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Vender bebidas alcoólicas a criança ou adolescente é contravenção, não crime.

Análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

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Agenda 25/11/2009 às 00:00

A conduta de vender bebidas alcoólicas à criança ou ao adolescente, pode, a princípio, enquadrar-se no artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente ou no artigo 63, inciso I, da Lei de Contravenções Penais.

SUMÁRIO: 1 Introdução – 2 Histórico – 3 Argumentação da Quinta Tuma do Superior Tribunal de Justiça – 4 Argumentação contrária ao entendimento da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, defendida pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul – 5 Comentários – 5.1 As bebidas alcoólicas não se incluem nas substâncias mencionadas no artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente – 5.2 Interpretação extensiva em sede penal – 5.3 Utilização da argumentação manifestada pelo Superior Tribunal de Justiça para não aplicar a multa em decorrência de infração administrativa – 5.4 Proposta de lege ferenda – 6 Conclusão – Referências.


1 Introdução

Este artigo tem por objetivo apresentar o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça quanto à tipificação da conduta de vender bebidas alcoólicas à criança ou ao adolescente, podendo, a princípio, enquadrar-se no artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente ou no artigo 63, inciso I, da Lei de Contravenções Penais.

Escolheu-se o recurso especial n.º 331.794/RS, julgado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, julgado em 25-02-2003 e publicado no Diário de Justiça em 24-03-2003. A justificativa para a escolha deste julgado é que se trata do leading case onde o Superior Tribunal de Justiça entendeu que não se aplica o artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente em atividades relacionadas com bebidas alcoólicas [01]. Importante o posicionamento de um Tribunal de Sobreposição em função do seu caráter uniformizador [02].


2 Histórico

Este recurso especial foi interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul contra decisão proferida pela Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que, por unanimidade, negou provimento ao recurso ministerial. O Ministério Público Federal opinou pelo conhecimento e desprovimento do recurso. O recurso especial foi conhecido e desprovido, por unanimidade, pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça. A seguir, ementa do julgado, in verbis.

RECURSO ESPECIAL. PENAL. OFENSA AO ART. 243 C/C ART. 81 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. NÃO INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. ART. 243 DO ECA. EXCLUSÃO DE BEBIDAS ALCÓOLICAS.

"Não esbarra no óbice da Súmula 07/ STJ a pretensão recursal que visa o reconhecimento de que o art. 243 do ECA proíbe, de forma genérica, a venda de bebidas alcóolicas a crianças e adolescentes.

A exegese do aludido dispositivo revela que, ao estabelecer as condutas delituosas em espécie, o legislador excluiu, deliberadamente, a venda de bebidas alcóolicas."

Recurso conhecido, mas desprovido.


3 Argumentação da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça

O voto do relator cinge-se à transcrição de parte do parecer do Ministério Público Federal. Ao final o relator apenas menciona, "À vista do exposto, conheço do recurso, mas lhe nego provimento".

Destacam-se três pontos basilares do parecer do Ministério Público Federal. Inicialmente menciona que verificar se o artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente pode ser aplicado no caso de bebidas alcoólicas não exige análise fático-probatória, não esbarrando na Súmula nº. 7/STJ [03].

O segundo ponto a destacar é a argumentação de que o legislador atribuiu tratamento diferenciado para a conduta de vender bebidas alcoólicas e vender produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, por interpretação sistemática do artigo 81 c/c o artigo 243, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente. No primeiro caso, aplica-se o artigo 63, inciso I, da Lei de Contravenções Penais. No segundo, o artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Como terceiro ponto, o Ministério Público Federal posiciona-se pela impossibilidade de interpretação extensiva ou analógica no campo penal, em homenagem ao princípio da reserva legal, previsto no artigo 5º, inciso XXXIX, da CF/88. Proíbe-se a analogia in malam partem, sendo permitindo a analogia in bonam partem.

O segundo e o terceiro ponto serão discutidos no capítulo 5. Optou-se por não discutir o primeiro ponto por restar claro que neste caso a Súmula nº. 7/STJ não devia ser aplicada, não havendo nenhum posicionamento em sentido diverso.


4 Argumentação contrária ao entendimento da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, defendida pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul

Da leitura do inteiro teor do acórdão, identifica-se o posicionamento do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul pela aplicação do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente à hipótese de venda de bebidas alcoólicas, informando que mesmo as drogas lícitas são inadequadas para a criança e para o adolescente, razão pela qual é necessário a proteção da sociedade e do próprio Estado.

Percebe-se posicionamento diverso entre o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e o Ministério Público Federal. O Ministério Público Federal sempre se manifestou no mesmo sentido do Superior Tribunal de Justiça, pela impossibilidade de aplicar o artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente à hipótese de venda de bebidas alcoólicas.


5 Comentários

O artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta-se como uma norma penal em branco, dependendo de outro instrumento normativo para definir quais são as substâncias consideradas aptas a causar dependência física ou psíquica.

A dependência física se manifesta pela alteração das reações químicas que ocorrem no indivíduo, em função de substância externa que faz com que o metabolismo seja modificado. A modificação pode se dar ou pela produção de quantidade maior ou menor de alguma substância, de tal forma que, quando esta substância externa é retirada, o organismo não se encontra com a produção própria, nas quantidades necessárias para o perfeito funcionamento. A síndrome de abstinência representa a exteriorização da necessidade por determinada substância, pelo organismo. A possibilidade de determinada substância causar dependência física é aferida a partir de testes, onde se devem controlar vários fatores, como por exemplo, a dose por administração, o número de doses por dia e o tempo de utilização, bem como observar o comportamento do organismo quando da retirada da substância teste.

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A dependência psíquica refere-se ao desejo do indivíduo na utilização da substância, o que torna difícil afirmar que determinada substância causa dependência psíquica. Inclusive, a dependência psíquica pode se dar em uma conduta, como por exemplo, roer as unhas, sem que esteja necessariamente relacionada com a utilização de uma substância, diferente da dependência física, que necessariamente pressupõe a administração de uma substância.

Em função de todas as dificuldades apontadas, não seria possível ao juiz, no caso concreto, identificar de maneira inequívoca que determinada substância causou dependência psíquica e seria lenta e onerosa a produção de prova para verificar se há a dependência física. Assim, a partir do estudo concentrado de vários países, desenvolvidos a partir do início do século XX [04], verificou-se, dentre todas as substâncias conhecidas à época, quais seriam as substâncias mais utilizadas de forma indevida e que causariam dependência.

Valendo-se principalmente de três convenções que o Brasil é signatário [05], buscou-se dar um regramento interno sobre quais substâncias causariam dependência, bem como as substâncias que não causariam dependência, mas que também deveriam ser controladas, seja pelos efeitos adversos, seja pela possibilidade de utilização da substância na produção de substâncias que causem dependência. Incumbiu-se à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), órgão diretamente subordinado ao Ministério da Saúde, a edição desta norma, concretizada com a Portaria nº. 344, de 12 de maio de 1988, periodicamente revisada, com a finalidade de acrescentar ou retirar substâncias. A última alteração deu-se por intermédio da publicação da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº. 07, de 26 de fevereiro de 2009 [06].

Assim, toda a vez que o ordenamento jurídico necessita da relação de substâncias consideradas causadoras de dependência física ou psíquica, vale-se da Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS, devidamente atualizada. Isto não significa que todas as substâncias que causam dependência estão incluídas na Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS. Significa sim, que se encontram na Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS as substâncias que causam dependência e que foram consideradas pelos países que ratificaram as convenções sobre este tema nocivas o suficiente para serem proscritas ou rigorosamente controladas.

A Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS complementa o artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por necessitar de uma norma de hierarquia diversa, o artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente é classificado como uma norma penal em branco heteróloga ou própria.

Deste a edição da Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS em nenhum momento houve a inclusão do álcool etílico como substância considerada como causadora de dependência física ou psíquica, merecedora de controle. Da mesma forma como o álcool etílico, outras substâncias que trazem malefícios comprovados ao organismo também não estão listados na Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS, como por exemplo, a nicotina. Visando a segurança jurídica, utilizam-se apenas as substâncias listadas na Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS para identificar a possibilidade de causar dependência. A lista destas substâncias deve ser periodicamente atualizada, pois os testes continuam sendo realizados e, além disso, é possível que determinada substância que não estava relacionada possa começar a ser utilizada indevidamente, em grande escala, fazendo com que a norma preveja o seu controle. Repita-se, nem todas as substâncias que causam dependência estão relacionadas na Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS.

A Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS limita quais são as substâncias que devem ser entendido como aptas a causar dependência. Esta Portaria encontra-se dividida em listas, sendo que as listas de substâncias consideradas como aptas a causar dependência são as listas A, B, E e F, que apresentam apenas substâncias entorpecentes [07] ou substâncias psicotrópicas [08], em que pese esta não ser a classificação cientificamente adotada, uma vez que as substâncias entorpecentes são uma das espécies de substâncias psicotrópicas.

Tabela 01 – Listas de substâncias químicas que compõem a Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS.

Lista

Classe

A1

Substâncias entorpecentes

A2

Substâncias entorpecentes

A3

Substâncias psicotrópicas

B1

Substâncias psicotrópicas [09]

B2

Substâncias psicotrópicas / anorexígenas

C1

Substâncias com controle especial

C2

Substâncias retinóicas

C3

Substâncias imunodepressoras

C4

Substâncias anti-retrovirais

C5

Anabolizantes

D1

Precursoras de entorpecentes e/ou psicotrópicos

D2

Insumos químicos

E

Plantas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas

F1

Substâncias entorpecentes de uso proscrito no Brasil [10]

F2

Substâncias psicotrópicas de uso proscrito no Brasil [11]

F3

Substâncias precursoras de uso proscrito no Brasil

F4

Outras substâncias de uso proscrito no Brasil

Dentre as quatro listas mencionadas (listas A, B, E e F), apenas a lista F contém as substâncias de uso proscrito no território nacional. As substâncias presentes na lista F são consideradas ilícitas, objeto de controle específico positivado na Lei nº. 11.343/2006, que trata da repressão ao tráfico de substâncias de uso proscrito. As demais listas contêm substâncias que são não são proibidas; contudo, que necessitam de controle para atividades que envolvam sua utilização.

O fato de a substância causar dependência não significa que ela seja ilícita. Existem diversas substâncias consideradas pela Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS como causadoras de dependência, de uso comum em tratamentos médicos, como por exemplo, a hidrocodona, presente na lista A1 e que encontra aplicação, por exemplo, na diminuição da dor severa não tratável.

O artigo 81 do Estatuto da Criança e do Adolescente informa quais os bens de consumo que não podem ser vendidos à criança ou ao adolescente, separados em seis incisos. No inciso II constam as bebidas alcoólicas e no inciso III os produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida. A não inclusão do álcool etílico nas listas da Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS, desde a edição desta norma, reforça o acerto do legislador quando separou nos incisos II e III do artigo 81 do Estatuto da Criança e do Adolescente as bebidas alcoólicas dos produtos que cujos componentes podem causar dependência física ou psíquica.

Independente da existência do artigo 81 do Estatuto da Criança e do Adolescente, apenas o fato de constar o termo "substância que cause dependência física ou psíquica" no caput do artigo 243 já é o suficiente para concluir que não estão incluídas as bebidas alcoólicas.

O legislador explicitamente separou as bebidas alcoólicas dos demais produtos que contém substâncias que causam dependência física ou psíquica, no artigo 81 do Estatuto da Criança e do Adolescente. E o fez por coerência com outros dispositivos legais que mencionam termos como "substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica" [12], "substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica" [13], "produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica" [14] e "substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica" [15].

5.2 Interpretação extensiva em sede penal

Em breves linhas faremos uma consideração sobre a possibilidade de interpretação da norma penal de forma extensiva.

Interpretar significa determinar o significado, dar sentido a algo [16]. No caso das leis, a interpretação "consiste em extrair da norma penal seu exato alcance e real significado" [17].

Classifica-se a interpretação quanto aos resultados obtidos, podendo ser declarativa, restritiva e extensiva [18]. Na interpretação extensiva amplia-se o sentido ou o alcance da lei ao verificar que a lei disse menos que deveria, como por exemplo, no crime de bigamia, previsto no artigo 235 do Código Penal, onde também se pune a poligamia.

A interpretação extensiva não deve conflitar com o princípio da legalidade [19], que se desdobra no subprincípio da taxatividade da lei penal, assegurando que as normas penais incriminadoras devem ser "precisas, marcando exatamente a conduta que objetivam punir" [20].

Não sendo escopo do presente trabalho esboçar a discussão doutrinária existente sobre a possibilidade de interpretação extensiva da lei penal, informa-se apenas a linha de pensamento adotada neste trabalho. É possível a interpretação extensiva em sede penal, corroborada inclusive mediante o exemplo apresentado do crime de bigamia; contudo deve-se realizar a interpretação extensiva valendo-se do seguinte critério: caso a interpretação gramatical e a interpretação teleológica convirjam para um mesmo resultado, aplica-se o resultado da convergência, independente de beneficiar ou prejudicar o réu. Porém, caso não haja convergência das interpretações, adota-se o princípio do in dubio pro reu [21]. Busca-se, com a adoção destes critérios, identificar o "limite semântico do texto legal, além do qual não se pode estender a punibilidade, pois deixa de ser interpretação e passa a ser analogia" [22].

A questão que se coloca é: em face da proteção integral assegurada à criança e ao adolescente, em sede constitucional [23], é possível realizar interpretação extensiva do preceito primário da norma penal incriminadora, insculpido no artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente, para incluir as bebidas alcoólicas dentre os produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica?

A resposta a este questionamento passa pela realização da interpretação gramatical e da interpretação teleológica, buscando verificar se convergem ou se divergem na busca do alcance da norma penal.

A interpretação gramatical confunde-se com a identificação do alcance do termo "substância que cause dependência física ou psíquica" e já foi objeto de estudo neste trabalho [24], concluindo-se que as bebidas alcoólicas encontram-se fora dos produtos que contenham substâncias consideradas pela Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS como causadoras de dependência física ou psíquica e merecedoras de controle.

Realizando a interpretação teleológica, verifica-se que à criança e ao adolescente confere-se, em sede constitucional, proteção integral. A Carta Magna pretende assegurar proteção à criança e ao adolescente da forma mais ampla possível. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, os produtos que constam no artigo 81 são considerados como os que causam maiores efeitos deletérios às crianças e aos adolescentes, daí a proibição de venda destes produtos aos menores de 18 anos. De todos os produtos que estão no mercado, o Estatuto da Criança e do Adolescente elegeu estes como os de maior tutela, podendo alcançar inclusive a tutela penal, conforme o caso.

As bebidas alcoólicas, juntamente com os cigarros e demais derivados do tabaco representam um grave problema de saúde pública, acarretando doenças e diminuindo a qualidade de vida das pessoas. Além disso, justamente quando o indivíduo encontra-se em formação é que está mais suscetível a iniciar-se em alguma destas drogas lícitas. Não há justificativa que diferencie o tratamento atribuído à hidrocodona e ao álcool etílico, fazendo com que o primeiro enquadre-se no artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente e o segundo não. Plenamente justificada a tutela penal.

A finalidade da norma é que as crianças e os adolescentes não tenham acesso a qualquer substância que possa causar dependência física ou psíquica, independente do instrumento normativo utilizado para complementá-lo. Desta forma, verifica-se que, pela interpretação teleológica, justifica-se a aplicação da conduta prevista no artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente no caso de bebidas alcoólicas.

Utilizando o critério estabelecido anteriormente, tem-se que a interpretação gramatical assegurou a não aplicação do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente na hipótese de bebidas alcoólicas; enquanto que o resultado da interpretação teleológica foi contrário ao da interpretação gramatical. Uma vez que houve o conflito deve-se evitar a interpretação extensiva.

5.3 Utilização da argumentação manifestada pelo Superior Tribunal de Justiça para não aplicar a multa em decorrência de infração administrativa

A partir do entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que a venda de bebida alcoólica para criança e adolescente não se enquadra na conduta tipificada no artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente, foram observados julgados, onde a defesa buscou evitar a punição advinda de infração administrativa, amparadas no artigo 249 [25] e no artigo 258 [26] do Estatuto da Criança e do Adolescente. Entretanto o Superior Tribunal de Justiça não seguiu este raciocínio, informando, acertadamente, que a responsabilidade criminal e a responsabilidade administrativa são independentes.

"A venda de bebida alcoólica a menor constitui fato censurável criminal e administrativamente, sendo que esta última responsabilidade é fundamentada na proibição expressamente disposta no artigo 81, II, da Lei de tutela à criança e adolescente. Dessa forma, verifica-se que as alegações do recorrente visam elidir sua responsabilidade na esfera penal, que é inteiramente distinta da administrativa, de modo que tais argumentos não possuem o condão de afastar as conclusões a que chegou o acórdão recorrido, que diz respeito à apuração de infração administrativa prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente" [27].

5.4 Proposta de lege ferenda

O artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente deveria atingir também condutas onde se utiliza a bebida alcoólica? É outra discussão, de lege ferenda. Entende-se que sim, e indo mais além, deve-se estender a conduta de forma a englobar a nicotina, presente em produtos fumígemos derivados no tabaco.

Conforme demonstrado no item 5.2, as bebidas alcoólicas, juntamente com os cigarros e demais derivados do tabaco representam um grave problema de saúde pública, apesar de consideradas drogas lícitas. Os efeitos maléficos que estas substâncias causam no organismo [28] justificam a tutela penal, quando os destinatários destes produtos forem a criança e o adolescente, ainda mais quando se observa o alto índice de pessoas que começaram a utilizar estes produtos quando eram crianças ou adolescentes [29].

Apesar de tutelar o bem jurídico integridade física das crianças e dos adolescentes, o artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente atende à proteção difusa das crianças e dos adolescentes, sendo adequado que figurem na norma penal as principais substâncias que apresentem efeitos maléficos ao organismo e que sejam utilizadas por crianças e adolescentes, que são as bebidas alcoólicas e os produtos fumígemos derivados no tabaco.

Apenas com a alteração legislativa no disposto no artigo 81 e no artigo 243 é que será possível criminalizar a conduta de vender a criança e a adolescente bebidas alcoólicas e produtos fumígemos derivados do tabaco.

A proposta acrescenta um inciso ao artigo 81, que poderia ser o inciso VII, com os dizeres "cigarros, cigarrilhas, charutos ou de qualquer outro produto fumígeno derivado do tabaco" e modifica a redação do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente, retirando o trecho do caput com dizeres "produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida" e acrescentando em seu lugar o texto com dizeres "os produtos descritos nos incisos II, III e VII do artigo 81".

Sobre o autor
Erick Simões da Camara e Silva

Perito Criminal Federal, Mestre em Direito pela UNIMES/SP, mestre em Química pelo IME/RJ, pós-graduado em Direito pela UNISUL-LFG/SC, graduado em Direito pela UNIRIO/RJ e graduado em Engenharia Química pelo IME/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Erick Simões Camara. Vender bebidas alcoólicas a criança ou adolescente é contravenção, não crime.: Análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2338, 25 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13907. Acesso em: 22 nov. 2024.

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