O direito fundamental de cidadania exercita-se essencialmente através da capacidade que a Constituição outorga ao corpo eleitoral de influir, por meio da representação, na feitura das leis disciplinadoras da vida social (CF: art. 1º, II, e parágrafo único; art. 14, caput).
Kelsen ensina-nos que a democracia é o regime da liberdade, sendo politicamente livre quem se sujeita a uma ordem jurídica de cuja criação participou [01].
A valorização da cidadania, convém frisar, pressupõe a adequada proporcionalidade entre a quantidade de pessoas submetidas ao ordenamento jurídico e o número de seus representantes nas casas legislativas.
Consciente de tais premissas, o Congresso Nacional aprovou a Emenda nº 58/2009. Fez, no texto da Lei Maior, alterações para atender a duas nobres finalidades: reduzir os gastos dos legislativos mirins (nova redação do artigo 29-A) e valorizar o direito fundamental de cidadania, ampliando o número de vereadores, para garantir uma melhor proporcionalidade e legitimidade às representações de nossas Comunas.
Apesar disso, o eminente Procurador-Geral da República e a douta Ordem dos Advogados do Brasil almejam invalidar a iniciativa do Legislativo Federal. Querem adiar para 2012 a eficácia da nova redação do inciso IV, do artigo 29, da Constituição. Argumentam que o inciso I, do artigo 3º, da referida emenda, desrespeitou a anterioridade consagrada no artigo 16 de nossa Carta e interferiu "em eleições já encerradas, pondo todos os municípios do país a refazer os cálculos do quociente eleitoral e partidário", podendo até "trazer à concorrência partidos que não obtiveram lugares anteriormente" [02].
Ao nosso sentir, a alegação é improcedente e não merece acatamento a pretensão dos autores da ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal.
Os motivos da nossa convicção estão nos princípios norteadores da exegese das regras constitucionais. Entre eles, Canotilho inclui o da eficiência, ou máxima efetividade, segundo o qual, "a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê". Assim, "em caso de dúvida, deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais". [03]
Por força do mencionado princípio, o Excelso Pretório, quando desafiado a examinar a constitucionalidade, ou não, de algum dispositivo de nosso ordenamento jurídico, deve evitar invalidar a norma, sempre que for possível lhe emprestar interpretação conforme. Agindo deste modo, prestigia a presunção de constitucionalidade que milita em mercê das leis e emendas aprovadas pelos poderes constituídos.
De outra parte, a interpretação conforme não representa mera regra de hermenêutica. Como frisa o jurista Inocêncio Mártires Coelho, invocando decisão exemplar de nossa Corte Constitucional [04], cuida-se de um autêntico princípio, "de uma diretriz de prudência política, ou, se quisermos, de política constitucional, além de reforçar outros canônes interpretativos, como o princípio da unidade da Constituição e o da correção funcional". [05]
Certamente não contribui para a harmonia entre os Poderes a anulação pelo Supremo Tribunal Federal de deliberações legislativas, quando é possível lhes emprestar sentido adequado ao espírito da Constituição.
Aliás, Canotilho adverte que o órgão incumbido de interpretar a Carta Magna "não pode chegar a um resultado que subverta ou perturbe o esquema organizatório funcional constitucionalmente estabelecido". A correção funcional, ou conformidade constitucional, destaca o mestre lusitano, configura outro paradigma a ser observado "pelo Tribunal Constitucional, nas suas relações com o legislador e o governo." [06]
Todos estes princípios informam o controle de constitucionalidade. Com amparo neles, pensamos que não há motivo para o Supremo Tribunal Federal invalidar o inciso I, do artigo 3º, da Emenda 58, de 23 de setembro de 2009, como pretendem alguns.
Ao inciso I, do artigo 3º, da Emenda 58/2009, o Supremo Tribunal Federal poderá, se não quiser desmerecer o trabalho legislativo do Congresso, conferir interpretação conforme. Basta reconhecer que o preceito não altera o processo eleitoral concluído em 2008. Apenas aproveita seus resultados já divulgados pela Justiça Eleitoral.
Assim, não será necessário mandar refazer cálculos do quociente eleitoral e partidário. Aproveitar-se-ão os resultados alcançados pelas agremiações que conseguiram obter representação nos legislativos mirins. O Excelso Pretório, na interpretação do questionado dispositivo da Emenda, valorizará o direito fundamental de cidadania, preservando a competência legislativa do Congresso, em homenagem ao princípio da separação. Agindo assim, dará maior efetividade à nova redação do inciso IV, do artigo 29 da Constituição República. Dar-lhe-á uma interpretação conforme, determinando aos órgãos da Justiça Eleitoral que empossem, como vereadores titulares os suplentes já diplomados, na quantidade necessária para assegurar o mínimo de representatividade do eleitorado, de conformidade com os parâmetros de proporcionalidade estabelecidos na nova emenda.
Seria a solução mais correta, até porque o inciso IV, do artigo 29 da Constituição, na redação da Emenda 58/2009, não trata de processo eleitoral, mas é regra contida no título destinado à organização dos entes federativos.
Não há por que prejudicar o direito líquido e certo de os vereadores suplentes, que receberam a confiança da soberania popular, assumirem as novas vagas criadas pelo legislador constituinte.
Notas
- Kelsen, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
- Trecho da petição inicial da ADIN, subscrita pelo Procurador-Geral da República.
- Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003. P. 1.224.
- STF: Representação 1.417/DF. Relator Ministro Moreira Alves. RTJ 126/48/72.
- Coelho, Inocêncio Mártires, et al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. P. 112.
- Canotilho, José Joaquim Gomes. Obra citada, p. 1.224.