4. Embriaguez e imputabilidade penal.
Segundo o art. 28, inciso II, do Código Penal, a embriaguez, voluntária ou culposa, causada pelo álcool ou substância de efeitos análogos, não exclui a imputabilidade.
Destarte, pela legislação atual, a imputabilidade subsiste quando a pessoa ingere bebida alcoólica voluntariamente, tenha ou não o fito de inebriar-se, e não importando se a embriaguez subsequente seja completa ou incompleta.
Por outro lado, os parágrafos primeiro e segundo do precitado dispositivo estabelecem que a embriaguez acidental pode isentar o agente de pena ou diminuí-la, conforme, respectivamente, seja completa ou incompleta.
A primeira hipótese, qual seja, de embriaguez completa decorrente de caso fortuito ou força maior, afasta a culpabilidade.
"Trata-se de caso de exclusão da imputabilidade e, portanto, da culpabilidade, fundado na impossibilidade de consciência e vontade do sujeito que pratica o crime em estado de embriaguez completa acidental" (MIRABETE, 2004, p. 223).
No caso do art. 28, § 2º, a redução de pena é obrigatória. Consubstancia-se em direito subjetivo do condenado, e não discricionariedade do julgador. O verbo "poder" refere-se ao quantum da diminuição (um a dois terços).
Posto isso, salienta-se que diferente, porém, é o tratamento penal da embriaguez patológica e do alcoolismo crônico:
Quanto ao art. 28, deve ser efetuada uma interpretação necessariamente restrita, excluindo-se do âmbito do dispositivo a embriaguez patológica ou crônica. Fala-se em embriaguez patológica como aquela à que estão predispostos os filhos de alcoólatras que, sob efeito de pequenas doses de álcool, podem ficar sujeitos a acessos furiosos. Na embriaguez crônica, há normalmente um estado mental mórbido (demência alcoólica, psicose alcoólica, acessos de delirium tremens etc.), e o agente poderá ser inimputável ou ter a culpabilidade reduzida (art. 26) (MIRABETE, 2004, p. 223).
Note-se que no caso da embriaguez patológica, pequenas doses podem fazer com que a pessoa perca totalmente o controle de si. Já no alcoolismo crônico, os danos ao sistema nervoso são permanentes. Ele consiste numa "[...] deformação persistente do psiquismo, assimilável a verdadeira psicose, e como psicose, ou doença mental, deve ser juridicamente tratado" (BRUNO, 1967, p. 158).
A respeito do alcoolismo crônico, disserta Fragoso:
O alcoolismo crônico constitui caso de doença mental, que exclui ou atenua a imputabilidade. O álcool gera dependência física, com graves conseqüências sobre o processo volitivo, e conseqüentemente, sobre a capacidade de autogoverno. Esta solução não permite dúvidas. Nestes casos, no entanto, será extremamente mais difícil a já árdua tarefa de saber se o agente tinha capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se segundo tal entendimento (FRAGOSO, 2003, p. 251).
Assim, as duas figuras são equiparadas à doença mental, aplicando-se o disposto no art. 26 do Código Penal.
5. A teoria da actio libera in causa.
O momento de aferição da culpabilidade do sujeito ativo da conduta delituosa é o tempo da ação.
Pode ocorrer, entretanto, que o agente voluntariamente se coloque em situação de inimputabilidade. "É célebre a hipótese do sujeito que se embriaga voluntariamente para cometer o crime, encontrando-se em estado de inimputabilidade no momento de sua execução (ação ou omissão)" (JESUS, 2003, p. 472).
Surge a questão das actiones liberae in causa, sive ad libertatem relatae (ações livres em sua causa, i. e., relacionadas com a liberdade), ou simplesmente actio libera in causa. São casos de conduta livremente desejada, mas cometida no instante em que o sujeito se encontra em estado de inimputabilidade, i. e., no momento da prática do fato o agente não possui capacidade de querer e entender. Houve liberdade originária, mas não liberdade atual (instante do cometimento do fato) (JESUS, 2003, p. 472, grifo do autor).
Narcélio de Queiroz, citado por Haroldo Caetano da Silva e Nelson Hungria, conceitua as "ações livre na causa" da seguinte maneira:
São os casos em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo ou sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou, ainda, quando a podia ou devia prever (SILVA, 2004, p.79; HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 169).
A actio libera in causa, segundo Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli,
[...] pretende que aquele que comete um ato típico e antijurídico (um injusto) em estado de embriaguez completa (inimputabilidade, ou seja, incapacidade de culpabilidade [...]), deve ser responsabilizado pelo injusto cometido, sempre que o estado de embriaguez tenha sido atingido voluntariamente pelo autor, e não por erro ou acidente.
Segundo esta doutrina, aquele que bebe álcool de forma a causar em si mesmo uma profunda perturbação da atividade consciente, semelhante à alienação mental, e neste estado mata ou fere alguém deve ser punido como autor de um homicídio ou lesões, porque o estado de inimputabilidade não o beneficia, em virtude de tê-lo querido (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p.452).
Da teoria da actio libera in causa, decorre que o dolo e a culpa são deslocados para a vontade anterior ao estado etílico completo.
São elementos da actio libera in causa, destarte: a) uma conduta livre do agente, que determina sua própria incapacidade de culpabilidade; b) uma conduta criminosa não livre, praticada em estado de inimputabilidade; e c) o nexo causal, a ligação entre a conduta livre, cometida pelo sujeito enquanto imputável, e o evento delituoso praticado quando sua consciência já havia decaído.
5.2. Direito comparado.
As disposições do nosso Código Penal concernentes à embriaguez foram inspiradas pela legislação italiana. Tanto no Brasil quanto na Itália: a) o ébrio é punido como imputável; b) a embriaguez completa derivada de caso fortuito ou de força maior exclui a imputabilidade; e c) agrava-se a pena no caso de embriaguez preordenada.
O direito espanhol, por seu turno, adota sistemática interessante, afastando a responsabilidade criminal nos casos de embriaguez voluntária, desde que o estado de inconsciência não tenha sido buscado com o propósito do cometimento do crime, ou que o agente não tenha previsto a possibilidade de cometê-lo, ou ainda se estava em síndrome de abstinência (BITENCOURT; CONDE, 2004, p. 392; FROTA, 2007).
No Código Penal espanhol, portanto, a teoria da actio libera in causa tem aplicação exatamente nas hipóteses para as quais foi criada, ou seja, quando a intoxicação alcoólica foi buscada com o fito de cometer o crime, ou quando o agente, mesmo não querendo, previa ou podia prever sua prática.
Por outro lado, a Alemanha, a Áustria e a Suíça trilharam outro caminho para legitimar a punição do ébrio, pois, nesses países, a embriaguez completa exclui a imputabilidade. Todavia, ela própria é tida como crime, desde que tenha sido provocada de maneira voluntária ou culposa. "Na hipótese, a razão de ser da punibilidade reside no fato de o agente embriagar-se culpavelmente, considerando a ação típica praticada simples condição objetiva de punibilidade" (SILVA, 2004, p. 98). A legislação penal dos precitados países não comina pena em abstrato para a embriaguez, cuja reprimenda guarda correspondência com a sanção prevista para a infração praticada.
Idêntico é o sistema português, com a exceção de que a legislação lusitana já gradua a pena, que não pode ultrapassar aquela prevista para o crime praticado, limitando-se ao teto de 5 (cinco) anos de privação de liberdade e 600 dias-multa.
5.3. Justificativas.
No princípio se buscou justificar a punição dos atos cometidos em estado de embriaguez com base na responsabilidade penal objetiva. Entretanto, o direito penal hodierno já não permite isso, pois a execração da responsabilidade sem culpa é inerente a qualquer Estado Democrático de Direito que se pretenda digno desse nome.
Também não se pode, pura e simplesmente, aplicar uma pena a um sujeito inimputável (ainda que seja deveras difícil auferir se a embriaguez do indivíduo foi em grau tão elevado a ponto de considerar-se completa, ou seja, apta a retirar sua capacidade de consciência).
Destarte, a doutrina buscou outras justificativas para a punição das actiones liberae in causa.
Nelson Hungria pondera que a ameaça penal teria o condão de, por si só, inibir e prevenir a embriaguez e seus efeitos maléficos, tendo o legislador acertado ao equiparar a vontade do ébrio à vontade condicionante da responsabilidade (HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 311). Entretanto, se a ameaça penal, enquanto tal, realmente tivesse essa efetividade, nossos cárceres estariam vazios.
Alguns autores ainda buscaram justificar a punibilidade das ações livre na causa "[...] pela vontade residual no agente embriagado, um resíduo de consciência e vontade que não lhe retiraria a imputabilidade" (MIRABETE, 2004, p. 222, grifo do autor).
Nesse sentido, Nelson Hungria pondera:
Conforme observa Manzini, desde que o estado de perturbação da consciência não suprime a falta de movimento corpóreo, sempre fica, segundo a lição científica, um resquício de subconsciência, bastante para que a ação, ao invés de puro fortuito psicológico, se ligue à vontade originária (HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 170, grifo do autor).
Adiante, na sequencia do desenvolvimento de sua obra, o mestre repete:
Cumpre notar, além disso, que, segundo a lição da experiência, a vontade do ébrio não é tão profundamente conturbada que exclua por completo o poder da inibição, como acontece nas perturbações psíquicas de fundo patológico. É o que justamente acentua Mezger: "A experiência ensina que na embriaguez é possível e pode ser exigido um grau mais alto de autocontrole do que, por exemplo, nas alterações de consciência de índole orgânica. As perturbações por intoxicação de álcool (acrescente-se: et similia) sempre ficam, em maior ou menor medida, na superfície". (HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 310, grifo do autor).
Talvez tenha sido nisso que o legislador de 1940 pensou, a teor da Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal de então:
A propósito, não é de se esquecer a opinião de Battaglini (Diritto penale, p. 125), que, se contém algum exagero, não deixa de ser útil advertência: "...o ébrio, com inteligência suprimida e vontade inexistente, é uma criação da fantasia: ninguém jamais o viu no banco dos réus" (PIERANGELI, 2004, p. 416, grifo do autor).
Todavia, tem razão Mirabete ao ponderar que "essa opinião, se aceita, tornaria dispensável a invocação do princípio da actio libera in causa" (MIRABETE, 2004, p 222).
Assim, as três principais bases de sustentação da teoria da actio libera in causa são as seguintes:
a) o dolo ou culpa que tem o agente na fase inicial (imputável) prolonga-se por todo o processo causal por ele provocado, alcançando o fato praticado em estado de perturbação da consciência;
b) a ação pela qual o agente se põe voluntariamente em condição de incapacidade já constitui ato de execução do fato típico visado, sendo suficiente para justificar a punibilidade;
c) o agente, no momento em que ainda é imputável, faz de si mesmo mero objeto material para a prática do crime, tornando-se instrumento inimputável de um agente mediato imputável (SILVA, 2004, p.90).
No que diz respeito à primeira posição, tem-se que existiria nexo causal entre a ação ou omissão imediatamente produtora do resultado antijurídico e o ato de o agente se colocar em estado de inconsciência, que foi acompanhado, desde o início, de dolo ou culpa:
[...] mesmo quando não haja preordenação, não fica excluída, nos crimes comissivos, a responsabilidade a título de dolo, desde que, ao colocar-se voluntariamente em estado de conturbação psíquica, o indivíduo soube que estava criando o risco, que aceitou, de ocasionar resultados antijurídicos. Posto que haja relação causal entre o voluntário estado de inconsciência e a conduta produtiva do evento lesivo, não há por que desconhecer a culpabilidade: sob a forma de dolo, se o evento corresponde à vontade conturbada, que se alia à atitude psíquica inicial de aceitação do risco; sob a forma de culpa stricto sensu, se o evento resulta de transitória perda do poder de atenção inerente ou conseqüente ao estado de perturbação mental voluntariamente provocado (HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 170-171, grifo do autor).
De outro tanto, entendem os seguidores da segunda linha de justificativa que o ato de embriagar-se configura início de execução do crime pretendido. Conforme Narcélio de Queiroz, citado por Haroldo Caetano da Silva, "na actio libera in causa a ação inicial caracterizante já é parte da execução do delito, está incluída na operação delituosa e é a sua base" (SILVA, 2004, p. 92).
Por fim, e principalmente, se busca justificar a actio libera in causa com base na noção de autoria mediata.
Explica Gerland que, se o agente se coloca em estado de não imputabilidade e nessa situação pratica o delito, que previu ou devia ter previsto, está ele se servindo de si mesmo para alcançar o resultado ilícito, no caso de o resultado ser pretendido (é instrumento do crime, como diz Mayer). Penalmente, é decisivo o primeiro momento, em que o agente se coloca em estado de inimputabilidade, uma vez que aí ainda existe imputabilidade (SILVA, 2004, p.84).
Os contrapontos às justificações da teoria da actio libera in causa serão apresentados após a análise de como ela veio expressa na nossa legislação.
5.4. Artigo 28, inciso II, do Código Penal brasileiro: uma hipótese de responsabilidade penal objetiva?
O simples fato de agente embriagar-se voluntariamente, colocando a si próprio em estado de inconsciência e, nesse estado, cometer um crime, não autorizaria a punição à luz da teoria da actio libera in causa. Exigir-se-ia que, enquanto ainda existisse imputabilidade, houvesse dolo ou culpa ligados ao fato.
Nesse sentido é a lição de Aníbal Bruno:
[...] será sempre necessário que o elemento subjetivo do agente, que o prende ao resultado, esteja presente na fase de imputabilidade. Não basta, portanto, que o agente se tenha posto, voluntária ou imprudentemente, em estado de inimputabilidade, por embriaguez ou outro qualquer meio, para que o fato típico que ele venha a praticar se constitua em actio libera in causa. É preciso que esse resultado tenha sido querido ou previsto pelo agente, como imputável, ou que ele pudesse prevê-lo como conseqüência de seu comportamento. Esse último é o limite mínimo da actio libera in causa, fora do qual é puro fortuito (BRUNO, 1967, p. 52).
Assim, "os crimes praticados em estado de embriaguez voluntária ou culposa, em que não há, na fase de imputabilidade, dolo nem culpa em relação ao fato punível, não dever ser incluídos na teoria da actio libera in causa" (BRUNO, 1967, 55).
Segundo proposta de Haroldo Caetano da Silva, a leitura atual da teoria da actio libera in causa, portanto, seria a seguinte:
Se a pessoa embriaga-se voluntariamente, com o fim de cometer o crime, responderia a título de dolo, com a pena agravada. Se o sujeito embriaga-se voluntariamente, sem o fim de cometer o crime, mas prevendo que poderia praticá-lo, responde a título de culpa. Se o agente embriaga-se voluntaria ou culposamente, sem prever, mas devendo-o, ou prevendo, mas esperando que o crime não aconteça, a responsabilidade também se dá a título de culpa. Se a embriaguez decorre de caso fortuito ou força maior, a imputabilidade é excluída. Mas se, apesar de a embriaguez for voluntária, o autor, enquanto imputável, sequer imaginava que poderia cometer um delito, o fato não pode ser punido a título de actio libera in causa (SILVA, 2004, p. 104).
Entretanto, da literalidade do art. 28, inciso II, do Código Penal, não é o que ocorre.
Em sua origem, a teoria da actio libera in causa deveria fundamentar a punibilidade nos casos de embriaguez preordenada, em que o indivíduo "[...] se embriaga voluntariamente para, em estado de inconsciência, praticar uma ação ou omissão criminosa" (BRUNO, 1967, p. 51).
Entretanto, o que o art. 28, inciso II, do Código Penal, fez, foi estender a aplicação da teoria a todos os casos de embriaguez voluntária, mesmo que o autor, enquanto consciente, sequer tivesse cogitado da possibilidade de cometer um crime, inexistindo, portanto, antes do estado de não imputabilidade, qualquer elemento subjetivo (dolo ou culpa) que o ligasse à conduta não livre.
Destarte, nossa legislação estaria a consagrar uma hipótese de responsabilidade penal objetiva:
Para que haja responsabilidade penal no caso da actio libera in causa, é necessário que no instante da imputabilidade o sujeito tenha querido o resultado, ou assumido o risco de produzi-lo, ou o tenha previsto sem aceitar o risco de causá-lo ou que, no mínimo, tenha sido previsível. Na hipótese de imprevisibilidade, que estamos cuidados, não há falar-se em responsabilidade penal ou em aplicação da actio libera in causa. Assim, afirmando que não há exclusão da imputabilidade, o Código admite responsabilidade penal objetiva (JESUS, 2003, p. 513, grifo nosso).
As situações em que o agente não quis, nem previu, enquanto imputável, a ocorrência do crime praticado em estado de não culpabilidade, na verdade, não apenas caracterizam a sempre repugnante responsabilidade penal objetiva, como sequer podem ser consideradas como hipóteses de actiones liberae in causa.
Nas palavras de Aníbal Bruno:
Esses casos, o nosso Código os resolve dispondo que a embriaguez voluntária ou culposa não exclui a responsabilidade penal, solução que a Exposição de Motivos do Código italiano toma por hipótese de actio libera in causa. A Exposição de Motivos do nosso Código segue a mesma interpretação, adotando para esse instituto um conceito amplíssimo. [...].
Mas não só a hipótese não pode ser admitida na categoria da actio libera in causa, como também as conseqüências que dela decorrem são diversas das que derivam da admissão desse instituto.
A punição de crime praticado em estado de embriaguez plena, quando o agente na fase de imputabilidade precedente não quis nem previu o resultado, nem este era previsível em vista de circunstâncias particulares em que se encontrasse o agente, foge ao princípio da culpabilidade, mesmo na espécie da actio libera in causa (BRUNO, 1967, p. 151-153, grifo do autor).
Ao tratar o ébrio voluntário ou culposo como se imputável fosse, o Código Penal recorreu a uma ficção que viola o princípio da culpabilidade, e "[...] pune o ato do ébrio pelo seu efeito objetivo, desprezando a circunstância da ausência do elemento subjetivo, que, no sistema do Código, seria necessário para a incriminação do fato" (BRUNO, 1967, p. 156).
Em igual sentido são as conclusões de Aberto Silva Franco:
[...] o agente não tinha em mente, ao tomar a bebida alcoólica, a prática de um fato criminoso, o qual vem, contudo, a cometer no período em que estava submetido à intoxicação alcoólica. O legislador, fazendo uso de uma verdadeira ficção jurídica (deu por imputável que, na realidade, não o era), considerou-o, nas duas hipóteses, como portador tanto de capacidade de entender o caráter ilícito do fato, como da capacidade de determinar-se conforme esse entendimento. Transferiu, por isso, o juízo da imputabilidade do tempo da ação ou da omissão para um momento precedente, ou seja, para o da ingestão da bebida alcoólica ou da substância equivalente. É evidente que a deslocação no tempo desse juízo não bastou para camuflar a consagração legislativa de uma hipótese de imposição de pena, por pura responsabilidade objetiva o que colide francamente com o princípio do nullum crimen sine culpa [...] (FRANCO, 2001, p. 468).
O autor conclui que "[...] a embriaguez voluntária ou culposa, enquanto hipótese de responsabilidade pelo mero resultado, contraria a letra e o próprio espírito da Constituição Federal" (FRANCO, 2001, p. 469).
E conforme Pierangeli:
Desde logo, queremos ressaltar ter o legislador de 1984 modernizado a Parte Geral do Código Penal de 1940. Esta estruturava-se sobre o Código Rocco, retrato de um regime totalitário então vigorante naquele país, que merecia adoção aqui, no Brasil, em face do Estado Novo, implantado por Getúlio Vargas a partir de 1937, este apresentando as características fascistas que marcaram o regime italiano.
Mas, é forçoso reconhecer que a Comissão Revisora, mesmo tendo à mão os Códigos alemão e austríaco, ambos de 1975, e o português, este de 1982, preferiu perseguir o mau caminho da legislação anterior, reproduzindo quase ipsis verbis o texto da legislação ab-rogada, perseverando, dessarte, pela senda do versari in re illicita, ou seja, pelo domínio da responsabilidade penal objetiva, inconcebível em todo o Estado de direito ou de forma democrática de governo [...] (PIERANGELI, 1992, p. 301).
Dessarte, "[...] forçoso é o reconhecimento de ter o legislador de 1984 consagrado, pela via legislativa, – o que torna a adoção mais grava – uma imposição de pena forjada em pura responsabilidade objetiva (PIERANGELI, 1992, p. 301).
César Roberto Bitencourt e Francisco Muñoz Conde, por sua vez, criticam não exatamente o texto legal, mas a via interpretativa adotada pelos tribunais:
E quando há imprevisibilidade não se pode falar de actio libera in causa, diante da impossibilidade de se relacionar esse fato a uma formação de vontade contrária ao direito, anterior ao estado de embriaguez, insto é, quando o agente encontrava-se em perfeito estado de discernimento. No entanto, os tribunais pátrios não têm realizado uma reflexão adequada desses aspectos, decidindo quase que mecanicamente: se a embriaguez não é acidental, pune-se o agente. Se houve ou não previsibilidade do fato no estágio anterior à embriaguez, não tem sido objeto de análise. É muito fácil: O Código diz que a embriaguez voluntária ou culposa não isenta de pena, ponto final. O moderno Direito Penal há muito está a exigir uma nova e profunda reflexão sobre esse aspecto, que os nossos tribunais não têm realizado (BITENCOURT; CONDE, 2004, p. 391).
Nelson Hungria, em seus "Comentários ao Código Penal", todavia, após citar a posição de Basileu Garcia, (que, por sinal, era exatamente a mesma dos autores precitados), dele discordava, sustentando que o conceito de Narcélio de Queiroz é amplo o suficiente para abranger as hipóteses de embriaguez voluntária ou culposa, mesmo sem intenção ou previsão da produção de um resultado criminoso. A responsabilidade do agente não seria objetiva, mas seria ditada por ampliação do próprio critério voluntaristico: o voluntário abuso do álcool é o primeiro anel de uma cadeia causal que liga a embriaguez ao crime (HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 311-312).
Data venia, ao contrário do que pretende o mestre Nelson Hungria, o conceito formulado por Narcélio de Queiroz é taxativo no que diz respeito aos casos em que a teoria da actio libera in causa se aplica, quais sejam, quando o agente busca a embriaguez propositadamente, com o objetivo de produzir o resultado lesivo, ou, mesmo quando não querendo o resultado, podia ou devia prevê-lo.
O próprio Heleno Cláudio Fragoso, na parte dos "Comentários ao Código Penal" que lhe competia, também reconhecia na espécie uma hipótese de responsabilidade objetiva:
As disposições do CP vigente sobre embriaguez são oriundas do CP italiano (arts. 91/93) e conduzem a intolerável responsabilidade objetiva. Somente quando completa e fortuita, exclui a embriaguez a imputabilidade. Fora daí, e excluída, no mesmo caso, a hipótese de semi-imputabilidade, o agente responde, a título de dolo ou de culpa stricto sensu. Não é possível justificar essa solução através da teoria da actio libera in causa, pois esta requer dolo ou culpa em relação ao resultado, no momento em que o agente tinha plena capacidade de entendimento ou de autogoverno.
[...]
Ao contrário do que se afirma na Exposição de Motivos (nº 21), não se aplica a teoria da actio libera in causa a todos os casos em que o agente se pôs em estado de inconsciência. Se o fato punível de quem em tal estado veio o agente a praticar não era sequer previsível, para ele, no momento de plena imputabilidade, não há culpa e é forçoso admitir que estamos diante de mera responsabilidade pelo resultado (HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 495, gripo do autor).
E em sua obra própria, o precitado autor discorre:
Não se aplica a teoria da actio libera in causa a todos os casos em que o agente se deixou arrastar ao estado de inconsciência (ao contrário do que se afirma na Exposição de Motivos do CP de 1940, nº 21). Se o fato delituoso praticado em estado de embriaguez, que conduz à incapacidade de entendimento e de autogoverno, não era sequer previsível, para o agente, no momento em que estava sóbrio, não há culpa, e só se pode admitir que estamos diante de hipótese anômala de responsabilidade objetiva. Essa deplorável solução foi adotada pela lei vigente em nome de mais eficaz repressão à criminalidade (FRAGOSO, 2003, p. 251, gripo do autor).
Por outro lado, Haroldo Caetano da Silva noticia que, em ocasião posterior, o próprio Hungria reconheceu os exageros de seu posicionamento e concordou que seria necessário, ao menos, a previsibilidade, por parte do agente, da prática delituosa, sendo cabível, nessa hipótese, a punição a título de culpa (SILVA, 2004, p. 102).
Já em defesa do art. 28, inciso II, do Código Penal, Francisco de Assis Toledo preleciona:
O Código vigente adota esse princípio no art. 28, que reproduz a mesma orientação do art. 24 do texto de 1940, e o faz a nosso ver corretamente, pois a embriaguez, pelo álcool ou por drogas, segundo revela a experiência cotidiana, dota o indivíduo de especial periculosidade, pelo afrouxamento de suas faculdades de inibição ou, em sentido oposto, pela paralisação das funções psíquicas essenciais ao normal desempenho de certas atividades (exemplo: dirigir veículos, conduzir armas etc.). Assim, sendo isso um fato do conhecimento geral, experenciado por todos, não se deve realmente valorar em benefício do agente a embriaguez voluntária ou culposa, visto como quem se embriaga propositadamente, ou por imprudência, assume riscos calculados e não pode deixar de prever eventuais conseqüências desastrosas daquilo que faz nesse estado. Por outro lado, quem se transforma em instrumento de si mesmo, para a comissão de um crime planejado (embriaguez preordenada), age evidentemente com dolo e culpavelmente, tal como aquele que contrata e induz o cúmplice à prática do crime (TOLEDO, 1994, p. 323).
Em tempo, deve ser destacado que para Toledo o dispositivo em questão deve ser interpretado de maneira conjugada com o princípio do nullum crimen sine culpa. Tanto é assim que o autor aceita a aplicação da teoria da actio libera in causa apenas em caso de preordenamento ou dolo eventual (o agente embriaga-se voluntariamente, sem a intenção de praticar o crime, mas prevendo a possibilidade de cometê-lo e assumindo tal risco). Se o indivíduo se embriaga de maneira voluntária ou imprudente, mas sem prever, ou prevendo, mas esperando que não ocorra o crime, a questão resolve-se pela culpa stricto sensu (TOLEDO, 1994, p. 323-325, passim).
Não obstante, ressalvada a possibilidade de o operador do direito recorrer a exercícios interpretativos, é de se concordar com os autores que preconizam estar nossa legislação, ipsis verbis, consagrando uma hipótese de responsabilidade penal objetiva.
5.5. Críticas à teoria.
É sempre importante ter em mente a relação do direito constitucional com o direito penal, nunca perdendo de vista os fins a que este último se propõe nem a importância dos princípios que o norteiam.
Como ensinava Púglia, não pode haver dúvida sôbre o nexo íntimo entre a ciência penal e as leis fundamentais do Estado, quando se pensa que o delito tende a dissolver a ordem social, e faz nascer um conflito entre os direitos do indivíduo e os da sociedade, conflito que deve ser resolvido também com o respeito às leis do Estatuto Fundamental, para tutelar o indivíduo contra os arbítrios da Autoridade social (MARQUES, 1954, p. 36).
Não é por outro motivo que Haroldo Caetano da Silva destaca:
A punibilidade da ação delituosa deve, sempre e necessariamente, ter embasamento na teoria geral do Direito Penal, sob quaisquer circunstâncias, não se admitindo recorrer a malabarismos jurídicos desarrazoados. Não pode a punibilidade encontrar sustentação unicamente em razões práticas de segurança. Deve ela ter, sim, plena fundamentação jurídica (SILVA, 2004, p. 89).
Por outro lado, o mesmo autor ressalta também que, diante da complexidade das relações sociais, por vezes o legislador deixa de seguir os rígidos princípios da técnica legislativa (SILVA, 2004, p. 89).
Assim parece que ocorreu com a teoria da actio libera in causa.
A princípio, embora a doutrina não enfrente a questão nesses termos, parece existir uma violação do princípio do nullum crimen sine conducta.
Nos casos de inconsciência, não existe vontade. Adotada a teoria finalista da ação, para a qual a conduta é o ato humano tendente a uma finalidade, decorre, necessariamente, que a vontade é seu elemento indeclinável.
Assim, "se a vontade constitui elemento da conduta, é evidente que esta não ocorre quando o ato é involuntário" (JESUS, 2003, P. 228). "Quando há inconsciência não há vontade e, portanto, não há conduta" (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 376).
Nos atos praticados em estado de intoxicação alcoólica completa sequer existiria, portanto, o primeiro requisito do fato típico.
Tanto é assim que, apesar de constituir um posicionamento minoritário, em alguns casos a jurisprudência já reconheceu que a embriaguez pode afastar o dolo (que, ressalte-se, pertence à conduta) em algumas figuras penais, inexistindo, portanto, tipicidade:
Delito não configurado -Acusado que se achava embriagado quando se opôs à prisão – Incompatibilidade de tal circunstância com a infração em apreço – Absolvição decretada – Inteligência dos arts. 329 e 24, II (atual art. 28, II), do CP - "A ação física própria do delito de resistência deve estar sempre acompanhada de determinado coeficiente subjetivo, sem o qual perde todo seu significado ilícito. Os atos de resistência sem conexão com o estado de consciência do agente de que se opõe ao funcionário público ou a pessoa a que este preste auxílio nada representa sob o enfoque da tipicidade" (TACRIM-SP – AC – Rel. Silva Franco – RT 566/321).
"Evidenciando-se, através da prova, que o réu estava completamente embriagado, quando proferiu expressões injuriosas ao ofendido, o dolo específico do desacato não se caracteriza, sendo acertada a sentença que desclassificou a infração para a contravenção de embriaguez" (TARS – AC – Rel. Venâncio Aires – RT 446/482).
"A conduta do agente que, embriagado, nervoso e irado, profere ameaça contra vítima, não caracteriza o delito previsto pelo art. 147 do CP, uma vez que, para tanto, exige-se ânimo calmo e refletido do indivíduo ao praticar o ilícito, e, que a agressão seja séria, apta a intimidar a vítima" (TACRIM-SP – AC – Rel. Sérgio Carvalhoza – RJD 15/36).
Já a posição de que o ato de embriagar-se já seja execução do crime a ser cometido em estado de inimputabilidade é veementemente criticada, como se pode ver na oportuna colocação de Aníbal Bruno:
Nos crimes por ação, na linha normal da causalidade, não será exato dizer que o fato de pôr-se o agente em estado de inimputabilidade seja um ato executivo do resultado punível. Não o será mais do que o sujeito que se mune de uma arma para ir ao encontro do seu adversário. É mero ato preparatório. E tanto é assim que, se o iter criminis se interrompe nessa fase, não há nada a punir, nem sequer a título de tentativa (BRUNO, 1967, p. 53).
Tal posicionamento também não escapou das críticas de Zaffaroni e Pierangeli, pois o ato de beber carece de tipicidade objetiva:
Que conduta típica de homicídio configura o ato de beber? Trata-se apenas de um ato preparatório atípico, porque a tentativa requer um começo de execução que deve exteriorizar-se, e quando alguém está em um bar, bebendo na companhia da outras quinze pessoas, por maior que seja a sua vontade de embriagar-se para matar seu rival no amor, sua conduta em nada difere da dos quinze bebedores restantes, não se podendo, ainda neste caso, falar de começo de execução. Se neste momento fosse detido pela polícia, não haveria juiz na Terra capaz de condená-lo por tentativa de homicídio, porque há uma total ausência de tipicidade objetiva (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 454, grifo do autor).
E conforme Hélvio Simões Vidal:
Essa é uma das questões mais intrincadas do problema penal da embriaguez. Entrementes, quanto ao segundo critério mencionado (ampliação temporal do conceito de "ato executivo") é evidente a superficialidade. Ora, aceitando tal critério, deveria ser punido o sujeito que procura embriagar-se para cometer o crime planejado, porém não logra o intento (por uma circunstância qualquer, v. g. pela intervenção de um terceiro ou do ladrão que lhe furta a garrafa, ou porque esta caiu no chão, derramando o líquido). Pense-se ainda na hipótese de o sujeito, planejado o crime, e procurando a embriaguez para cometê-lo, ver-se acometido de profundo sono ou letargia quando ainda rumava para o locus comissi delicti: seria punido porque, acatando-se o critério da doutrina supra, ao embriagar-se, já estaria desenvolvendo o processo executivo do delito!
O ato de embriagar-se preordenadamente é tão preparatório quanto aquele do ladrão que procura uma escada, v.g., para cometer o furto [...] (VIDAL).
Na verdade, o colocar-se em estado de inconsciência só poderia constituir ato de execução de um crime omissivo:
Nos crimes praticados por omissão, em que o sujeito, por exemplo, se narcotiza ou se embriaga até a letargia, para faltar àquilo que tinha o dever jurídico de cumprir, a responsabilidade do sujeito, como imputável, está perfeitamente definida, em relação ao resultado punível (BRUNO, 1967, p. 53).
Tais conclusões também parecem aptas a rebater o argumento de que o dolo ou culpa antecedente se prolonga por todo o processo causal, abrangendo, portanto, o ato típico ocorrido em estado de inconsciência, colocando por terra a tentativa de fundamentar a punição das actiones liberae in causa com base no dolo ou culpa existentes antes do estado etílico:
[...] é inservível o argumento de que é necessário verificar se o embriagado atuou com dolo, ou com culpa, isto é, se quis a prática do fato delituoso, ou se o provocou por ter faltado ao dever objetivo de cuidado, que a situação concreta lhe impunha. Num estado de ebriez plena, não é possível distinguir dolo, de culpa. Como observa Guseppe Betiol, "dolo e culpa, em limites diversos, pressupõem a normalidade da relação psicológica, normalidade que deve ser excluída se o agente atua com condições de capacidade penal" (Diritto Penale, 1985, P. 446) (FRANCO, 2001, p. 468).
Por fim, embora boa parte da doutrina aceite pacificamente a adoção da teoria da actio libera in causa às hipóteses de embriaguez preordenada, com base na noção de autoria mediata (cf., dentre outros: BITENCOURT; CONDE, 2004, p. 393; BRUNO, 1967, p. 51-53; FRAGOSO, 2003, p. 251; FRANCO, 2001, p. 468; JESUS, 2003, p. 513; MIRABETE, 2004, p. 222; PIERANGELI, 2005, p. 5; TOLEDO; 1994, p. 323, VIDAL, 2007), conforme Zaffaroni e Pierangeli nem mesmo isso seria admissível, porque o sujeito sóbrio não sabe o que fará quando completamente ébrio, sendo que, se uma vez completamente bêbado, cumprir seu intento de quando consciente, isso será mero produto do acaso. Destarte, a punição a título de preordenamento só seria possível quando a própria ação de inebriar-se já é um ato de execução, como nos crimes omissivos, e em alguns casos extraordinários de tipicidade ativa (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 455).
Sendo a embriaguez incompleta, não há necessidade de se falar em actio libera in causa. Se a embriaguez for completa, impossível o reconhecimento do preordenamento (SILVA, 2004, p. 110).
Diante de tantos impasses, a doutrina cuida não apenas de apresentar alternativas para substituir a teoria da actio libera in causa, como também preconiza novas formas interpretativas que a conciliem com o princípio da culpabilidade.
5.6. Alternativas apresentadas pela doutrina moderna.
Modernamente, boa parte doutrina apresenta a solução encontrada pelo direito português como a mais coerente para enfrentar a delicada questão do tratamento da relação entre a embriaguez e a imputabilidade.
Para Alberto Silva Franco, faltou ao legislador brasileiro a mesma dose de sensibilidade e de coragem do legislador português (FRANCO, 2001, p. 469).
José Henrique Pierangeli é da mesma opinião:
Evidente que não se postula aqui a impunidade daquele que voluntária ou culposamente, se embriaga completamente e nesse estado de inimputabilidade, vem a cometer delitos.
Em face de nossa exposição, numa reforma penal vindoura, optamos pela fórmula adotada pelo Código Penal português de 1982 [...].
[...]
A solução adotada pela legislação lusitana põe em evidência dois questionamentos: de uma lado, impede o versari in re illicita, e, de outro, opta pela punição que a política criminal está a reclamar.
[...]
Uma reforma que se pretenda instalar, a partir de nossa instituição, não deve perder a oportunidade para afastar da nossa legislação essa forma de responsabilidade penal objetiva, optando pela fórmula adotada pela pátria-mãe, a cujo legislador não faltou coragem, discernimento e competência para a fixação desse critério moderno e absolutamente científico e justo (PIERANGELI, 1992, p. 302).
Em artigo posterior, o autor ratificou seu posicionamento, nos exatos termos acima citados (Cf. PIERANGELI, 2005, p. 5-9).
Haroldo Caetano da Silva, após apontar o dualismo representado pelos princípios de direito penal de um lado, e pela histórica luta contra o alcoolismo e a criminalidade, de outro, sustenta que a aceitação da teoria da actio libera in causa significa sucumbir ante a solução mais fácil, jogando por terra o a garantia do nullum crimen sine culpa. Por fim, coloca que a solução adotada pelo direito português seria a mais aceitável em termos jurídicos (SILVA, 2004, p. 312-313, passim).
Damásio Evangelista de Jesus, em artigo citado por Haroldo Caetano da Silva, também sugeriu a adoção da regra alemã, que precedeu o disposto na legislação de Portugal. Assim, "não se pune o fato cometido durante o estado de embriaguez: pune-se o fato da embriaguez culpável" (JESUS apud SILVA, 2004, p. 115).
Tal posicionamento, contudo, não é unânime e também não escapou a críticas:
Deve-se reconhecer que na embriaguez completa é possível não restar ao sujeito resíduo algum de consciência e vontade e, assim, a lei realmente consagra uma hipótese de responsabilidade objetiva, sem culpa. Há um dilema: de um lado, o imperativo da culpabilidade, base do sistema, como pressuposto da imputabilidade; de outro, a exigência de proteção empírica e salvaguarda dos interesses sociais em jogo, e o legislador pátrio tem-se decidido por esta. Como já se afirmou, "é o justo preço a pagar, se se não quiser aceitar a impunidade em nome de ideais de justiça; aceita a fórmula preconizada pelo eminente Damásio E. de Jesus, inspirada no direito alemão, criando-se o delito de embriaguez, com sanções próprias, no quadro atual de gritante deficiência dos órgãos de apoio da Justiça Criminal, estaria aberta a porta para escandalosas desclassificações, tanto no júri como no processo comum, tamanha a facilidade de se forjar uma prova de embriaguez". Além disso, a lei não tem dado margem a injustiças, "porque os casos de embriaguez que se apresentam nos tribunais rarissimamente, para não dizer nunca, são de embriaguez completa, que produza total supressão do discernimento (MIRABETE, 2004, p. 222).
Helvio Simões Vidal também discorda daqueles que defendem ser a solução alemã e portuguesa a mais adequada:
A criação de um delito específico de embriaguez, onde o fato cometido nesse estado funcionaria como "condição objetiva da punibilidade", nos moldes da legislação alemã, também não atende aos interesses da justiça penal. Forjada ou "arranjada" a prova da embriaguez, injustas desclassificações ocorreriam, punindo-se de forma mitigada crimes de grande censurabilidade. Nos crimes de competência do Tribunal do Júri, no Brasil, essa opção seria nada menos do que desastrosa. Ademais, não é isento de críticas sérias o dispositivo do direito penal alemão que se pretende copiar para o direito brasileiro.
[...]
Aparentando punir a embriaguez, a fórmula em questão termina por punir, na verdade, um fato praticado em estado de inimputabilidade (Rauschtat), prescindindo, na concepção do artigo, da existência de dolo ou culpa, quando da comissão desse fato. Como conseqüência, não há como desconhecer, o mecanismo opera um salto para trás, sancionando penalmente uma conduta absolutamente indiferente, sob o aspecto penal (o ato de embriagar-se – Vollrausch) (VIDAL, 2007).
Em defesa da teoria da actio libera in causa, o autor em questão sustenta que as exigências de ordem prática, ditadas pela política criminal, devem prevalecer sobre a lógica jurídica, sendo que o fundamento da punibilidade deverá ser averiguado caso a caso:
De responsabilidade objetiva não se trata; o Código não diz, em absoluto, que o delito é sempre imputado a título de dolo. Muito menos que esse é presumido juris et de juris. Diz, apenas, que a imputabilidade não fica excluída. Não diz o Código a que título (dolo, culpa ou preterdolo!) o sujeito será chamado a responder. Essa indagação virá a posteriori, segundo os elementos factuais encontrados no momento da prática do crime (VIDAL).
Já César Roberto Bitencourt e Francisco Muñoz Conde reportam-se à solução espanhola como mais humana e mais justa, excluindo-se a responsabilidade penal nos casos de embriaguez voluntária ou culposa se não existir preordenamento ou ânimo subjetivo relativo ao crime precedentemente ao ato de beber (BITENCOURT; CONDE, 2004, p. 391-392).
Por outro caminho, Zaffaroni e Pierangeli sustentam ser até mesmo desnecessária a teoria da actio libera in causa, pois, segundo eles, a pessoa que se coloca em situação de inculpabilidade viola um dever de cuidado, preenchendo os requisitos da tipicidade culposa, pelo que é perfeitamente reprovável (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 454).
Após apresentar o posicionamento acima destacado, os doutrinadores propõem a interpretação do art. 28, inciso II, em harmonia com a noção do crime culposo e com as disposições dos arts. 18 e 19, do Código Penal:
Quer o agente beba no intuito de embriagar-se, quer o faça apenas por beber, atingindo o estado da embriaguez pela sua imprudência no conduzir-se, a ação de beber, nos dois casos, é imprudente, tanto pela finalidade como pela maneira como procede, e que o leva a um estado em que não mais tem condições de controlar, conscientemente, os seus atos posteriores. Em tais condições, o agente, se der causa a um resultado típico, ingressa na fórmula do art. 18, II (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 459).
Já para Francisco de Assis Toledo, Damásio Evangelista de Jesus e Heleno Cláudio Fragoso, a actio libera in causa deve ser aplicada apenas nas hipóteses de preordenamento, punindo-se o agente a título de dolo, e nos casos em que não há vontade de cometimento do crime, mas existe a previsibilidade de sua ocorrência e o agente assume o risco de praticá-lo, fundamentando-se a punição no dolo eventual. Nos casos em que o agente não prevê, mas prevendo, espera que não ocorra o delito, a questão resolve-se pela culpa stricto sensu, não havendo necessidade de se recorrer à teoria da actio libera in causa (FRAGOSO, 2003, p. 251, JESUS, 2003, p. 513; TOLEDO, 1994, p. 324;).
Essa via interpretativa coaduna-se com o direito positivo espanhol. Mas, conforme visto, Zaffaroni já advogou existirem incoerências na punição da embriaguez procurada com o objetivo da prática do crime (falta ao agente o domínio do fato), cujas críticas são extensíveis a tese de que "o dolo ou culpa que tem o agente na fase inicial (imputável) prolonga-se por todo o processo causal por ele provocado, alcançando o fato praticado em estado de perturbação da consciência" (SILVA, 2004, p.90).
De tantas alternativas apresentadas pela doutrina, talvez há que se concordar com Hélvio Simões Vidal: "nenhuma das teses propostas, como alternativas ao tratamento penal da embriaguez, sustenta-se em sólidos pilares (VIDAL, 2007).
De fato, a relação entre a embriaguez e a imputabilidade penal é um dos mais intrincados problemas do direito penal da culpa. Os diversos posicionamentos contam com o apoio de juristas de renome, da mesma maneira que esbarram em inconvenientes e fundadas críticas.