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Entronizando a novíssima defesa social

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Agenda 23/10/2009 às 00:00

O artigo propõe uma "novíssima defesa social" que visa proteger a sociedade através da mitigação de ameaças, não apenas do crime, mas de todas as formas de vulnerabilidade.

Sumário: 1. Introdução. 2. As Ameaças. 3. A Defesa Social. 4. A Nova Defesa Social. 5. As Ameaças Modernas. 6. A Defesa Social Hoje. 7. A Novíssima Defesa Social. 8. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

Conforme a interpretação filosófica da lei de Lavoisier, na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. A sociedade, como protagonista ativa dessa natureza, tem passado por várias transformações, em razão de influências e de aspirações, que têm origens em necessidades efetivas ou artificiais. Grande parte dessas mudanças ocorre em decorrência de revisões na forma de preenchimento específico das necessidades básicas. Essas modificações, buscadas permanentemente, variando em intensidade no tempo, sempre objetivaram melhorias na qualidade de vida, física e espiritual. Hoje, observa-se uma intensificação de formas de busca dessa qualidade. O ser humano, na substância, qualquer que seja sua coordenada social, quer usufruir da vida, quer viver em paz, em harmonia, de forma serena e confiante. Entendeu e acredita, embora, às vezes, não pratique, que somente na concórdia e no sossego alcançará a plena felicidade. Exatamente por compreender que, no caminho rumo a esse objetivo, há enormes vulnerabilidades por onde fluem inúmeras ameaças, naturais e humanas, as quais, além de barrar sua jornada, chegam a afetar a preservação e a perpetuação da própria espécie, é que os indivíduos se agrupam, buscando instrumentos de proteção adequados às respectivas ameaças. Os mecanismos que se antepõem a essas vulnerabilidades e ameaças têm recebido a denominação de "defesa". Sob a óptica doutrinária, são mecanismos aplicados na proteção de uma Nação (daí, a defesa nacional) e/ou na proteção de uma Sociedade (defesa social).

A expressão "defesa social" surgiu no Direito Penal e, ali, coerente com argumentações contextuais, passou por transformações semânticas, sem perder seus traços originários, basicamente contidos na relação entre "crime" e "proteção da sociedade", propugnando por repressão rigorosa e vigorosa, ainda que, desde o segundo pós-guerra mundial, se fale em "nova defesa social".

Pretende-se, com este trabalho, apresentar uma proposta de uma "novíssima defesa social", entendida como mecanismo de proteção da sociedade através de restrição de vulnerabilidades e da mitigação, não apenas da espécie-crime, mas do gênero-ameaças.


2. VULNERABILIDADES E AMEAÇAS

As vulnerabilidades e as ameaças à preservação e à perpetuação da espécie sempre existiram e o ser humano sempre conviveu com elas, sem grandes traumas permanentes, ainda que houvessem ocorrências traumáticas sazonais, até um passado bem recente. Possivel e minimamente por três razões: a primeira, porque a identificação de vulnerabilidades e a percepção de ameaças eram menores, em virtude de umas terem sua caracterização pouco consolidada e outras se constituirem em peculiares adversidades oriundas da natureza ou de antagonismos entre grupos rivais (mesmo que as guerras tenham tido número maior e a peste negra tenha devastado a terça parte da população europeia, sendo considerada uma das maiores ameaças à sobrevivência do homem já acontecidas); a segunda, porque as incidência, frequência e intensidade de ambas eram pouco pesquisadas, em razão de não terem muita relevância, ensejando que, paradoxalmente, o aspecto subjetivo do ambiente de insegurança não fosse considerado, ao contrário do que acontece hoje em relação à violência urbana; terceiro, porque a população recorria quase que unicamente a um instrumento de proteção, a uma realidade superior, observada a ênfase religiosa, como fonte e antídoto dos males. Assim, por falta de maior conhecimento, certas vulnerabilidades eram ignoradas ou, então, havia uma crença maior no controle e, até mesmo, na ausência de ameaças, o que permitia uma sensação de segurança maior do que nos tempos atuais.

Uma constatação inquietante, entretanto, é que referidas vulnerabilidades e ameaças são, hoje, motivo de grande preocupação – infelizmente, não tão grande ocupação – porque têm afetado o corpo e o espírito, vitimando pessoas, de forma ampla e profunda, como jamais se vira antes. Isso vem ocorrendo em virtude de formas, fórmulas e formatos que, sob a pseudo-inspiração de melhorar as condições e a qualidade de vida pansocial, têm provocado aumento da violência do homem contra o próprio homem, do homem contra a natureza e da natureza contra o homem.

Referidas mudanças nos têm conduzido a duas vertentes. Constata-se aumento vertiginoso do contingente atormentado pela sensação de insegurança, pela síndrome de violência urbana, pela síndrome de próxima vítima, pela ilusão de isotopia 1, quando o indivíduo tem a sensação ou de estar no local onde há uma vulnerabilidade e emerge a ameaça ou de que, no local onde se encontra, irá eclodir uma vulnerabilidade e emergirá ameaça idêntica àquela; em outra vertente, o maior conhecimento sobre vulnerabilidades e ameaças nos tem colocado diante de uma realidade fática que, por muito tempo, nos passou despercebida: vive-se, e sempre se viveu, em um ambiente de insegurança. Não apenas no Brasil, mas em qualquer quadrante do globo. Significa dizer que em nenhuma parte do mundo há o ambiente de segurança cabal, absoluta, advinda da proteção plena, total, tendo-se por fundamento dois fortes motivos: primeiro, porque segurança tem um aspecto objetivo (todas as ameaças devem estar sob efetivo controle) e um aspecto subjetivo (deve haver a crença de que todas estão sob controle, efetivamente), sendo que o ambiente de segurança se instala quando há concomitância desses dois aspectos. Lamentavelmente, isso é absolutamente impossível, exatamente em razão do segundo motivo, ou seja, do inopinado, do imponderável que envolvem determinadas vulnerabilidades e ameaças.

Esse fato não é inerente às ameaças incontroláveis, mas, também, às controláveis que não são controladas, por motivos que não serão aqui discutidos. É de se constatar que, em relação às vulnerabilidades e ameaças, hoje há uma percepção mais acentuada e diagnósticos mais precisos que, acompanhados por angustiante impotência, aumentam a sensação de insegurança. Em eras passadas, populações pouco esclarecidas, então dominadas, escravizadas até, refugiavam-se no misticismo e na resignação. Hoje, as populações são mais esclarecidas e, paradoxalmente, têm refúgios mais frágeis. Se o Estado não funciona, não há para onde fugir.

Pode-se afirmar que, definitivamente, é impossível eliminar todas as ameaças e vulnerabilidades, assim como, infelizmente, há a convicção de que muitas ocorrem, com maior intensidade e mais frequência, em razão de crescentes distopias sociais 2, vale dizer, do mau funcionamento de organismos de proteção social. Daí o surgimento de enormes vulnerabilidades no arranjo social, o que prejudica a prevenção e a sustinência de ameaças realizadas pelos instrumentos de proteção e seus respectivos mecanismos de defesa: da Nação (defesa nacional), da Sociedade (defesa social).


3. A DEFESA SOCIAL

A expressão "defesa social" é secular. Sobre esta secularidade, Marc Ancel 3 salienta que

é de se precisar que pelo menos entre os gregos, somente Platão na realidade distinguiu claramente as concepções que se tornariam as concepções da defesa social... Da mesma forma, Platão se apercebe da idéia de proteção da Sociedade contra os delinquentes perigosos... O direito chinês da antiguidade conteria também traços extremamente curiosos sobre noções de defesa social... O direito muçulmano... havia organizado para o adulto um sistema a que se poderia, de certa forma, chamar já um sistema de defesa social... O antigo direito penal europeu apresentaria, a partir do fim da Idade Média, certas ilustrações das idéias da defesa social... Coube a Adolphe Prins ser o primeiro a formular uma doutrina, senão completa, pelo menos autônoma, da defesa social... desde sua primeira grande obra, Science pénale et droit positif, editada em 1899; mas foi sobretudo em seu livro de 1910, intitulado La Défense Sociale et les transformations du droit pénal, que iria realmente formular a doutrina...; René Garraud já dizia, no início do século (1913), que a idéia da defesa social é muito antiga.

Marc Ancel elenca vários outros fatos e circunstâncias que nos permitem concluir que referida expressão não é recente, variando, ao longo do tempo, as interpretações de conteúdo, sua etimologia. São dele as citações sobre o entendimento preliminar do que seria a defesa social:

Uma primeira acepção bastante comum – se bem que hoje em dia totalmente ultrapassada – consiste em entender por defesa social a proteção da sociedade contra o crime, na medida em que procura obter essa proteção através de uma repressão vigorosa das infrações cometidas... Diversos autores continuaram assim a atribuir ao termo defesa social, unicamente pela comodidade de linguagem, este sentido sinônimo de severidade da repressão... para os positivistas, o termo ‘defesa social’ não explica outra coisa senão o novo objetivo que se deve atribuir à pena, desde que essa não mais se constitua na retribuição de uma falta, segundo os princípios da responsabilidade moral... O conceito de defesa social não implicaria portanto outra coisa senão a sistematização das medidas de segurança...

Jean Constant afirmou... que a escola da defesa social considera que a pena não é mais o único nem o melhor meio de lutar contra a criminalidade, e que preconiza, em consequência, a adoção de medidas de proteção social contra os delinquentes perigosos... Mesmo rejeitando os suplícios do Antigo direito, o direito penal clássico, que se constitui no final do século XVIII, estabelece também, por sua vez, um sistema de penas retributivas. Consiste mesmo, em grande parte, em organizar esse complexo anticriminal num estrito sistema de direito: é então esse sistema de direito encarregado de assegurar a proteção da sociedade contra o crime, isto é, ‘a defesa social’.


4. A NOVA DEFESA SOCIAL

É de se admitir que, efetivamente, a expressão "defesa social" ganhou visibilidade quando a ela se juntaram os vocábulos "nova e/ou moderna", notoriedade com o italiano Filippo Gramatica e o francês Marc Ancel, e publicidade, no Brasil, com o professor Heleno Cláudio Fragoso, em seu prefácio de apresentação, ao público de língua portuguesa, da 2ª edição do livro "A Nova Defesa Social", em que abordava o Movimento de Defesa Social Moderno.

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Dentre outros tópicos, assinala que

surgiu na Itália, nos anos que se seguiram à 2ª Grande Guerra, quando Filippo Gramatica fundou, em Gênova, um Centro de Estudos de Defesa Social (1945)... idéias do próprio Gramatica (‘Pela transformação dos sistemas penais da atualidade em sistemas de educação e tratamento, em relação com a personalidade individual dos delinquentes’)... Em 1949, no segundo congresso (Internacional de Defesa Social), realizado em Liège (França), criou-se a Sociedade Internacional de Defesa Social... A doutrina de defesa social formulada e exposta por Gramatica (e que aparece em seu livro "Princípios de Defesa Social") pretendia excluir toda idéia de pena, bem como de delinquente e de infração, abandonando por completo o princípio da retribuição.

Sobre a Nova Defesa Social, o apresentador esclarece que

libertando-se de exageros insustentáveis, reformulou as idéias fundamentais do movimento, admitindo certos conceitos da teoria clássica do direito penal, que procura submeter, no entanto, a um novo enfoque... concebe a justiça criminal como ação social de proteção e prevenção, caracterizando-se pelo antidogmatismo. Reduz a técnica jurídica ao papel modesto de instrumento a serviço de uma política legislativa racional. Proclama a necessidade de ultrapassar a abordagem puramente jurídico-formal dos problemas, considerando o direito penal parte da política social do Estado.

Das várias lições de Marc Ancel, extraímos:

Percebemos assim que a ciência criminal moderna se compõe,... , de três ramificações essenciais: a Criminologia, que estuda, sob todos os seus aspectos, o fenômeno criminal; o Direito Penal, que consiste na explicação e na aplicação das regras positivas pelas quais a sociedade reage contra o fenômeno criminal; e enfim a Política Criminal, a um tempo ciência e arte, cujo objetivo prático é, em última instância, possibilitar uma melhor formulação dessas regras positivas, e dar diretrizes tanto ao legislador encarregado de redigir a lei como ao juiz encarregado de aplicá-la, ou à administração penitenciária incumbida de traduzir em realidade a decisão do juiz penal... ;... A exposição que se segue e que objetiva unicamente situar essa defesa social como movimento de Política Criminal...; a história das idéias nos apresenta duas concepções principais, fundamentalmente diferentes, da noção de "defesa social": a) a concepção antiga, defendida ainda por muitos, que a limita à proteção da Sociedade através da repressão do crime; b) a concepção moderna, que encontra sua expressão na excelente fórmula adotada pelas Nações Unidas quando da criação, em 1948, de sua Seção de Defesa Social: a prevenção do crime e o tratamento do delinquente. Prevenção e tratamento são,... , as duas dimensões que faltavam à concepção tradicional".

Uma síntese de "defesa social", buscando o resumo apresentado por Marc Ancel:

a expressão foi inicialmente empregada no Antigo direito, e sobretudo à época do direito clássico, como referência à proteção que a pena devia assegurar à Sociedade, seja pela expiação, seja pela intimidação coletiva;... ela ganhou, com os Positivistas, uma significação mais técnica: essa proteção, que se torna o objetivo essencial do sistema penal, devíamos procurar atingí-la deixando de lado toda e qualquer preocupação meramente retributiva e, em todo caso, através de novos métodos. A União Internacional de Direito Penal e os sistemas ecléticos do início do século XX proporcionaram um novo conteúdo a essa noção, destinada, desde então, a uma função preventiva mais definida. Basta agora confrontar a idéia de prevenção especial com a de proteção individual e coletiva, e de sistematizar a função social que se pretende atribuir à defesa social para que surja claramente a significação moderna;... necessário se faz compreender – e reter – que, em suas significações diversas e sucessivas, por defesa social se entende essencialmente o objetivo que se atribui à reação anticriminal, e a maneira como se pretende organizá-la, em função de imperativos deliberadamente aceitos:.. pisamos indiscutivelmente o terreno da política criminal. Mas deve-se igualmente compreender e reter que essa política criminal sócio-humanista deve-se construir ou, se preferem, estruturar-se distinguindo-se dessas duas posições extremas que consistem, uma, em basear a reação anticriminal num instinto primitivo de defesa; a outra, em situá-la, deixando de lado o homem, ser racional, e à margem do sistema legal, expressão de toda sociedade civilizada. É neste sentido que a defesa social, para cumprir a missão que lhe compete na reconstrução do mundo – e do seu direito –, deve saber se separar resolutamente das doutrinas vizinhas para se tornar, na plenitude da significação do termo, uma nova defesa social.


5. AS AMEAÇAS MODERNAS

Passaram-se mais de sessenta anos que teve início o Movimento da Moderna Defesa Social. O mundo transformou-se, o sistema de vida modificou-se! Valores e regras sociais se alteraram (e continuam a se alterar). Desde antes da regra de ouro cristã, passando pelo imperativo categórico kantiano, desaguando no ideal civilista e na pregação de Martin Luther King "o homem deve ser avaliado pelo conteúdo do seu caráter", se os propósitos sociais têm fácil compreensão, hoje têm efetivação cada vez mais difícil. As ameaças, nos afetando fisicamente e nos amedrontando, numa terrível exponencial, adquiriram novos contornos e matizes. Em atenção a essa avassaladora expansão das ameaças, surge a Policiologia (ciência cujo objeto material é o homem e cujo objeto formal são os instrumentos de proteção e os mecanismos de defesa), que entendeu razoável distribuir as ameaças em cinco grandes grupos, as ameaças-tronco: a exclusão social, a criminalidade, os desastres, a interrupção de serviços essenciais e as comoções sociais. Observe-se que as ameaças-tronco têm um caráter de permanência, de inerência ao ambiente em que se vive, sendo variável sua ocorrência sazonal, que dá clareza à frequência e à intensidade com que ocorrem.

A mais premente ameaça ao organismo social brasileiro é, sem dúvida, a violência, bipartida em violência da EXCLUSÃO SOCIAL e em violência da CRIMINALIDADE, sem controles efetivos, em cujo embate o governo brasileiro, de há muito, vem sendo o perdedor. Os produtos são marginalizados e marginais, como resultados da marginalização e marginalidade4, que não são, necessariamente, interdependentes ou intercomplementares, mas são questões que, certamente, fluem de duas enormes vulnerabilidades brasileiras: a vulnerabilidade socioeconômica e a vulnerabilidade civil,, respectivamente. O número de miseráveis diminui lentamente e os índices de violência têm apresentado números extremamente preocupantes.

Em relação à EXCLUSÃO SOCIAL, observa-se que, em razão de sua própria existência, o Estado, através de órgãos específicos, está permanentemente desenvolvendo esforços, visando a instalação de um clima de convivência harmoniosa e pacífica. Para tanto, realiza trabalhos de inserção social (preparação para o convívio social) e reinserção social (correção de desvios).

A inserção, através da difusão e estímulo à prática, seja da compreensão e protagonismo de direitos sociais, seja do acatamento e obediência aos deveres sociais

A reinserção social abrange atividades destinadas a minimizar ou eliminar situações que levam um grande contingente a viver à margem social. Esse contingente é representado pelos marginalizados e por marginais. Insiste-se: marginalizados são indivíduos à margem dos direitos sociais e todo trabalho, de que são destinatários, tem como foco o moral e visa à reinclusão social; marginais são indivíduos à margem de deveres sociais e o trabalho realizado com eles e para eles, pela sociedade política ou pela sociedade civil organizada, ou por comunidades isoladas, tem como foco a Moral e visa à reintegração social.

Se há uma grande massa de excluídos, se há um grande contingente de desintegrados sociais

Tende-se a um consenso de que o intranquilizador quadro da exclusão social, que agrava o fenômeno da marginalização, é um dos vetores da marginalidade. Uma das razões, ratifica-se, seria a distopia social ou funcionamento anômalo de órgãos de proteção social, com destaque para os vinculados à educação, verdadeiro calcanhar de Aquiles. Os programas de inclusão social, visivelmente assentados em fundamentos assistencialistas deficientes ou ineficientes ou insuficientes, não conseguem reverter a situação, com a velocidade e intensidade desejáveis, visto que preenchem necessidades pontuais. Os fatores geradores da exclusão social não são considerados, não são corrigidos, isto é, as causas e os efeitos, físicos e emocionais, que deveriam ter tratamento macro, são tratados mais no varejo, aumentando a área da causalidade, a área da criminalidade. Reconheça-se que os "bolsa-qualquer coisa" e benefícios previdenciários efetivamente transferem renda, porém em patamar mínimo, enquanto os serviços prestados são terrivelmente ruins.

No Brasil, a injustiça na distribuição de renda e o descompasso entre a justiça social e fiscal, conforme Yves Gandra Martins, podem levar à rejeição social, ou algo do gênero, o que, sem dúvida, é potencialmente perigoso.

Quanto à CRIMINALIDADE, num giro pelo mundo, um desfile de fatos que atestam o recrudescimento da luta do homem contra o homem e o devaneio da segurança absoluta: os assassinatos de John Kennedy, de Isaac Rabin, de Martin Luther King e de John Lennon; as tentativas contra o Papa João Paulo II e Ronald Reagan; as guerras na Coreia e no Vietnam; a "limpeza étnica" nos Balcãs; os trágicos conflitos em Darfur; as invasões no Kwait e no Iraque; os ataques às torres gêmeas e às estações de metrô de Paris, Tóquio e Londres. São situações não muito diferentes, e, circunstancialmente, tão escabrosas quanto as duas grandes guerras, o genocídio dos armênios, o assassinato de Abraham Lincoln, os atentados anarquistas contra a família real russa, os assassinos (hashishim) que cometiam atentados na época das cruzadas, o assassinato do arquiduque Francisco Fernando (por Gravilo Princip), que deu origem à 1ª Guerra Mundial.

Não se discutem números, mas o bem maior, a vida. Esses acontecimentos se diferenciam, apenas, na atual transmissão da notícia pela imprensa, por vezes em tempo real, que, pela repetição, tendem para a banalização. São crimes comuns, crimes do colarinho branco, crimes políticos, crimes de responsabilidade, crime organizado. No Brasil, constata-se a ascensão do nostálgico (que disparate!) ladrão de varais a "integrante do crime organizado".

A estatística criminal mostra números que têm ultrapassado patamares toleravelmente aceitos, porque há um ingrediente que funciona como estímulo para o usuário contumaz e encorajamento para o covarde eventual: a droga. Os índices de violência já atingem pontos inimagináveis, trazendo inquietação e angústia, que seriam maiores se se considerasse, hoje, isoladamente, o índice de homicídios. É que um dos indicativos mais confiáveis na mensuração da violência criminal é o número de homicídios, porque reflete os fatos verdadeiramente. Ocultação de cadáveres é um caso raríssimo e, quase sempre, descoberto, porém, a estatística das representações (queixas, no popular), das ocorrências de vítimas de violência doméstica ou de casos de pequenos furtos e roubos pode mostrar uma frequência irreal, pela omissão em denunciá-los. Ela pode estar afetada por fatores como vergonha, medo, vingança ou, pior ainda, a falta de confiança na atividade pública vinculada, pela incerteza de efetividade nas ações das respectivas autoridades.

Voltando a Marc Ancel e à concepção da moderna defesa social "Prevenção e tratamento são... as duas dimensões que faltavam à concepção tradicional", constata-se que há muita teoria e pouca prática. O sistema prisional, erroneamente invocado como sistema penitenciário, é uma balela. Há muitos órgãos e entidades que não têm interligação, seus esforços não são harmônicos, principalmente no que seria o final da linha, a administração prisional (hoje, administração penitenciária). Prevenção e tratamento continuam faltando em nossos dias.

Quanto aos DESASTRES, um rol que, ultimamente, tem chocado o mundo! Em Nova Orleans, EUA, o furacão Katrina provocou uma catástrofe de grandes proporções, fato que foi considerado pelas autoridades americanas como um dos maiores desastres naturais da história daquele país. No balanço geral, um caos: mais da metade da população sofreu com perdas materiais (casas, principalmente) e com perdas humanas (em torno de 1.000 vidas de parentes e amigos). Segundo a revista VEJA 5, dias após o desastre "mais de 100.000 pessoas permaneciam encurraladas pelas águas, esperando resgate, alimentos e socorro médico em abrigos improvisados".

O que se viu nos dias seguintes, mais parecia o cenário de uma catástrofe em um país subdesenvolvido do que na nação mais requisitada para ajudar em situações de emergência em outras partes do mundo. Saqueadores começaram a pilhar lojas em busca não apenas de itens essenciais de sobrevivência – água, alimentos e roupas – mas também bebidas alcoólicas, tênis de marca, eletrodomésticos e até armas. Alguns dos policiais designados para impor ordem no que restou da cidade acabaram entrando no jogo e foram vistos saindo das lojas carregando televisores... nas partes alagadas, a procura por sobreviventes durou dias... as equipes de resgate ignoravam os corpos que boiavam em volta e dentro das casas. Enquanto houvesse pessoas vivas, era preciso deixar a identificação dos mortos para depois.

O despreparo americano não se deve à falta de avisos. Os meteorologistas sabiam com pelo menos dois dias de antecedência que o furacão poderia atingir com grande potência o litoral dos estados da Louisiana, do Mississipi e do Alabama. Os efeitos devastadores que o fenômeno teria sobre Nova Orleans, que sumiu quase que por completo sob uma lâmina de água salgada, eram previsíveis.

Ruth Costas e Rosana Zakabi concluem: "É espantoso que milhões de americanos tenham escolhido viver em áreas tão ameaçadas por inundações".

Em síntese, pressupõe-se e/ou constata-se que ocorreram imprevidência, desorganização, negligência, destruição, desordem, crimes, prejuízos materiais enormes, além de lamentáveis perdas de vidas humanas. Pessoas, mais indignadas, dentre inúmeras reclamações, chegaram a falar que houve desídia, que os responsáveis subestimaram informações e estimativas, que o descaso ocorreu em virtude de a população local constituir-se de maioria negra e pobre, ou seja, os infortunados de quase sempre. Sem entrar no mérito das queixas, verifica-se que ficou evidente a falta de preparo, pelo menos inicialmente, das autoridades daquele país para enfrentamento do problema. O fato, porém, não deve ser considerado um "privilégio" dos EUA. Pode ocorrer em qualquer país, em qualquer parte do mundo. Em verdade não funcionou o princípio da antecipação – preceito fundamental para se minimizar efeitos de ameaças incontroláveis (o que não é sinônimo de incontroladas), decorrentes de fatores abióticos, como os furacões, os vulcões, os terremotos, as secas, inundações, os deslizamentos de terra, o derretimento de geleiras e congêneres – cujo procedimento fundamental está na divulgação oportuna de informações sobre estes fenômenos, para que as populações se precavenham. Para não se estender, citam-se tragédias, mais ou menos recentes, que afetaram o tecido social de certos países, tais como o Tsunami no oceano índico (os países atingidos não teriam sido avisados imediatamente após detecção do fenômeno, porque não teriam firmado um acordo comercial de adesão ao peculiar programa de prevenção); o furacão Stan, na Guatemala (mais de 3.000 pessoas podem ter ficado soterradas por uma avalanche de lama de 12 metros de altura, que cobriu a aldeia de Panabaj); os terremotos na região da Caxemira, no Paquistão (mortos podem ter chegado a 30.000); o discutível tratamento que certas nações vêm dando às medidas de redução do efeito estufa, que está alterando a temperatura da terra, de acordo com o Paradoxo, digo, o Protocolo de Quioto. Importante ressaltar outro grupamento de ameaças, o que se refere àquelas controláveis, decorrentes de fatores bióticos, ora controladas ali, ora não controladas adequadamente acolá, como a síndrome de imunodeficiência adquirida (Aids), a dengue, o ebola, a febre aftosa, a gripe aviária, os gafanhotos na África, a síndrome respiratória aguda severa (SARS), o mal da vaca louca, etc.

Porque as ameaças de origem abiótica são de previsibilidade mais difícil que as de origem biótica, é extremamente importante que permanentemente se analise se o surgimento de focos, epidemias, endemias e pandemias (e, até mesmo, para a ocorrência de delitos) é decorrente de falhas no planejamento e na execução, seja de medidas preventivas que evitariam sua eclosão, seja de medidas sustinentes que conteriam sua expansão, ou, ainda, de medidas corretivas que impediriam ou retardariam seu ressurgimento.

Quanto às ameaças sazonais, advindas de fatores bióticos e abióticos, como a seca, inundações, queimadas, febre amarela e febre aftosa, dentre outras, os governos brasileiros sempre optaram por administrar o surto (ou o susto?). É que as ações de redução de desastres (que envolvem a administração e a operação) abrangem aspectos globais de prevenção, preparação para emergências, resposta aos desastres e reconstrução. Mas, após criação do embasamento teórico, doutrinário (que é muito bom) as respectivas autoridades não têm planos e, talvez, nem coragem para enfrentamento da ameaça peculiar sob sua responsabilidade. Em não os havendo, a prevenção inexiste, a preparação é insuficiente, a resposta é ineficiente e a reconstrução é deficiente, o que provoca reinício de mais um perverso ciclo vicioso. A danosa degradação ambiental em nosso país é uma ameaça que, finalmente, parece, começa a ser enfrentada.

Dois casos raros de sucesso: o Programa Nacional de Controle da Dengue que, a par de permanente ação operacional efetiva, engaja a sociedade no esforço sinérgico, inteligentemente, além de divulgar informações bem esclarecedoras, que permitem prática de ações preventivas pela própria população. Conforme estatística divulgada, constata-se que se conseguiu uma "redução de 73,3% dos casos da doença no primeiro semestre de 2004 em relação ao mesmo período do ano anterior. Dados da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde mostram que, nos primeiros seis meses de 2004, 84.535 pessoas tiveram dengue, enquanto que, em 2003, as notificações chegaram a 299.764". Em números absolutos, houve grande redução de casos, que deve ser maior, se se considerar o aumento percentual da população. Outro fato positivo diz respeito ao Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS). O sucesso do programa brasileiro é atestado pelo fato de estar sendo considerado referência para outros países, que têm seu corpo social ameaçado por estas doenças. Nele, é interessante destacar o Sistema de Monitoramento de Indicadores do Programa (MONITORAIDS), que tem o objetivo "de fornecer aos parceiros e à sociedade como um todo, informações úteis que possibilitem acompanhar a resposta brasileira para o controle da Aids e outras DST".

Já se falou que o ambiente de segurança deixará de ser uma utopia quando todas as ameaças estiverem controladas e, concomitantemente, houver a crença de que assim estão. Como nem todas as ameaças são passíveis de controle, pelo menos devemos trabalhar, as que são possíveis, em duas indissociáveis frentes: a objetiva e a subjetiva. É provável que o sucesso desses dois programas se deva a isto: os trabalhos de controle são, objetivamente, muito bem realizados e as informações repassadas à população levam-na, subjetivamente, a acreditar naqueles. O resultado é que a sensação de insegurança, sob estes prismas, quase que desaparece, prevalecendo o aspecto da tranquilidade social, no que se refere a essas ameaças.

Aliás, por mais contraditório que possa parecer, a tranquilidade começa a instalar-se quando o indivíduo tem consciência do que sejam as ameaças e da probabilidade de ser vítima de vulnerabilidades que o cercam mais diretamente (a população que mora no sopé de morros íngremes está mais sujeita a ser vítima de deslizamentos; quem mora no nível do mar está sujeito a um tsunami; a população ribeirinha ou que mora em partes baixas sofrerá mais com os efeitos de inundações; o indivíduo que mora num local, ou nas adjacências, onde há brigas de quadrilhas por domínio de "pontos", tem maior probabilidade de ser vítima de uma bala perdida; quem mora em prováveis regiões de abalos sísmicos está mais passível de sofrer, por exemplo, com terremotos, bem como quem mora em áreas de ocorrência de vulcões, ciclones, de secas e outras ameaças.

De passagem, lembra-se que a organização da proteção da população brasileira (Defesa Civil) contra os desastres – preliminarmente chamados de "calamidades" – teve origem com a criação, em 1942, do Serviço de Defesa Passiva Antiaérea, transformado em Serviço de Defesa Civil. Efetivamente, a Defesa Civil começou a destacar-se e a tomar corpo em 1967. Naquele ano foi criado o Ministério do Interior, com a competência de assistir as populações atingidas por calamidade pública em todo território nacional, cometendo responsabilidades aos Estados. Em 1969 foi instituído, no Ministério do Interior, o Fundo Especial para Calamidades Públicas – FUNCAP, sendo regulamentado em 1970. Ainda em 1970 foi criado, no Ministério do Interior, o Grupo Especial para Assuntos de Calamidades Públicas – GEACAP, visando prestar assistência à defesa permanente contra as calamidades públicas. Em 1988 foi criado o Sistema Nacional de Defesa Civil – SINDEC – organizando a defesa civil no Brasil (o estado-membro tem Comissão Estadual de Defesa Civil – CEDEC – e os municípios têm, ou devem ter, as Comissões Municipais de Defesa Civil – COMDEC –), reestruturado em fevereiro de 2005. Em 1999 foi elaborado, por comissão designada pelo Conselho Nacional de Defesa Civil, o "Manual para a Decretação de Situação de Emergência ou de Calamidade Pública", que apresenta, dentre outros, os conceitos e classificação de "Desastres, Danos e Vulnerabilidades".

Quanto à INTERRUPÇÃO DE SERVIÇOS ESSENCIAIS, é uma ameaça advinda de fenômenos naturais ou provocada pelo próprio homem, que varia de pequenos transtornos a situações em que há grandes prejuízos materiais e perdas de vida, em razão de paralisação de atividades de utilidade pública, que preenchem necessidades inadiáveis e indispensáveis à manutenção da vida e dos direitos. Verifica-se que é uma ameaça contemporânea, em que atividades vitais para uma comunidade ou para uma sociedade são suspensas, trazendo inquietações para a vida social, que vão de pequenos contratempos até situações em que há grandes prejuízos materiais e perdas de vida.

Quando provocada pelo próprio homem – numa análise pouco profunda – há três visíveis particularidades: a interrupção acontece por erro; a paralisação decorre de sabotagem, caracterizando um tipo de ameaça-crime; finalmente, decorre de lockout ou ocorre em razão de exercício legal do "Direito de Greve", vale dizer, a paralisação, que não pode ser total, deve transcorrer conforme regras estabelecidas pela Lei 7783, de 28 de junho 1989, a denominada "Lei de Greve", da qual se extrai:

Artigo 10 - São considerados serviços ou atividades essenciais:

I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;

II - assistência médica e hospitalar;

III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;

IV- funerários;

V- transporte coletivo;

VI - captação e tratamento de esgoto e lixo;

VII - telecomunicações;

VIII-guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;

IX- processamento de dados ligados a serviços essenciais;

X- controle de tráfego aéreo;

XI- compensação bancária.

Essa lei estabelece que em serviços ou atividades essenciais, de comum acordo, empregados e empregadores ficam obrigados a garantir a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. E complementa: "São necessidades inadiáveis da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população".

É interessante observar que, em caso contrário, pode ficar caracterizada uma desordem social e a interrupção, conforme evoluir, pode ser considerada outra ameaça – a comoção intestina, uma grave perturbação da ordem social, ou ainda, poderá enquadrar-se na ameaça-crime, por desobediência àquela lei e a outras regras de convívio social. A ocorrência pode verificar-se em várias áreas e locais, dentre outros: área da saúde (hospitais, postos de saúde, INSS); do abastecimento (água, luz, telefone, combustíveis, mercadorias); do ensino (de universidades a grupos escolares); do transporte (aeroviário, ferroviário, rodoviário e aquático); do comércio, da indústria, da prestação de serviços e congêneres. No caso, a autoridade judiciária estabelece o percentual de funcionamento da atividade (a denominada "escala mínima") porque é necessário compatibilizar interesses do particular segmento de trabalhadores com o interesse geral da sociedade. Percebe-se que, às vezes, há relutância ou desobediência à decisão judicial, o que é inadmissível, visto que o Judiciário é a última barreira social, e que deve manter-se invicta. Percebe-se também que, somente agora e timidamente, alguns Ministérios, algumas Secretarias e outros órgãos públicos específicos apressam-se em elaborar planos de apresto peculiares, para suas áreas próprias. A operacionalização pode ser prejudicada, pois, inexoravelmente, irá exigir empenho de outros órgãos e não há clara definição de quem comandará, liderará o enfrentamento a uma situação que se enquadre nesta ameaça-tronco (o caos provocado por um "apagão aéreo" prolongado pode ser um bom exemplo de administração por surto, ou por susto). Preventivamente, o Estado não está preparado – volta-se ao "princípio da antecipação" – para lidar com os vários tipos desta ameaça. Interessante lembrar, ainda, que pode ocorrer um evento que reúna, simultaneamente, situações que se enquadrem nas duas ou até nas três ameaças-tronco. É fundamental que fique claro, explícito quem cuidará da administração e da operacionalização do problema.

Sobre o autor
Amauri Meireles

Coronel Veterano da PMMG Foi Comandante da Região Metropolitana de BH

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEIRELES, Amauri. Entronizando a novíssima defesa social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2305, 23 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13728. Acesso em: 22 nov. 2024.

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