Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Embriaguez e imputabilidade penal

Exibindo página 3 de 3
Agenda 20/12/2009 às 00:00

6. Considerações finais.

É inegável a necessidade de o direito preocupar-se com a estreita relação entre o alcoolismo e a criminalidade.

Entretanto, há que se examinar a coerência entre a actio libera in causa e os princípios jurídicos norteadores do direito penal.

A teoria, com certeza, apresenta seus méritos. Uma vez que a imputabilidade subsiste quando a embriaguez for voluntária ou culposa, a complicada averiguação do grau de intoxicação (completo ou incompleto) torna-se um problema de somenos importância.

Mais relevante do que isso, porém, é o afastamento do risco da impunidade com base em eventual forjada prova de embriaguez.

Por outro lado, analisado sobre o aspecto formal, o crime é um fato típico e antijurídico, sendo que a culpabilidade, enquanto juízo de reprovação, constitui pressuposto de aplicação da pena. Mas o momento de aferição da culpabilidade do sujeito ativo da conduta delituosa é o tempo da ação. A actio libera in causa, portanto, ao deslocar o fundamento da culpabilidade do agente para um momento anterior à auto-provocação de estado de inimputabilidade (e portanto, anterior à ação), mostra-se como uma construção artificial.

Ante essa situação de conflito, que coloca de um lado os princípios jurídicos (com destaque para o princípio da culpabilidade) e de outro a própria função primeira do direito, qual seja, a manutenção da paz social, que todo dia é posta em xeque pelos índices cada vez mais preocupantes de criminalidade, parece ser plenamente válida a busca por novas formas de fundamentar a punibilidade daqueles que cometem um delito em estado de inconsciência provocado por embriaguez (considerando-se que muitos delitos encontram sua motivação direta ou indireta no consumo abusivo do álcool).

A questão é deveras complexa. As soluções apontadas pela doutrina são várias, sem que se consiga chegar a um consenso.

Inúmeras vozes se levantam, nos mais diversos sentidos.

Uns sugerem que nosso direito penal copie a solução alemã e portuguesa. Segundo outros, a legislação pátria deve continuar como está. E dentre esses, ora há posicionamentos no sentido de que o ato de beber constitui violação a um dever de cuidado, devendo o agente que se embriaga e pratica um crime responder a título de culpa stricto sensu; ora dizem que se deve averiguar o elemento subjetivo existente antes da embriaguez. Dentre os últimos, tanto há os que defendem aplicar-se a teoria em todos os casos de embriaguez voluntária ou culposa, ipsis verbis do art. 28, inciso II, do Códio Penal, quanto os que advogam não poder ser aplicado o dispositivo legal às hipóteses em que inexiste preordenamento ou previsibilidade do fato.

A solução do direito alemão e português pode dar ensejo a desclassificações injustas.

Dentre as soluções de lege lata, a primeira e a última via de interpretação são, pelo menos aparentemente, as que melhor conciliam os reclamos da política criminal com o princípio da culpabilidade. Entretanto, podem culminar em impunidade ou desclassificações teratológicas.

Solução perfeita jamais existirá. Cada qual apresenta seus fundamentos, vantagens e inconvenientes.

Alguns dos maiores estudiosos do direito penal já enfrentaram o problema da conciliação entre o sancionamento do delito praticado pelo ébrio e o princípio da culpabilidade, sem chegar a uma solução consensual.

Não obstante a dificuldade de se tomar um posicionamento dentro dessa vasta discussão, travada por grandes juristas de ontem e de hoje, procura-se aqui, sem a pretensão de esgotar o tema ou resolver a questão, defender a vertente preconizada por Eugenio Raúl Zaffaroni.

Parece deveras razoável crer que o ato de embriagar-se de maneira voluntária ou imprudente constitui uma violação a um dever de cuidado, configurando, destarte, os requisitos da tipicidade culposa.

Assim, a realização de uma interpretação sistemática entre o art. 28, inciso II, do Código Penal, e a noção de crime culposo, conforme preconizado nos arts. 18, inciso II, e 19, caput, do mesmo diploma, dispensará a necessidade de se recorrer aos artifícios da teoria da actio libera in causa.

A objeção da possibilidade do cometimento de desclassificações injustas é válida e se mostra como principal entrave ao posicionamento ora defendido.

Mas se as normas jurídicas decorrem do convívio social, e são feitas para atender às necessidades de regramento e disciplina desse mesmo convívio, não é menos certo que a ameaça penal, enquanto apenas ameaça, jamais na história do homem apresentou a efetividade pretendida por Nélson Hungria.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

A intervenção penal só é válida enquanto necessária e útil aos fins a que ela se propõe. Assim, quando não for possível encontrar um ponto de equilíbrio entre as exigências de política criminal e a técnica jurídica, o operador do direito, enquanto tal, deve dar preferência a esta.


7. Referências.

ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. 2. ed. São Paulo, Saraiva, 2004.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

BREGA FILHO, Vladimir. Direitos fundamentais na Constituição de 1988: conteúdo jurídico das expressões. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.

BRUNO, Aníbal. Direito Penal: fato punível, t. 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967.

CASTRO, João José Pedreira de (revisor). Bíblia Sagrada. 52. ed., São Paulo: Ave Maria, 2004.

ENCICLOPÉDIA BARSA, v. 4. Encyclopaedia Britannica Editores Ltda: Rio de Janeiro – São Paulo: 1980. 16 v.

ESPANHA. Código Penal Español. Disponível em <http://www.ruidos.org/Normas/Codigo_Penal.htm>. Acesso em 20 de outubro de 2009.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

FRANÇA, Rubens Limongi (coord.). Enciclopédia Saraiva do direito, v. 6. São Paulo: Saraiva, 1978.

FRANCO, Alberto Silva (coord.). Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, v. 1. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

FROTA, Hidemberg Alves da. A actio libera in causa no Código Penal Espanhol de 1995. Juris Plenum. Caxias do Sul: Plenum, v. 2, n. 92, mar. 2007. 2 CD-ROM.

HISTÓRIA DO ÁLCOOL. Disponível em <http://www.alcoolismo.com.br/artigos/historia.htm>. Acesso em 13 de novembro de 2008.

HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal, v. 1, t. 2. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense: 1983.

ITÁLIA. Codice penale. Disponível em <http://www.altalex.com/index.php?idnot=36653>. Acesso em 20 de outubro de 2009.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal: parte geral, v. 1 . 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. 4 v.

MARQUES, José Frederico. Curso de direito penal: propedêutica penal e norma penal, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1954.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral, v. 1. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

PIERANGELI, José Henrique. A embriaguez penalmente relevante. Revista Síntese de direito penal e direito processual penal, Porto Alegre, ano 5, n. 30, fev/mar 2005.

______, ______. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

______, ______. Reforma penal da embriaguez. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 81, n. 685, nov. 1992.

PORTUGAL. Código Penal. Disponível em <http://www.portolegal.com/CPENAL.htm>. Acesso em 21 de outubro de 2009.

RIOS, Dermival Ribeiro. Mini dicionário escolar da língua portuguesa. São Paulo: DCL, 2007.

SANTORO FILHO, Antonio Carlos. Bases críticas do direito criminal. Rio de Janeiro: LED, 2000.

SILVA, Haroldo Caetano da. Embriaguez e a teoria da actio libera in causa. Curitiba: Juruá, 2004.

Sobre o autor
Paulo Antonio dos Santos

Bacharel em Direito pelo Centro de Ciências Sociais aplicadas da Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP. Servidor do Ministério Público do Estado do Paraná (Oficial de Promotoria, ex-Assessor de Promotor de Justiça). Aprovado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil em 2009. Especialista em Direito Ambiental pelo Centro Universitário Internacional UNINTER e em Direito Contemporâneo pela Universidade Cândido Mendes. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/6665338827431312.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Paulo Antonio. Embriaguez e imputabilidade penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2363, 20 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14058. Acesso em: 5 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!