2.PRINCÍPIO DA IGUALDADE TRIBUTÁRIA
2.1.Noções gerais
O princípio da igualdade tributária é de fundamental importância no Estado de Direito. Em nossa Constituição Federal, ele se faz presente, expressamente, em várias dispositivos, a começar pelo preâmbulo.
Com base nesse princípio, cabe exigir-se do Estado que dispense o mesmo tratamento para as pessoas em situações iguais. Tal tratamento, vale dizer, tanto pode derivar da atuação legislativa, como executiva e jurisdicional, haja vista que o princípio se dirige ao Legislador e aos aplicadores das leis.
Sob o prisma histórico, sabe-se que foi depois da Revolução Francesa que os regimes democráticos conceberam a igualdade como rejeição de todo privilégio e de toda a discriminação entre os cidadãos.
Não há negar, noutro giro, que o princípio da igualdade desafia dificuldades várias por ocasião de sua aplicação concreta, justamente por ser arenoso o terreno de definições quando se está a decidir o que é igual, num caso ou outro, e que aspectos são relevantes ou não, valiosos ou sem valor para a respectiva determinação.
É que, como é cediço, subjaz ao princípio um sem número de questões que envolvem posturas ideológicas, políticas e axiológicas. Apenas para exemplificar, pode-se mencionar o fato de o princípio da igualdade ter convivido por muitos anos, em dada época histórica brasileira não muito distante dos dias atuais, em que as mulheres eram alijadas de participar dos quadros militares, ou do Poder Judiciário.
Seja como for, é certo que a Constituição Federal de 1988 concebe o princípio da igualdade em múltiplas facetas, dentre as quais a jurisdicional, a indicar ser vedado ao Estado-juiz fazer distinções entre iguais, ao aplicar a lei. Outra destas facetas diz com a igualdade tributária, que se relaciona com a justiça distributiva em matéria fiscal (artigo 150, II e artigo 145, §1º).
Em suma, são nesses termos que importa fixar o conteúdo semântico do princípio da igualdade, e em especial para o fim deste artigo, urge não olvidar seu imbricamento tributário e direcionamento à atividade jurisdicional.
2.2.Critérios para aferição da igualdade
Acerca da igualdade (e assim também acerca da igualdade tributária), vale fixar, três questões devem ser analisadas, segundo célebre sistematização de Celso Antonio Bandeira de Mello, para se concluir acerca de eventual desrespeito ao princípio:
"a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se a correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados." [21]
Com base nesses itens, importa fixar que eventual discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Deve haver uma adequação entre o tratamento diferenciado conferido e a razão diferencial que lhe serviu de fundamento. Não se pode, pois, conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, tendo em conta circunstâncias peculiares de uma categoria de indivíduos se não se faz presente uma conformação lógica entre o fator de desigualação e o tratamento díspar. Demais disso, ainda é necessário que haja razoabilidade no estabelecimento de diferenciações.
Caso, porém, eventual tratamento diferenciado transborde desses lindes, faz-se possível inquiná-lo de inconstitucional, por desrespeitoso ao princípio da igualdade.
No caso objeto de análise neste trabalho (a Súmula Vinculante n.º 08), como se verá a seguir, nota-se que houve julgamento em que se confeccionou norma (na modulação de efeitos) atributiva de tratamentos jurídicos diferentes em atenção a fator de discrímen adotado que não guardou relação de pertinência lógica com a disparidade dos regimes outorgados. Incorreu, pois, em flagrante afronta ao princípio sob enfoque.
Fortes nessas premissas, perceber-se-á, também, ao final, que o atual cenário político-tributário brasileiro é fortemente marcado pela desigualdade, em absurdo desrespeito à Constituição Federal e aos integrantes da população. Vejamos, pois, com mais vagar esses aspectos.
3.AFRONTA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NO CENÁRIO POLÍTICO-TRIBUTÁRIO ATUAL BRASILEIRO
O momento presente da tributação brasileira, e o seu respectivo passado próximo, ou melhor, a última década, são exemplos nítidos de que o sistema está fortemente pautado em injustiça fiscal, por afronta substancial ao princípio da igualdade tributária.
Com efeito, os últimos anos testemunharam uma produção legislativa vertiginosamente crescente no que respeita a tributação. Criaram-se tributos e bases de cálculo novos e, por vezes, majoraram-se alíquotas dos já existentes.
Some-se a isso a evolução da carga tributária, que também se revelou crescente, ano a ano, na última década, não apenas porque houve elevação do PIB, mas principalmente em razão desse mencionado aumento de alíquotas e criação de novos tributos, sem embargo do alcance de uma melhor eficiência arrecadatória do Fisco.
As posturas judiciárias finais, por sua vez, relativas ao âmbito tributário, vêm revelando também indisfarçável preocupação em manter coerência com uma curva arrecadatória voltada para cima, em que pese ao fato de isso não necessariamente subsumir-se a arquétipos propriamente técnico-jurídicos.
Aqui chegados, convém explicitar com números um pouco do que se disse. Ressalvas à parte acerca das infindáveis divergências metodológicas que envolvem os respectivos cálculos, é certo que, com base nas médias aritméticas anuais, a carga tributária bruta se encontrava nos patamares de aproximadamente 26% do PIB em 1995, e 34%, em 2006, conforme se extrai do gráfico a seguir [22]:
4.1.Conceito de Súmula Vinculante
É justamente da atuação do Supremo Tribunal Federal (por ocasião do controle de constitucionalidade, sob as luzes da segurança jurídica) que pode derivar a confecção de súmulas com efeito vinculante.
Em linhas gerais, súmula vinculante nada mais é que uma ferramenta hábil a se impor uniformidade a futuros julgamentos (acerca de determinada questão jurídica) e à atuação administrativa do Estado.
Nos termos da definição de Jorge Amaury Maia Nunes:
Têm-se os assentos ou as súmulas como deliberações obrigatórias, proferidas por tribunais supremos, em decorrência de exame reiterado de casos concretos, em que é eleita uma interpretação (ou conjunto de interpretações) de dado preceito normativo, a ser seguido por órgãos da jurisdição e por quaisquer outros que tenham dentre seus misteres a aplicação do Direito. [27]
Vejam-se, a propósito, os termos da Constituição Federal de 1988, artigo 103-A, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 8/12/2004:
"Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso."
4.2.Súmula vinculante e o Estado de Direito
A razão de existir das súmulas reside exatamente no intuito de evitar decisões conflitantes acerca de uma mesma situação (insegurança jurídica), além de acarretar diminuição na quantidade de causas ajuizadas e no tempo de duração dos respectivos processos.
Com isso tudo, realizar-se-ía o Estado de Direito, na medida em que seria entregue ao jurisdicionado (como produto do laborar do Estado-Juiz) a certeza de como determinado tema é tratado pelo Poder Judiciário, e em tempo razoável, o que é de suma importância à vida social.
Apontando para essa possibilidade de decisões judiciais randômicas, capazes de causar perplexidade até mesmo no meio técnico-jurídico, Márcia Regina Lusa Cadore justifica a relevância do tema das súmulas vinculantes da seguinte forma:
A proposta deste livro é demonstrar a necessidade de uniformizar a jurisprudência, de forma a concretizar valores como a segurança jurídica e a isonomia na aplicação da lei, aumentar a compreensão e aceitação das decisões do Poder Judiciário pela sociedade e melhorar a prestação jurisdicional, com a redução do tempo e dos custos respectivos. [28]
Ocorre, porém, que o mero funcionamento de toda essa engrenagem, por si só, não implica necessariamente a obtenção desses resultados, que significariam a desejável "realização do Estado de Direito". É preciso mais, com a devida venia, e esse plus diz exatamente com o conteúdo material do produto final que se veicula por súmulas vinculantes e com os efeitos a elas emprestados.
Essa assertiva, como é cediço, vale perfeitamente para o Legislador. Todas as espécies normativas devem apresentar conformação formal e material ao sistema. Por igual razão, o mesmo se deve aplicar às sumulas vinculantes, afinal retiram substrato de validade também da Constituição Federal.
Em outras palavras, quer-se dizer que a tão-só edição de súmulas vinculantes, com todas as conseqüências que dela derivam, a par de sua potencialidade benéfica, não é sinônimo obrigatório de realização do Estado de Direito. Apenas o será na medida em que, além de observado o procedimento próprio, haja conformação material face a valores outros do sistema, dentre os quais os direitos e deveres fundamentais.
4.3.Conteúdo da súmula e detalhes do julgamento
O advento da SV-8 está ligado às decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas nas sessões plenárias ocorridas em 11 e 12 de junho de 2008 em que, negando provimento aos recursos extraordinários nº 560626, 556664, 559882 e 559943, interpostos pela Fazenda Nacional, se declarou, em votação unânime, a inconstitucionalidade dos dispositivos encartados nos artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, e do parágrafo único do artigo 5º do Decreto-lei nº 1569, de 8 de agosto de 1977.
Entendeu-se que tais dispositivos de natureza ordinária afrontavam a Constituição por veicularem matéria reservada a lei complementar [29], que é o veículo introdutor adequado para normas gerais em direito tributário.
Vejam-se novamente os termos em que lançada a SV-8:
"São inconstitucionais os parágrafo único do artigo 5º do Decreto-lei 1569/77 e os artigos 45 e 46 da Lei 8.212/91, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário".
Os artigos 45 e 46 mencionados contemplam prazos de 10 (dez) anos para decadência e prescrição das contribuições de Seguridade Social, prazos esses diferenciados face aos de 05 (cinco) anos contidos no Código Tributário Nacional para os demais tributos.
O artigo 5.º, parágrafo único, do Decreto-lei 1569/77, por sua vez, prevê hipótese de suspensão do curso do prazo prescricional enquanto mantido o sobrestamento da cobrança de débitos considerados de pequeno valor. Sua inconstitucionalidade [30] foi declarada apenas quanto à sua aplicação a débitos de natureza tributária; aos demais mantém-se hígido o enunciado, capaz portanto de fazer incidir a suspensão nele prevista.
Com tal declaração de inconstitucionalidade, decidiu-se ser o Código Tributário Nacional [31] a lei aplicável às contribuições sociais, em tema de prescrição e decadência.
Em suma, o essencial é que a tributação de contribuições sociais foi afetada quanto aos prazos decadencial e prescricional, que passaram de 10 (dez) anos para 05 (cinco), e deixou de haver a suspensão do curso do prazo prescricional para os casos de arquivamento administrativo em razão de baixo valor.
Demais disso, ainda houve por bem o Supremo Tribunal Federal restringir a eficácia da declaração de inconstitucionalidade [32] dos artigos 45 e 46 da Lei 8.212, de 1991, de modo a afastar a possibilidade de repetição de indébito dos valores pagos, salvo quando pleiteada a repetição ou compensação, judicial ou administrativamente, antes da conclusão do julgamento, isto é, 11 de junho de 2008.
Vejam-se as palavras do Ministro Relator, em trechos do julgado:
(...) "Resultam inconstitucionais, portanto, os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/91 e o parágrafo único do art. 5º do Decreto-lei n° 1.569/77, que versando sobre normas gerais de Direito Tributário, invadiram conteúdo material sob a reserva constitucional de lei complementar."
"Sendo inconstitucionais os dispositivos, mantém-se hígida a legislação anterior, com seus prazos qüinqüenais de prescrição e decadência e regras de fluência, que não acolhem a hipótese de suspensão da prescrição durante o arquivamento administrativo das execuções de pequeno valor, o que equivale a assentar que, como os demais tributos, as contribuições de Seguridade Social sujeitam-se, entre outros, aos artigos 150, § 4º, 173 e 174 do CTN."
(...)"Nesse sentido, o Fisco resta impedido de exigir fora dos prazos de decadência e prescrição previstos no CTN as contribuições da Seguridade Social.
No entanto, os valores já recolhidos nestas condições, seja administrativamente, seja por execução fiscal, não devem ser devolvidos ao contribuinte, salvo se pleiteada a repetição ou compensação de indébito, judicial ou administrativamente, antes da conclusão do julgamento, em 11.6.2008.
Em outras palavras, créditos pendentes de pagamento não podem ser cobrados, em nenhuma hipótese, após o lapso temporal qüinqüenal. Por outro lado, créditos pagos antes de 11.6.2008 só podem ser restituídos, compensados ou de qualquer forma aproveitados, caso o contribuinte tenha assim pleiteado até a mesma data, seja pela via judicial, seja pela via administrativa." (...)
Diante destes termos, restou vedada ao Fisco a realização de qualquer ato de cobrança, administrativamente ou em via judicial, em relação aos débitos abrangidos pela decisão. Noutro giro, também restou vedado o ajuizamento de novos pleitos repetitórios, dado que eventual restituição de indébito somente será possível para pedidos efetivados até a data do julgamento. Isso tudo será detalhado no tópico 3.5, infra.
4.4.Pareceres da PGFN sobre a SV-8
Dias após o julgamento do qual resultou a edição da SV-8, e com vistas a conferir uniformidade ao cumprimento que dela se faz obrigatório, foram confeccionados três pareceres pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional [33], nos quais se abordam inúmeros reflexos jurídicos decorrentes da declaração de inconstitucionalidade vazada na súmula em tela. A íntegra de cada qual vem encartada em anexo deste trabalho.
4.4.1.Dispensa de atuação contrária
De início, e por óbvio, fixou-se a orientação aos Procuradores da Fazenda Nacional de dispensa de contestar, impugnar ou recorrer, bem como desistir dos recursos já interpostos, com base no artigo 103-A, da CF/88, em matéria que contrarie o teor da SV-8 e sua já aludida modulação de efeitos, independentemente de prévio ato declaratório (de dispensa) do Procurador-Geral da Instituição, nos termos do artigo 19 da Lei 10.522/02.
Remanesce, pois, a necessidade de atuar em Juízo apenas na hipótese de eventual propositura de ação ajuizada posteriormente à data do julgamento (11/06/08), tendente a restituição ou compensação de suposto indébito tributário com fulcro na tese objeto da SV-8. É que, segundo o julgamento do STF, os recolhimentos efetuados sob a égide da legislação declarada inconstitucional, que por lógica deveriam ser tidos por indevidos, na parte em que desrespeitados os lapsos qüinqüenais de decadência e prescrição, não são passíveis de repetição por ausência de prévio ajuizamento de pleito nesse sentido.
Nesse ponto, vale observar, não constam da decisão a ser cumprida maiores detalhes sobre os casos em que se faz possível a repetição. Apenas constou a exigência de prévio pleito (até 10/06/08, portanto) administrativo ou judicial, sem explicitações.
Hipóteses como aquelas em que houve sim prévio pleito (judicial ou administrativo), mas que, por algum motivo, encontra-se encerrado sem obtenção de êxito, não têm solução. Isso abrange casos até mesmo com eventual trânsito em julgado em contrário ao teor da SV-8. Haveria permissão para a repetição nessa hipótese, mesmo ao preço do desfazimento de coisa julgada?
A existência de Embargos à execução fiscal em que ventilada a tese abrigada pelo preceito sumulado configuraria, em sentido amplo, tal pleito repetitório?
E quanto aos créditos constituídos por força de fatos geradores in concreto que se passaram antes da Constituição Federal de 1988, quando ainda não se revestiam as contribuições sociais de caráter tributário? Passariam ao largo do tratamento sumulado?
Enfim, a modulação de efeitos não satisfaz as exigências necessárias para o regramento completo do cumprimento da SV-8, o que milita em desfavor da própria economicidade de novas ações que se buscou alcançar por seu intermédio.
4.4.2.Revisão de ofício
Outra orientação importante extraída dos Pareceres está na fixação da necessidade de a Administração Tributária, de ofício, proceder (exercendo seu poder-dever de autotutela) às devidas revisões para ajustar seus eventuais créditos tributários referentes a contribuições sociais aos termos da SV-8, inclusive quanto aos créditos sob cobrança judicial. Constatada a ocorrência de decadência ou prescrição, impõe-se a anulação do ato de inscrição, com a assunção dos reflexos daí decorrentes em sede de execuções fiscais.
Acerca de novas constituições de créditos, deverá haver o respeito ao prazo decadencial (do Fisco) de cinco anos, com a conseqüente recusa em se proceder à inscrição em dívida, e os pagamentos efetuados após 11/06/08, em dissonância à SV-8, são passíveis de restituição, compensação ou aproveitamento, por indevidos.
Dever-se-á também a Administração reconhecer de ofício a prescrição, mormente diante da inaplicabilidade do parágrafo único do art. 5º do Decreto-lei nº 1569, de 1977, apesar da orientação anterior em sentido contrário, em que a Consultoria-Geral da União manifestou-se contrariamente à possibilidade desse reconhecimento ex officio da prescrição tributária pela PGFN, consoante Parecer AGU/SF nº 18/07. É que, afinal, se entendeu que tal proceder não configuraria controle hierárquico entre a Procuradoria e a Receita Federal do Brasil.
Até este ponto, vale notar, as orientações apenas giram em torno de conseqüências óbvias de cumprimento do julgado e da SV-8, dado que o próprio efeito vinculante e o dever de autotutela dos atos administrativos já se bastavam nesse mister.
4.4.3.Créditos sob parcelamento
Tratando-se de créditos sob parcelamento, a orientação foi direcionada no sentido de que tal fator em nada muda as conclusões já anteriormente expostas.
A prescrição qüinqüenal acerca de créditos sob parcelamento deverá considerar este marco suspensivo do curso do lapso, contando-se desse momento (efetivação do parcelamento), portanto. Idem quanto à decadência, que só poderá ser aferida nesse período prévio, nos termos da modulação.
4.4.4.Outros dispositivos não introduzidos por lei complementar
Também se elaborou orientação para que todos os demais dispositivos legais, não introduzidos por lei, atinentes a normas gerais de prescrição e decadência tributárias, seja sob a égide da Carta Política pretérita, seja sob a égide da atual, apenas fossem utilizados na defesa da obrigação ou do crédito tributário em última hipótese (descartada todas as outras teses), uma vez que o entendimento que se consagrou no STF permite concluir por uma virtual inconstitucionalidade formal.
Assim, estariam abrangidos nessa preocupação os dispositivos constantes dos artigos 2º, § 3º e 40 da Lei 6.830/80, com exceção do § 4º deste artigo 40, que autoriza o magistrado a reconhecer ex officio a ocorrência da prescrição intercorrente, por contemplar disciplina voltada para o processo, de caráter eminentemente instrumental, e não norma de direito material sobre prescrição, passível pois de veiculação por lei ordinária.
4.4.5.Tese dos 5 + 5
Por fim, e de modo a possibilitar o cumprimento das próprias orientações de efetivação do julgado, houve por bem a PGFN posicionar-se acerca da debatida tese do dies a quo da contagem dos prazos (do Fisco) de 05 (cinco) anos do CTN. O caminho escolhido foi o de afastar-se a adoção da tese denominada de 5 + 5.
É que não bastava fixar-se a obrigação de cumprir prazos qüinqüenais; também foi necessário definir a partir de quando as respectivas contagens se iniciariam. E isso a Administrção Tributário o fez, sponte sua, albergando posicionamento jurisprudencial firmado no Superior Tribunal de Justiça, em nítida postura de prevenção de agravamento de litigiosidade acerca do tema.
Acerca do surgimento desta mencionada tese, Eurico Marcos Diniz de Santi teceu a seguinte observação:
Assim, corrompendo-se a legalidade em nome da legalidade, mas em absurdo desrespeito à segurança jurídica, o termo inicial do prazo deixou de ser o "pagamento antecipado" e passou a ser o momento da homologação tácita ou expressa desse pagamento, sob a alegação de que a extinção do credito só se realiza com a ulterior homologação do pagamento, ex vi do art. 156, VII, do CTN- Firmou-se, assim, a denominada tese dos dez anos (...) [34]
Assim, o início da contagem do prazo prescricional não se iniciaria após o transcurso do lapso para a chamada homologação tácita, e sim, como sempre se deu, a partir do próprio pagamento indevido.
Nestes termos, portanto, é que se deve pautar o Fisco ao aplicar a SV-8.
4.4.6.Conclusão sobre a postura do Fisco face à SV-8
Não apenas a edição dos mencionados pareceres, mas sobretudo o quanto neles veiculado, configura, salvo melhor juízo, algo inédito na história brasileira quanto ao que tange à tributação, o que permite concluir que a consciência fiscal do Estado atual, conquanto ainda longe de se apresentar em termos ideais, já não mais é aquela que deu azo ao "carnaval tributário" a que se referiu Alfredo Augusto Becker, em seu livro de mesmo título [35].
Becker, munido de inegável e incômoda razão, teceu críticas contundentes àquele sistema tributário (e momento) que analisou em seu livro; caso, porém, o escrevesse em dias atuais, certamente suas munições seriam menos fartas.
Veja-se, pois, o modo inédito com que foi tratada a edição da SV-8 pelo Fisco, afinal algumas (confiram-se os itens 4.3.5 e 4.3.6, retro) orientações de cumprimento transbordam dos quadrantes da mera obrigatoriedade decorrente do julgado, em nítida postura de eficiência administrativa, racionalização e prevenção de litígios judiciais, e respeito à Constituição, mormente o princípio da igualdade tributária.
Diga-se de passagem, noutro giro, e não há como ser diferente disto (face ao comando do artigo 103-A, da CF/88), o necessário cumprimento de súmulas vinculantes revela algo cruel e falho no atual ordenamento, observada a hipótese de que ela ostente teor materialmente inconstitucional, como no presente caso (vide item infra 4.5).
Digna de elogios, pois, a Administração Tributária, pelo nítido avanço que encetou nesse cenário fiscal já demasiado perverso como o brasileiro.
4.5.A Súmula como afronta à Constituição
Os resultados arrecadatórios, cujos números já foram expostos anteriormente, não decorrem, como é cediço, de uma tributação absolutamente incólume a ilegitimidades. Por vezes a legislação é confeccionada com vícios, ou seja, fora daqueles já mencionados quadrantes que a Constituição delimitou para o fim de tributação legítima. Não por outra razão há inúmeros exemplos de inconstitucionalidades de leis tributárias declaradas pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos anos.
Ocorre, porém, que apesar de se chegar ao ponto de infirmar a validade de tal ou qual lei impositiva, vem-se notando uma tendência da Corte Maior de modular efeitos dos seus julgados, com vistas a evitar que sejam repetidos indébitos tributários muitas vezes de elevadíssima monta.
Essa preocupação, conquanto extra-jurídica, percorre claramente as discussões judiciais, influenciando-as a ponto de se fazer do ilegítimo legítimo, com a força da coisa julgada. A modulação de efeitos que se fixou por ocasião da Súmula Vinculante sob enfoque é exemplo nítido dessas assertivas.
Em outras palavras, quer-se dizer que o Estado-juiz, apesar de reconhecer a inconstitucionalidade de certas leis, o que faz da tributação nelas fulcrada algo ilegítimo, ainda assim se põe a afirmar que não cabe repetir indébitos, nas condições que a seu talante são fixadas, seja por homenagem à segurança jurídica, ou outro argumento qualquer.
Isso faz da SV-8 e sua correlata modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade algo que não se coaduna, por completo, com o que se poderia chamar realização do Estado de Direito.
Realização do Estado de Direito haveria, isso sim, caso resultasse do julgamento, e da súmula em questão, a efetivação do sobreprincípio da segurança jurídica e o respeito a direitos fundamentais, seja em sentido geral, seja no viés tributário (dos direitos fundamentais dos contribuintes).
Betina Treiger Grupenmacher, a propósito, entende exatamente assim:
Assim, a segurança jurídica realiza-se quando é observado, na sua plenitude, o Estatuto do Contribuinte e, em conseqüência, o princípio da igualdade, norteador da segurança jurídica, posto que intrínseco à natureza humana. [36]
Ao revés, extrai-se do teor da decisão do STF que todos aqueles contribuintes que porventura não tenham pleiteado eventual repetição de indébito (fator de desigualação; vide item 2.2, quando se tratou do princípio da igualdade) não mais poderão fazê-lo. Assim, legitimou-se alguma tributação operada externamente aos quadrantes do quanto autorizado pelo sistema, com base em discrimem que não guarda correlação lógica abstrata com o direito ao indébito. É que a existência do direito ao indébito independe da circunstância de ter havido prévio pleito judicial a respeito.
Isso, em outra leitura, significa a um só tempo impedir o acesso ao Judiciário, em flagrante desigualdade tributária entre os contribuintes, e validar o enriquecimento sem causa do Estado. São, pois, afrontas aos direitos fundamentais previstos no artigo 5.º, incisos I e XXXV, da CF/88, e ao direito fundamental de ser tributado apenas na conformidade da permissão constitucional.
Por outro lado, todos aqueles contribuintes que sonegaram contribuições sociais (à luz dos prazos decenais de então), em vez de honrarem seus deveres tributários, agora se vêem em posição recompensadora se comparada à daqueles que pagaram (cumprindo seus deveres sob a crença da presunção de legitimidade da lei), mas não pleitearam eventual devolução com fulcro nas inconstitucionalidades reconhecidas na SV-8.
Isso, indiretamente (observada a presunção de legitimidade das leis), é um descabido incentivo ao desrespeito de deveres tributários, que labora em detrimento da consciência fiscal já tão esvaziada de posturas éticas.
Sendo assim, não se há falar em homenagem ao sobreprincípio da segurança jurídica na SV-8, posto que dele deflui que devem ser respeitados os ditames do sistema jurídico, mormente os fundantes do ordenamento, como os ora sob enfoque.
Em reflexão a respeito de assunto conexo (as distorções interpretativas acerca de princípios), Paulo de Barros Carvalho concluiu que:
Transportando-se essa reflexão para o domínio dos sobreprincípios, em particular o da "segurança jurídica", é possível dizermos que não existirá, efetivamente, aquele valor, sempre que os princípios que o realizem forem violados. [37]
Infelizmente é isso que se passa nos meandros do preceito sumulado sob enfoque. Preocupações extrajurídicas com a quantidade de processos que tramitariam no Poder Judiciário após a decisão em tela, por certo, também fizeram com que fosse editada a súmula vinculante em tela, mas da forma como isso se efetivou não apenas se conferiu certeza jurídica (para os casos sub-judice ou pendentes de análise, o que é elogiável) como também se violentou a própria Constituição, a pretexto de salvaguardá-la. Esse mister, definitivamente, não incumbe ao Supremo Tribunal Federal, e ficamos assim, afinal, como disse Oreste Ranelletti sobre o sistema italiano, "Contro le decisioni della Corte costituzionale non è ammessa alcuna impugnazione." [38]
Melhor teria sido que a declaração de inconstitucionalidade não discriminasse situações pelo critério da "existência de prévio pleito", a permitir ou não eventual repetição de indébitos. A descriminação encetada gera inegável afronta, pois, ao princípio da igualdade.
A propósito, veja-se o seguinte caso, analisado por Eurico Marcos Diniz de Santi e Paulo César Conrado:
Lei tributária (Lx) é produzida e instalada com presunção de validade no sistema jurídico brasileiro. Ocorre o fato jurídico-tributário previsto em Lx, procede-se ao Lançamento tributário e o contribuinte (Cx) efetua o pagamento, extinguindo a obrigação tributária constituída pelo lançamento. Suscitada, na doutrina, dúvida sobre a constitucionalidade de Lx, Cx ingressa com ação de repetição do indébito tributário. Processada, a ação é julgada improcedente, transitando em julgado a sentença (Sx).
Posteriormente ao trânsito em julgado de Sx, o Supremo Tribunal Federal declara, em ação direta (ADinx ). a inconstitucionalidade de Lx. [39]
Mais adiante, estes autores respondem assim à seguinte indagação:
Caso o contribuinte (Ca) não tivesse ajuizado ação de repetição do indébito e ainda não tivesse decorrido o respectivo prazo de prescrição, a decisão que declarou inconstitucional Lx, no exercício do controle direto de constitucionalidade teria o condão de servir como fundamento para ação de repetição do indébito? O juízo poderia decidir de forma contrária à ADInx?
Sim (sobre a primeira pergunta). O trânsito em julgado da decisão produzida na ADInx tem o condão de servir como fundamento para ação de repetição do indébito, instalando no sistema, objetivamente, o reconhecimento jurídico da inconstitucionalidade da lei Lx, ern regra, com efeitos ex tunc.
Tendo a Lei (Lx) servido de fundamento para "incidência", lançamento e pagamento do crédito tributário do contribuinte (Cx) e não tendo seus efeitos se consolidado no tempo, mediante o decurso do prazo de prescrição, então a decisão em ADIn pode servir como fundamento para atacar judicialmente os efeitos da "incidência", do lançamento e do pagamento do crédito. [40] (grifos nossos)
Nem mesmo a criatividade e acidez crítica de Becker seriam capazes de imaginar que justamente aquele a quem incumbe velar pelo respeito à Carta Maior se põe em posição de malferi-la, e o que é pior, irremediavelmente. Isso só faz enfraquecer a já debilitada legitimidade institucional do Poder Judiciário, afinal não pode ele próprio atentar contra o Estado de Direito, seja legitimando que o Erário se beneficie de tributação afrontosa à Constituição, seja desconsiderando direitos fundamentais como o da igualdade e o acesso ao Judiciário.