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Reservas de mercado para o crédito consignado

Agenda 20/12/2009 às 00:00

Está prevista para 2012 a entrada em vigor da norma que estabelece a conta-salário dos servidores públicos. É projeto cujos méritos suplantam sua complexidade, o qual colocará na ordem do dia a concorrência pela conta dos funcionários públicos. Contudo, a novidade reserva um indigesto efeito colateral aos governos: a impossibilidade de valer-se, dali por diante, da negociação da folha de pagamento do funcionalismo. Tendo em vista que o negócio se tornará proibido em breve, há uma corrida para a negociação das folhas de pagamento do funcionalismo público por todo o Brasil, algumas em andamento, outras já encerradas, mas em volume de negócios bastante expressivo.

As negociações de folha de pagamento são negócios lícitos e cada vez mais lucrativos para os governos. Porém, face ao tempo exíguo de exploração para a conta corrente do funcionalismo público, tornou-se praxe negociar, como se tratasse de conjunto, cláusulas de exclusividade para o oferecimento de crédito consignado ao banco que comprar a folha. Tal pacto afetará, sem sombra de dúvida, quer o próprio crédito, quer o mercado financeiro que foi formado para atender esta demanda criada pelo próprio governo.

Negociar o crédito consignado em conjunto com a folha de pagamento, como se aquele fosse decorrência lógica deste, é um mecanismo que não se justifica por si. O crédito consignado é mera modalidade de consignação, tal como o são as mensalidades sindicais, os descontos de cooperativas de alimentos, de pensões alimentícias etc. Em outras palavras, o crédito consignado é gênero de uma espécie prevista em norma específica. O fato de tratar-se de importe monetário que circula pela folha de pagamento não autoriza nem torna mais apto o banco que opera a folha de pagamento a conceder empréstimo ao servidor, até por que os dinheiros em circulação na folha não são do banco que a opera, por óbvio, e sim do órgão governamental que emprega o servidor.

Operar a folha de pagamento pode ser tido como um "serviço" prestado ao órgão público que tem por obrigação remunerar seus servidores pelo trabalho. Mas o crédito consignado é negócio de que o empregador não é parte, uma vez que formalizado entre o servidor e o próprio banco. Tomar o crédito consignado como uma subespécie da folha de pagamento é erro formal, que não resiste a uma análise jurídica mínima. Não obstante, esse erro está no cerne da questão, pois ao permitir-se tal confusão de institutos, e tomar o crédito consignado como subespécie da folha de pagamento, possibilita-se, ao negociá-los em conjunto, estender a exclusividade – que ainda é permitida na folha de pagamento até 2012 – às consignações, o que isoladamente não seria justificável fazer.

Ao negociar o crédito consignado em conjunto com a folha, parece que há aporte do governo para as operações de crédito que são efetuadas entre servidores e os bancos, o que cria uma realidade temerária: a de que os governos responsabilizam-se por essas operações, quando não poderiam fazê-lo, em nenhuma hipótese. A consignação é o equivalente, na prática, ao débito em conta corrente, é uma mera forma de pagamento. E, por analogia, o que estamos assistindo é a garantia de pagamento de contas que estão em débito automático.

No mérito, devemos fazer exame atento aos fatos presentes e postos. Não é sem propósito averiguar que tratam-se de negociações travadas entre governos e banco público. Será imperioso enfrentar a questão que torna o Brasil politicamente tão misterioso aos olhos estrangeiros: que país somos nós? Sim, pois não conseguimos nos decidir se somos liberais e pelo capital – e neste caso esta reserva de mercado seria motivo de estranheza por ferir princípio democrático de livre concorrência, ou se de fato somos nós hoje, o país mais à esquerda do globo, e neste caso, o fortalecimento das instituições públicas poderia, em tese, superar alguns princípios democráticos.

É do senso comum, e por que não dizer, do ordenamento jurídico brasileiro, que acaso tal exclusividade se desse a um banco privado, tal fato seria impossível de consumar-se sem ferir de morte princípios como o da livre concorrência, impessoalidade e supremacia do interesse público. Mas, sendo banco público, surge a dúvida, podem-se negociar contratos de exclusividade de consignações em folha de pagamento? É lícita tal exclusividade por ser público o banco?

É importante lembrar que a consignação em folha de pagamento é mera forma de pagamento de benefícios e serviços, descontada diretamente do salário dos empregados e servidores públicos, que, pela segurança que oferecem no recebimento dos créditos e pagamento, propiciam vantagens possíveis apenas por seu menor índice de inadimplência.

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Foi com o advento do empréstimo consignado na forma que o conhecemos hoje, formulado nos idos de 2000, que se popularizou o crédito, antes circunscrito a pequenas parcelas da população. Uma idéia simples, que alcançou resultados de democratização do crédito, na qual sofisticadas teorias econômicas falhavam sem cessar, ano após ano.

Importante notar que as consignações em folha de pagamento respondem às leis locais, uma vez que são matéria afeta aos servidores públicos. É dizer: cada cidade, cada governo tem competência para formular sua própria norma para tratar de consignação. Mas é interessante notar que ao menos dois requisitos sempre estavam presentes em todas as normas que tratavam do crédito consignado até agora, e são eles:

  1. Limites máximos para o empréstimo consignado (teto do percentual do salário – margem consignável)

  2. Diversidade de instituições fomentadoras desse crédito

A disposição de limites para o crédito, conforme o primeiro item, visava a proteção do servidor, aposentado ou pensionista, o tomador do crédito consignado. Ainda que pesem críticas sobre a adoção de um modelo paternalista, uma vez que caberia ao próprio tomador do crédito, e não ao poder público empregador, precisar quais as necessidades do indivíduo, quer nos parecer que tal medida foi adequada e ainda se faz necessária, não podendo o detentor da folha de pagamento deixar de regulamentar a margem consignável, quer por medida de defesa do servidor – uma vez que conhecida a deficiência brasileira na educação financeira, e por consequência, no uso consciente do crédito –, quer por ser o crédito consignado importante instrumento na motivação do servidor público, e portanto de gestão, uma vez que é sabido que o indivíduo que não consegue saldar dívidas não consegue produzir no ambiente de trabalho. Desta forma, ainda que a equação do quantum de margem consignável capaz de promover o bem-estar do servidor seja de difícil interpretação, é de suposição razoável que, qualquer que sejam as obrigações financeiras e dívidas dos servidores, os débitos em folha de pagamento não podem representar a maior parcela de seu salário, sob pena de que a situação que se pretende consertar seja perpetuada no tempo.

No segundo requisito que era tido em todas as normas que tratavam de crédito consignado até outrora, estava o fomento da livre concorrência para oferecimento de crédito, que passou a ser abundante. Com raríssimas exceções, os poderes públicos, ao abrirem a possibilidade do crédito consignado, não o fizeram de forma exclusiva, pelo contrário, a possibilidade de credenciamento ficava aberta a todas as instituições que respondessem aos requisitos dos órgãos regulamentadores e aos critérios previamente dispostos pelo órgão credenciador, em analogia as licitações, o que, ao passo que tornou o mercado das consignações bastante concorrido e complexo, também o fez uma das forças motrizes de aquecimento da economia, e trouxe, indubitavelmente, ganhos aos servidores tomadores de crédito, que beneficiaram-se com a concorrência.

Por certo que o gerenciamento desse contingente de instituições financeiras em folha de pagamento é bastante complexo, e logo após a abertura das consignações a necessidade de um sistema que desse conta desse gerenciamento se fazia sentir logo nos primeiros meses. Fácil não foi, mas não cabe aos governos entregarem-se às facilidades, uma vez que a complexidade faz parte da democracia, que não é quista por ser fácil, mas sim por ser entre os regimes o mais adequado. Permito-me o parêntese pois a complexidade do gerenciamento de inúmeras instituições já foi por mais de uma vez usado de mote para a permanência de apenas uma entidade com exclusividade em detrimento da concorrência do mercado. E repito o que tive oportunidade de dizer em inúmeras ocasiões: a dificuldade da prática não pode se sobrepor ao peso dos princípios aos quais os governos devem observância.

É bem verdade que um credenciamento aberto ad aeternum, como é o caso da maior parte dos órgãos públicos, provoca aumento desnecessário da complexidade. Poder-se-ia pensar na abertura para oferecimento do crédito consignado uma vez por ano civil, ou em menor periodicidade, se assim achasse pertinente o órgão, sem que isso gerasse impacto no princípio da isonomia e da livre concorrência. Uma vez por ano, ou na periodicidade entendida por adequada pelo órgão, uma força-tarefa seria capaz de analisar e julgar os pedidos de credenciamento, não havendo necessidade portanto de manter-se um corpo de analistas específicos para este fim. Desta forma, diminui-se a complexidade, sem alijar a concorrência.

Seria enorme perda de tempo discutir sobre os benefícios da livre concorrência, quer por que notórios, quer por que o instituto é elevado como princípio em nosso ordenamento jurídico [1]. Inclusive há disposições expressas no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive em nossa Carta Magna que visam a repelir a eliminação da concorrência e as reservas de mercado.

No entanto, os governos entendem que podem dispor, como bem lhes aprouver, e mediante ato simples, sobre as normas do crédito consignado, uma vez que, conforme reza a lei brasileira, matéria atinente a pessoal é de competência legislativa exclusiva do chefe do poder local, ou seja, pode o prefeito ou governador, por edição de ato prório, extinguir, modificar ou alterar regras que digam respeito ao funcionalismo público.

Não há dúvida de que cabe aos prefeitos e governadores, decidir sobre legislação de pessoal. No entanto, faz-se hora de discutir qual o alcance que tal competência confere sobre a égide de legislação de pessoal. Trata-se de mero reducionismo dizer que estamos a tratar de matéria de pessoal, quando na verdade a negociação de cláusula de exclusividade para exploração de crédito consignado trata-se apenas e tão somente de reserva de mercado. É reducionismo dizer que estamos apenas a legislar sobre matéria de pessoal público quando tal exclusividade significará, a longo prazo, a perda de milhares de empregos e causará impacto no sistema financeiro brasileiro. E se importa perguntar, e importa, tratando-se de matéria de pessoal, surge a questão que deveria ser central: o que ganhará o servidor público com a supressão da concorrência? Sim, porque antes os servidores podiam escolher entre inúmeros bancos qual lhes daria a menor taxa de juros e melhores condições e agora, ao tirar suas opções de escolha, o que ganhou o servidor?

Por todo o exposto, o que parece inadequado na possibilidade de negociar uma cláusula de exclusividade para o crédito consignado é a insegurança jurídica que tal fato promove, e pela qual o Brasil dá medo em olhos estrangeiros, e eleva nosso risco país. Não se pode, não sem razões firmes e propósitos explícitos, coibir a livre concorrência. Não é possível que o próprio governo não observe as disposições constitucionais de nosso sistema financeiro e promova, por decreto, reservas de mercado.

Por certo que ter um banco público forte é importante para a economia brasileira, mas igualmente importante é mantermos a segurança juridica de nossos sistemas e instituições e a livre concorrência. E deveria ser possível, para o país que preciamos ser, que, ao falar-se em servidores públicos, de fato estejamos pensando nas pessoas que trabalham nos órgãos do governo, e não em intrincadas disputas de mercado que pouco, ou nada, têm a ver com o funcionalismo.

Ao funcionalismo público, que deveria ser o motivo principal deste tema, mas que dele passa ao largo, resta-lhes continuar trabalhando, apesar de todas as pechas, e esperar que a sociedade perceba que estão longe, muito longe de possuir salários vultuosos, e este é, sem embargo, um dos motivos do sucesso do crédito consignado, que tantas disputas provoca.


Notas

01 CF. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciatva, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes prncípios:

(...)

IV – livre concorrência;

Sobre a autora
Maria Gabriela Moya Gannuny El Bayeh

Advogada em São Paulo, mestranda em Direito Constitucional pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EL BAYEH, Maria Gabriela Moya Gannuny. Reservas de mercado para o crédito consignado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2363, 20 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14059. Acesso em: 22 dez. 2024.

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