O novo Código Civil brasileiro preconiza em seu artigo 1.611 que "O filho havido fora do casamento, reconhecido por um dos cônjuges, não poderá residir no lar conjugal sem o consentimento do outro". Trata-se, aos nossos olhos, de um dispositivo pernicioso, potencialmente causador de injustiças no caso concreto. Analisaremos sua redação à luz da Constituição Federal de 1988, em uma abordagem Civil-Constitucional (o que se convencionou chamar de Direito Civil Constitucional ou constitucionalização do Direito Civil).
Pois bem, demonstraremos ao longo do presente texto todo o nosso inconformismo com a manutenção do aludido dispositivo na ordem jurídica posta.
Como é cediço, vivenciamos a era do pós-positivismo, onde os princípios assumem papel de fundamental importância na função de dizer o direito, por parte dos aplicadores. A norma jurídica, hodiernamente, assumiu uma feição de gênero, do qual são espécies a norma-regra e a norma-princípio. No mesmo norte, pontual e pertinente é a análise de Leo Van Holthe : " Princípio jurídico é o mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce do arcabouço legal de um Estado. Os princípios são a base das normas jurídicas, influenciando sua formação, interpretação e integração e dando coerência ao sistema Normativo.
Durante muito tempo, entendeu-se que os princípios jurídicos não tinham possibilidade de impor obrigações legais, sendo meras pautas axiológicas a orientar o aplicador do Direito. Assim, quer sobre ideais jusnaturalistas, quer sobre concepções positivistas, negava-se que os princípios possuíssem relevância jurídica.
Atualmente, considera-se que a teorização dos princípios encontra-se sob uma fase pós-positivista, cuja principal característica é a afirmação definitiva da força jurídica dos princípios, tendo como principais expoentes doutrinários: Ronald Dworkin nos Estados Unidos e Vezio Crisafulli na Itália."(Holthe, Leo Van. Direito Constitucional. 5ª edição, revista, ampliada e atualizada. 2009. Editora Jus PODIVM. Pág.77).
Nesse passo, a Constituição Federal elegeu como um dogma/fundamento do Estado Democrático de Direito, logo em seu primeiro artigo, a dignidade da pessoa humana. É bem verdade que a autonomia da vontade deve reger as relações particulares no que tange à intimidade de seus lares. Todavia, não se pode conceber que tal garantia possa servir de supedâneo para legitimar injustiças. Não há garantias absolutas.
Para que possamos começar a discussão, é pertinente salientarmos que o Direito Civil brasileiro passa, conforme dito alhures, para a era da constitucionalização, deixando apenas para efeito de referência histórica as características, assumidas em tempos idos, de fechado, eminentemente patrimonial e individualista.
Flávio Tartuce e José Fernando Simão, citando Luís Edson Fachin, com o brilhantismo peculiar afirmam: "...o nosso Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Trata-se daquilo que se denomina princípio máximo, ou superprincípio, ou macroprincípio, ou princípio dos princípios. Diante desse regramento inafastável de proteção da pessoa humana é que está em voga, atualmente, falar em personalização, repersonalização e despatrimonialização do Direito Privado. Ao mesmo tempo em que o patrimônio perde importância, a pessoa humana é valorizada" (TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil.v.5: família. 2ª Edição, atualizada e ampliada. Editora Método,2007. Pág.24).
Princípios como o da socialidade, afetividade e dignidade da pessoa humana foram incorporados ao Código Civil. Sendo assim, houve a constitucionalização das relações privadas. Aplausos a Miguel Reale e sua equipe, verdadeiros responsáveis pelo novel estatuto em epígrafe.
Contudo, como nem tudo são flores, surge no bojo do já ovacionado Código, o malsinado artigo 1.611, resquício indesejado do individualismo odioso de antanho. O que percebemos ao nos depararmos com o referido dispositivo é o indivíduo (singularmente considerado na pessoa do cônjuge inocente no adultério) olhando única e exclusivamente para seus próprios interesses em detrimento dos interesses alheios. É a mais pura expressão da preocupação com o "eu" em desfavor do "nós". Deixa-se, destarte, a fraternidade em segundo plano.
Ora, não permitir que uma criança, fruto de uma relação fora do casamento, possa viver na companhia de seu pai (ou mãe), sob o mesmo teto, tendo em vista apenas a não permissão do outro cônjuge, não nos parece ser a melhor solução.
A título de exemplificação, imaginemos uma situação em que, um casal que tenha um filho fruto de sua união e que, por uma desventura qualquer, um dos cônjuges se envolva em um relacionamento extramatrimonial, advindo desta um filho. Este, pouco tempo depois, perde o(a) genitor(a) cúmplice do referido adultério, ficando apenas o genitor adúltero, que por sinal, vive com sua outra família.
Pois bem, aos olhos do aplicador do direito positivista extremado, poder-se-ia chegar à conclusão de que o filho advindo da relação alheia ao matrimônio [01], caso o cônjuge inocente discordasse, não poderia morar junto com seu pai (ou mãe), no mesmo lar. Note-se que neste caso o filho comum do casal moraria com os pais, tendo seu direito constitucional de moradia e convivência familiar incólume. Já o outro filho, não teria o mesmo tratamento.
Diante disso pergunta-se: seria justo que aquela criança, em razão do simples dissenso do outro cônjuge, ficar impossibilitada de viver com seu pai(ou mãe), habitando o mesmo lar? Seria justo que o cônjuge, forçado pelas circunstâncias, relegue seu filho e o entregue para uma entidade de abrigo qualquer, à mercê de um futuro completamente errante?
Tem sabor do óbvio que a única resposta só pode ser negativa. Tais ilações seriam totalmente incompatíveis com o Estado de Direito. Ofenderia de morte inúmeras garantias fundamentais, tais como a isonomia, direito à moradia, à convivência familiar, à dignidade da pessoa humana, à integral proteção da criança, à paternidade responsável, dentre outras. Contudo, ao que parece, o legislador não pensou assim ao elaborar o dispositivo.
No exemplo por nós vislumbrado (não muito difícil de ocorrer na prática), percebemos que há desiguais sendo tratados desigualmente, mas não de forma a mitigar tal desigualdade colimando atingir uma igualdade. É justamente o oposto. Está o legislador na contramão dos avanços obtidos pelo direito de família, aumentando ainda mais tal desigualdade. Agindo dessa forma estaríamos fazendo tabula rasa da isonomia material construída por Aristóteles e lapidada por Ruy Barbosa [02].
Ademais, é bem verdade que o direito à moradia integra o vasto conceito de dignidade humana, sem falar no direito à convivência familiar. Voltando ao exemplo do casal que tinha um filho comum, qual seria a razão de tratarmos de forma diferenciada o filho somente de um dos cônjuges?
O dispositivo em disceptação fere veementemente a Constituição Federal, notadamente no que concerne à dignidade da pessoa humana e à igualdade jurídica de todos os filhos (arts.1º, III e 227, §6º, respectivamente). Neste último aspecto, a Norma Maior é assaz contundente quando afirma que "os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação". Trata-se, tão somente, de uma especialização da igualdade prevista no caput do art.5º da Lei Maior. Redação idêntica assumiu o artigo 1.596 do Código Civil.
Discorrendo sobre a igualdade jurídica entre os filhos, Flávio Tartuce e José Fernando Simão concluem que "...juridicamente, todos os filhos são iguais perante a lei, havidos ou não durante o casamento. Essa igualdade abrange também os filhos adotivos e aqueles havidos por inseminação artificial heteróloga (com material genético de terceiro). Diante disso, não se pode mais utilizar as expressões filho adulterino ou filho incestuoso que são discriminatórias. Também não podem ser utilizadas, em hipótese alguma, as expressões filho espúrio ou filho bastardo. Apenas para fins didáticos utiliza-se a expressão filho havido fora do casamento, já que juridicamente todos são iguais. Isso repercute tanto no campo patrimonial quanto no campo pessoal, não sendo admitida qualquer forma de distinção jurídica, sob as penas da lei. Trata-se, portanto, na ótica familiar, da primeira e mais importante especialidade da isonomia constitucional" (TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil...2007).
Ao que parece, o legislador acabou por proteger mais a relação entre cônjuges em detrimento da proteção à criança, ficando esta em plano secundário.
Entrementes, em relação aos infantes nosso ordenamento jurídico adotou a doutrina da proteção integral, baseada no princípio do melhor interesse da criança (the best interest of the child), previsto na própria Constituição Federal em seu art.227, quando afirma que "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão." (grifamos). Tal postulado é repetido de forma muito semelhante no Estatuto da Criança e Adolescente (art. 4º).
De mais a mais, é inevitável reconhecer que, admitindo-se a manutenção no ordenamento jurídico pátrio do art.1611 do Código Civil, poderá, inexoravelmente, acarretar situações de injustiças incomensuráveis, como a descrita no início desse texto. Destarte, haverá ofensa à função social da família, bem como ao princípio da solidariedade social, valores nos quais se sustenta nosso atual codex. Não se coaduna, portanto, com o conceito de Direito Civil Constitucional.
O grande constitucionalista Paulo Bonavides enfatiza os princípios constitucionais como aqueles que se encontram "no ponto mais alto da escala normativa, eles mesmos, sendo normas, se tornam, doravante, as normas supremas do ordenamento. Servindo de pautas ou critérios por excelência para a avaliação de todos os conteúdos normativos, os princípios, desde sua constitucionalização, que é ao mesmo passo positivação no mais alto grau, recebem como instância valorativa máxima categoria constitucional, rodeado do prestígio e da hegemonia que se confere às normas inseridas na Lei das Leis. Com esta relevância adicional, os princípios se convertem igualmente em norma normarum, ou seja, norma das normas". Mais adiante, ressaltando a aludida supremacia: "Fazem eles a congruência, o equilíbrio e a essencialidade de um sistema jurídico legítimo. Postos no ápice da pirâmide normativa, elevam-se, portanto, ao grau de norma das normas, fonte das fontes. São qualitativamente a viga-mestra do sistema, o esteio da legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma Constituição" (Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, Malheiros, 9. ed., p.260/261).
Pois bem, é direito fundamental da criança ser tratada com igualdade (princípio da igualdade jurídica de todos os filhos). A Constituição da República não é uma mera carta de intenções, seus princípios são dotados de força normativa, razão pela qual impõe-se à legislação infraconstitucional respeito aos seus ditames.
Deveras, conforme expomos, o combatido dispositivo não se harmoniza, nem de longe, com os já mencionados valores basilares do Estado de Direito, tais como a dignidade humana, a paternidade responsável, a proteção integral da criança, a dignidade humana e todos os seus consectários, razão pela qual não vemos como compatibilizá-lo com a ordem constitucional. Diante de tudo isso, nos é dado a fazer uma conclusão: todo filho, independente da origem, merece proteção igualitária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: Parte Geral. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v.1.
______. Curso de de Direito Civil brasileiro: Direito de família. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v.5.
HOLTHE, Leo Van. Direito Constitucional. 5ª ed., revista, ampliada e atualizada. Jus PODIVM: 2009.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2009.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Lei de Introdução e Parte Geral.3ª ed. São Paulo: Método.2007.
_________. e SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: Direito de Família. 2ª ed. São Paulo: Método.2007.
Notas
- Nunca é demais salientar que o ordenamento jurídico pátrio abomina qualquer diferenciação de nomenclaturas entre os filhos, sejam quais forem suas origens. É o que impõe a Lei Maior ao consagrar o princípio da igualdade jurídica de todos os filhos em seu art.227, §6º.
- Vide Oração aos Moços.