ou trânsito em julgado da sentença, requerer a retirada da identificação fotográfica do inquérito ou processo, desde que apresente provas de sua identificação civil.
Destarte, entendemos que, em uma análise superficial, até em razão do tempo em vigor da norma, a mesma se encaixou devidamente aos preceitos constitucionais respaldados por um Estado Democrático de Direito, visto que tais premissas efetivam em conjunto aos princípios da inocência, devido processo legal, da respeitabilidade da intimidade e integridade física e moral do indivíduo, todos em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em 04 out. 2009.
BRASIL. Lei nº 9.034, de 03 de maio de 1995. Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9034.htm.Acesso em 04 out. 2009.
BRASIL. Lei nº 11.054, de 07 de dezembro de 2000. Dispõe sobre a identificação criminal e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L10054.htm. Acesso em 04 out. 2009.
BRASIL. Lei nº 12.037, de 1º de outubro de 2009. Dispõe
sobre a identificação criminal do civilmente identificado, regulamentando o
art. 5º, inciso LVIII, da Constituição Federal. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12037.htm>.
Acesso em 04 out. 2009.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, v. I, 3ª edição ver e atual., Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora.
Nota
1 Termo defendido pelo professor doutor Aury Lopes Júnior em sua obra DIREITO PROCESSUAL PENAL e sua Conformidade Constitucional, v. I, 3ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, p. 495.