SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Política criminal temerária. 3. Retorno da "prisão preventiva obrigatória" e as recentes reformas no processo penal. 4. Paralelo com a execução temporã da pena. 5 Conclusão. 6. Notas bibliográficas. 7. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
Nada obstante as violações aos princípios constitucionais reconhecidas incidenter tantum pelo Min. CELSO DE MELLO no HC 96.715 /SP, a interdição legal in abstrato da concessão de liberdade provisória no tráfico de drogas (art. 44 da Lei 11.343/06), inserida dentro do contexto do movimento da "Law and Order" nem ao menos se compatibiliza, em termos infraconstitucionais, com as características inerentes à prisão preventiva stricto sensu e, ademais, com as reformas no processo penal de agosto de 2008.
Como é de conhecimento comum, a Lei Instrumental Penal previa, em seu art. 312 primitivo, a chamada "prisão preventiva obrigatória" de quem fosse denunciado pela prática de crime para o qual fosse prevista pena máxima igual ou superior a dez anos; bastava a simples imputação por parte do Ministério Público para que se tivesse presente (em tese) a necessidade do recolhimento imediato do réu.
Esse nefasto panorama, no entanto, foi redimensionado pela chamada "Lei Fleury" (Lei nº 5.941/73) que, em plena ditadura, estabeleceu: ""réu primário e de bons antecedentes não precisa ir pra cadeia"; foi o primeiro golpe que o Diploma de 1941 tomou, pois, antes, se condenado, o réu iria automaticamente para cadeia.
Por sua vez, a novel Lei nº 11.689, de 2008, talvez influenciada pela declaração de inconstitucionalidade da "prisão ex lege" no Leading Case da ADIn nº 3.112/DF julgada pelo Pleno do STF, extinguiu qualquer possibilidade de prisão ex vi legis na sistemática processual penal pátria dos dias atuais. Um dos principais motivos dessa aludida extinção foi que a presunção do periculum libertatis do acusado consubstanciava, pois, violação ao princípio constitucional da presunção de inocência.
Portanto, contrastando com aquele mare magnum de violações principiológicas destacadas pelo eminente Min. CELSO DE MELLO e reconhecidas, também, pelo Min. EROS GRAU, a questão que se suscita é, para um penalista, primária e inarredável, sendo necessário, para um maior esclarecimento, um "retorno ao passado" (à época da prisão preventiva compulsória) à luz das recentes reformas no diploma processual repressivo.
2. POLÍTICA CRIMINAL TEMERÁRIA
A Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06), em que pese tratar-se de lex specialis em relação ao diploma processual penal, ao não admitir a liberdade provisória, o indulto, o sursis, o recurso em liberdade e nem a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos (em seu art.44), demonstra a existência de uma política criminal de drogas inconsistente, temerária, reprodutora de violência; uma política criminal flexibilizadora dos direitos [01] e das garantias processuais, seletiva e de controle social.
Ora, quem vive em um Estado Democrático de Direito não tem outra opção a não ser aceitar, aplaudir e estimular o garantismo penal. Ler BECCARIA ou FERRAJOLI e não concordar com os seus argumentos é muito difícil. E mais: é praticamente impossível ler os textos que defendem o direito penal do inimigo e não ficar assustado com aquela nefasta doutrina, inserida no contexto do movimento da "Lei e da Ordem" [02].
No entanto, com as alterações trazidas à baila pela Lei nº 11.464/07 não resta dúvida de que o juiz poderá conceder ao réu liberdade provisória, fundamentadamente. A possibilidade de progressão de regime, até então vedada e a possibilidade de o réu em crimes hediondos apelar em liberdade são indicativos que corroboram com tal assertiva. (art. 2º, §§ 2º e 3º, da Lei dos Crimes Hediondos)
Ademais, sob outra ótica e, na esteira de Paulo RANGEL [03], se a prisão em flagrante for convertida em prisão preventiva, nada obsta, posteriormente, a sua revogação caso desapareça sua necessidade (por ausência de legalidade, homogeneidade ou instrumentalidade). Aliás, a decisão que decreta a prisão preventiva tem o caráter rebus sic stantibus; nesse sentido, de toda a sorte, seria concedida liberdade ao acusado de tráfico de drogas. O teor da Súmula 697 do STF [04], por sua vez, reforça tal constatação.
De qualquer modo, uma das principais consequências nefastas dessa tal política temerária é a manutenção da prisão do acusado sem que haja homogeneidade (proporcionalidade da medida) e instrumentalidade (visa acautelar o processo) do seu carcer ad custodiam, implicando, assim, verdadeira contradictio in terminis, nas palavras do Des.RUI RAMOS RIBEIRO [05].
Sobre o conceito: contradictio in terminis, ademais, é elucidativa a lição do Min. EROS GRAU, quando do julgamento do HC 94.916 /RS, no sentido de que "a prisão preventiva antecipa o restabelecimento a longo termo do direito; promove imediatamente a ordem. Mas apenas imediatamente, já que haverá sempre o risco, em qualquer processo, de ao final verificar-se que o imediato restabelecimento da ordem transgrediu a prória ordem, porque não era devido". (destacamos)
Nesse ínterim, a prova inequívoca de que a vedação da liberdade provisória faz parte de uma política flexibilizadora dos direitos pode ser verificada pela análise perfunctória do HC 99.881/MT, no STF, relator o Min. Ricardo LEWANDOWSKI.
Em suma, o paciente foi preso em flagrante sendo acusado de tráfico de drogas (nada obstante a quantidade ínfima de cocaína); teve o pedido de liberdade provisória negado pelo juízo a quo. Posteriormente, todos os seus Habeas Corpus (Tribunal de Justiça, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal) impetrados também foram denegados com o mesmo fundamento: a letra fria da lei.
Ao final, foi absolvido da acusação de tráfico pelo juízo de primeiro grau, sendo que, inclusive, o Parquet (em respeito ao disposto no art. 257, inciso II, do CPP, incluído pela Lei nº 11.689/08), atuando, portanto, como custos legis) pleiteou a sua absolvição alegando a inexistência de provas suficientes. Ora, manter um acusado preso durante todo o processo, invocando argumentos de lógica formal significa, com a devida vênia, um nítido desrespeito às características e funções da prisão preventiva; consubstanciando, pois, contradictio in terminis.
Nesse sentido, Antônio Magalhães GOMES FILHO destaca que é importante evitar que a utilização indiscriminada das medidas de natureza cautelar no processo penal constitua instrumento para a imposição de sanções atípicas que, "sob a justificação da urgência da necessidade, acabam por subverter os princípios fundamentais do Estado de Direito, consagrando algo próximo á idéia de justiça sumária". [06]
Percebe-se, desse modo, que essa política criminal influenciada pelo movimento da "Lei e da Ordem" e tão criticada pela doutrina nacional, não pode de modo algum encontrar respaldo no Supremo Tribunal Federal. Ora, se responsáveis existem pela criminalidade, não são apenas os criminosos, mas todos os que (ainda que no desempenho de alguma competência formal bem justificada) não enxergam além da pena e que singelamente silenciam diante da realidade eliminadora de vida, de dignidade, de oportunidade e de igualdade.
3. RETORNO DA PRISÃO PREVENTIVA OBRIGATÓRIA E AS REFORMAS NO PROCESSO PENAL
É inquestionável que no sistema processual penal da atualidade a prisão preventiva se caracteriza também pela facultatividade. O Código Processual Penal de 1941, no entanto, editado na atmosfera fascista do Estado Novo, em sua redação original, utilizando a forma imperativa do verbo (art. 312), dispunha que "a prisão preventiva será decretada" nos crimes com a pena máxima igual ou superior a dez anos de reclusão. Havia, portanto, algumas exceções à facultatividade da custódia preventiva face à possibilidade de uma prisão ex lege.
A esse respeito, Frederico MARQUES (1960, p.227) explica que a prisão preventiva compulsória é um dos exemplos desse autoritarismo processual que devemos à política direitista do Estado Novo. Segundo ele, "transladada do processo penal italiano da era de Mussolini, essa medida de coação é de profunda iniqüidade e pode dar margem à prática de irreparáveis injustiças".
Anote-se, à guisa de esclarecimento técnico que, na esteira de Eugênio Pacelli de OLIVEIRA [07], não se trata, a bem da verdade, de prisão preventiva obrigatória. Fosse assim, mesmo aquele que se encontrasse em liberdade poderia ser recolhido à prisão, após o oferecimento da denúncia. O que se está a afirmar, presentemente, é que "o tratamento da manutenção do flagrante é que se equipara à antiga prisão obrigatória".
Ora, tal como na "prisão preventiva compulsória", o art. 44 da Lei de Drogas presume, ante tempus, a existência do periculum libertatis; o que está vedado pelo art. 5º, inciso LXI, da Lex Major, ao exigir decisão fundamentada da autoridade judiciária competente. Trata-se, pois, de uma "indevida solução padronizada" (que transforma o magistrado num escravo da lei, sendo refém apenas de sua própria consciência) a ser aplicada para quem for preso em flagrante na mercancia de drogas ilícitas.
E essa presunção da presença do periculum libertatis no caso concreto, diga-se, foi extinta pelas recentes reformas no processo penal, haja vista que a revogação dos parágrafos do art. 408 da Lei Instrumental Penal expressa a inadmissibidade da prisão processual como efeito automático da lei, isto é, sem motivação. Prisão ex vi legis já não mais deve existir nos dias de hoje: afronta a dignidade humana (núcleo axiológico da Lex Fundamentalis) a manutenção ou decretação de uma prisão sem necessidade.
Ad argumentandum, quanto à força do princípio da dignidade humana, se o STF reconhece a violação a tal primado quando o acusado é processado sem que haja justa causa, sob pena de o homem ser convolado, nas palavras do Min. GILMAR MENDES, "em objeto do processo" (HC 86.395/SP), o que se dirá, então, se for mantido preso desnecessariamente durante todo o processo? Nesse mesmo lume, aliás, já destacou o Min. EROS GRAU: "nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direito. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais".
No entanto, outros princípios constitucionais também são violados pela chamada "prisão compulsória" (a qual a reforma processual extinguiu por completo), tais como: ampla defesa e contraditório (art. 5º, LV, da CF) os quais’, nas palavras do Min. RICARDO LEWANDOWSKI, "podem ser exercidos em todas as instâncias jurisdicionais, até a sua exaustão". (ADIN 3.112/DF)
Ora, a ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por que não haveria de ser assim? "Se é ampla, abrange todas e não apenas algumas dessas fases", conforme destacou o Min. EROS GRAU no julgamento do HC 84.078/RS.
Em outro nível de argumentação, dissertando agora acerca do teor do art. 21 do Estatuto do Desarmamento, o processualista Paulo RANGEL preleciona que o aludido dispositivo cria o frágil e falso paradigma de que a lei pode tudo e que suas palavras têm força suficiente para dar segurança jurídica à sociedade, "como em um simples passe de mágica" [08].
Em outra passagem, o representante do Parquet conclui que, ao proibir a liberdade provisória para esses crimes o legislador restabelece a prisão obrigatória no processo penal "o que caracteriza um retrocesso social inadmissível em um Estado Democrático de Direito" em sua visão. [09]
E, como se sabe, o Pacto de San José da Costa prevê expressamente o princípio da vedação ao retrocesso. Na velha pirâmide jurídica de Hans KELSEN [10]a lei válida era apenas formalmente válida. Agora, deve respeitar materialmente tanto a Lex Mater quanto os tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil (duplo limite material).
Vê-se, portanto, que não tem qualquer lógica a vedação in abstracto da concessão de liberdade provisória, pois se o art. 5º, § 2º da CF constitui uma "cláusula de abertura", a regra interpretativa pro homine (da norma mais favorável à liberdade) tem primazia no caso concreto, seja porque o art. 29 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos assegura o conceito de "normas de reenvio recíprocas", seja porque a República Federativa do Brasil rege-se, em suas relações internacionais, pela prevalência dos direitos humanos (art.4º, II, do Texto Magno).
Em outra análise, agora sob a ótica de Alberto Silva FRANCO, a norma da Lei de Drogas é inconstitucional, pois mesmo em se considerando o tratamento diverso desejado pelo constituinte para esses crimes (inciso XLII, do art. 5º, da CF), "não há – nem mesmo poderia haver, porquanto se consubstanciaria em verdadeira contradição constitucional interna – prisão cautelar obrigatória, ante tempus, que impeça, de modo apriorístico e sem considerações para o caso concreto, a concessão de liberdade provisória" [11]. (sem grifos no original)
É pretensa, do mesmo modo, a violação ao princípio do due process of law. Como afirma Odone SANGUINÉ [12], a impossibilidade de concessão da liberdade provisória equivale à privação de liberdade obrigatória infligida como "pena antecipada", sem prévio e regular processo e julgamento. Nas palavras do autor, "é uma espécie de bill of attainder (reconhecido como abusivo pela jurisprudência norte-americana"), ou seja, um ato legislativo que implica considerar alguém culpado diretamente e destinado a infligir-lhe uma sanção sem processo ou decisão judicial".
A propósito, afastando esse excesso do legislador ordinário, o Min.EROS GRAU, em interessante voto no HC 94.916/RS, aduziu que, apesar da controvérsia a respeito da possibilidade, ou não, da liberdade provisória em caso de prisão em flagrante por tráfico ilícito de entorpecentes, o writ deveria ser concedido, sob pena de ofensa à dignidade da pessoa humana; assim, a vedação, no caso, ainda que pudesse ser adequada à regra, seria incompatível com o Direito.
Por fim, todos os entendimentos acima perfilhados estão em perfeita consonância com a posição reiterada pelo Min. CELSO DE MELLO quando do julgamento do HC 98.382/SP, no sentido de que o processo penal, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada por padrões normativos consagrados pela Constituição e pela lei, só pode ser concebido (e assim deve ser visto) como "instrumento de salvaguarda da liberdade do réu". [13]
4. PARALELO COM A EXECUÇÃO TEMPORÃ DA PENA
Quanto ao acusado, se a Carta Magna presume sua inocência, enquanto não houver trânsito em julgado da sentença condenatória, não tem lógica, é absurdo, um verdadeiro não-senso, "frauda a finalidade da lei e ilude as garantias da liberdade" [14] a exigência daquela prisão pelo simples fato de a lei determinar, abstratamente, que tais crimes são insuscetíveis de liberdade provisória.
Haveria uma absurda presunção de perturbação da ordem pública. Essa, aliás, a ratio essendi do referido dispositivo: uma presunção, a priori, da existência do periculum libertatis, de que, se solto estiver, o acusado perturbará a garantia da ordem pública. Custódia em face da pretensa gravidade do delito, meramente afirmada, não guarda relação com a função cautelar no interesse do processo; e sim, com execução temporã da pena.
Mas, se a Lei Maior presume a inocência, como pode lei infraconstitucional, ou até mesmo o direito pretoriano, invocar presunção contrária àquela? Como sempre faz questão de lembrar o processualista Aury LOPES JR., é o Código de Processo Penal que deve ser interpretado conforme a Constituição Federal, e não o contrário [15].
Apenas para destacar, o Supremo Tribunal Federal consolidou no julgamento do HC 84.078/MG o direito de recorrer em liberdade e, quando do julgamento do HC 97.457/MT, permitiu que acusados de homicídio qualificado (crime hediondo) recorressem extraordinariamente em liberdade por incontestável força do princípio da presunção de inocência. Por que, então, agora no âmbito da Lei de Drogas, a presunção de periculosidade do agente deve prevalecer sobre tal princípio constitucional?
Esse é o paralelo, pois, que se faz entre a vedação ante tempus da liberdade provisória no tráfico de drogas e a declaração de inconstitucionalidade da chamada "execução provisória da pena", em meio ao "direito de recorrer em liberdade" reconhecido pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 84.078/MG.
Ora, nas palavras do eminente Min. EROS GRAU, "a antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados --- não do processo penal", sem embargo dos inúmeros entendimentos em sentido contrário.
No Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, por exemplo, a Desa. SHELMA LOMBARDI DE KATO [16], sustentou no julgamento do HC 115.087/2008 que, por "faz" ou por "nefaz", pelos conhecidos entraves processuais que fazem da justiça brasileira em elefante branco, o Judiciário não consegue fazer cumprir sua missão, deixando o Estado de atentar para o fato de que os direitos constitucionais são direitos humanos.
Assim, tais direitos, na concepção da Desembargadora, "se assemelham a uma via de duas mãos, na qual igualmente transitam os direitos das supostas vítimas", sendo que "nenhum direito deve ser suprimido nem relegado, em desconsideração a qualquer das partes".