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O crime de deserção especial do art. 190 do Código Penal Militar e a sua inaplicabilidade no âmbito da Justiça Militar Estadual.

Breves reflexões

Agenda 22/12/2009 às 00:00

Resumo: O presente ensaio pretende demonstrar a inaplicabilidade do crime de deserção especial no âmbito da justiça castrense estadual.

Palavras – chave: deserção especial – princípios direito penal - inaplicabilidade – infração disciplinar.


1.INTRODUÇÃO

Os policiais militares brasileiros têm a nobre missão de executar o policiamento ostensivo preventivo e manter a ordem pública, como múnus público de diuturnamente trazer tranqüilidade e segurança ao cidadão ordeiro, bem como prevenir e reprimir os delitos que tanto assolam a sociedade atual.

Diante dessa altiva função, os militares estaduais têm direitos e deveres peculiares em virtude da missão que lhes é afeta. No campo dos direitos possuem previdência própria, aposentadoria aos 30 anos de serviço, serviço médico – hospitalar – odontológico efetivo para si e seus dependentes, além de outros. Na esfera dos deveres possui um rígido código de normas penais e administrativas diferente dos demais agentes do Estado.

Assim, devido a tais peculiaridades no exercício da sua função o policial militar poderá sofrer sanções na esfera administrativa e penal, especialmente as previstas nos regulamentos disciplinares e no Código Penal Militar (CPM) Decreto – lei nº 1001/69, esta última no caso de o militar cometer algum ilícito penal nos moldes do art 9º do CPM.

Portanto, vê-se que o militar estadual está ladeado por normas rígidas reguladoras da sua função policial. Destarte, o policial que se ausentar da sua unidade, sem licença da autoridade, ou do lugar onde deva permanecer, desde que a ausência se verifique por mais de oito dias, comete o crime de Deserção previsto no art. 187 do CPM.

Fora os casos assimilados de Deserção previstos no art. 188 do CPM, temos ainda outro tipo penal previsto no art. 190: Deserção Especial. Este é o ponto nodal de nosso trabalho, o qual pretende demonstrar que o tipo penal incriminador é inaplicável no âmbito da Justiça Militar Estadual.


2.PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO PENAL

O direito penal é norteado por princípios que visam balizar a sua aplicação no âmbito da sociedade. Em suma, princípio significa "causa primária; preceito; regra; fonte ou causa de uma ação" (NUCCI, 2007).

Com o intuito de servir-se de base para a aplicação do direito penal, os princípios poderão ser explícitos (princípio da legalidade ou da reserva legal; da anterioridade; da retroatividade da lei penal benéfica; da humanidade, e outros) e implícitos (intervenção mínima ou subsidiariedade; fragmentariedade; taxatividade; proporcionalidade e outros).

Dentre tais citados, interessa-nos os princípios implícitos da intervenção mínima, da fragmentariedade e proporcionalidade no direito penal.

Com relação ao primeiro, este cinge-se ao fato de o direito penal somente atuar nos casos em que realmente seja necessária a intervenção do Estado para aplicar uma pena. O Estado não pode interferir em demasia na vida individual do ser humano, a não ser que haja realmente uma finalidade pública essencial. Com isto, nota-se a desnecessidade de tipos penais irrisórios, os quais, muitas vezes, são a primeira opção do legislador para compor os conflitos. O direito penal deve ser a ultima ratio (ultima razão; opção) nesse caso.

O segundo princípio (fragmentariedade) compreende que nem todas as lesões a bens jurídicos devem ser protegidas e punidas pelo direito penal. Sua fundamentação se faz com base no ordenamento jurídico, pois o direito penal é apenas uma parte dele, ocupando-se, então, de condutas mais graves que atinjam a sociedade de modo veemente. Assim, se a conduta atinge a sociedade de modo brando; sem mais conseqüências, deverão os outros ramos do direito (administrativo, tributário, fiscal, etc) resolverem a questão.

O terceiro e último (da proporcionalidade) diz que as penas devem ser justas e equânimes em relação à conduta descrita como ilícito. Não se pode ter penas absurdas, extravagantes e sem uma finalidade em relação a condutas ínfimas, as quais não atingem bens juridicamente relevantes.

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Por essa forma, vê-se no direito penal a última cartada do Estado quando os outros ramos do direito não conseguirem efetivar a pacificação dos conflitos em sociedade.


3.A DESERÇÃO ESPECIAL: UM TIPO PENAL DESNECESSÁRIO

O art. 190 do CPM traz a conduta descrita como crime a deserção realizada pelo militar que deixa de se apresentar no momento da partida de navio, aeronave, ou força em deslocamento em que serve. O preceito criminal é assim descrito:

"art. 190. Deixar o militar de apresentar-se no momento da partida do navio ou aeronave, de que é tripulante, ou do deslocamento da unidade ou força em que serve (...)".

As penas variam de acordo com o período de ausência até a apresentação do militar. Se por exemplo, o militar se apresentar no período de 24 horas após a partida ou deslocamento da tropa a pena será de até 3 meses de detenção; se superior a 24 horas e não excedente a 5 dias a pena é de 2 a 8 meses de detenção; se superior a 5 e não excede 8 dias a pena é de 3 meses a 1 ano de detenção; se superior a 8 dias a pena será de 6 meses a 2 anos de detenção.

Em que pese sua descrição complicada e repleta de meandros, a deserção especial, com respeito a outras opiniões, é totalmente inútil e desnecessária, mormente no âmbito da justiça militar estadual.

Tal análise se conclui pelo próprio tipo incriminador, já que raras (ou até mesmo inexistentes) serão as oportunidades em que se verá um policial estadual partir em navio ou avião para outra localidade a fim de cumprir sua missão constitucional.

Quando o tipo descrito fala em unidade ou força não traduz, essencialmente, uma tropa estadual. Em que pese a posição de Loureiro Neto [01], a evidência racional conduz para não considerar as condutas dos militares estaduais enquadradas nessa situação.

Esse crime em análise seria melhor aplicado quando tais "forças" estiverem em tempo de guerra, sendo até mesmo viável que sua redação composse um dos crimes previstos no Livro II (Crime em Tempo de Guerra), Título I, Capítulo XII (Da Deserção e da Falta de Apresentação) do CPM.

O crime em tela é até mesmo inútil no âmbito das forças armadas em tempo de paz, pois o militar poderá ser punido somente no âmbito administrativo. Ademais, caso a ausência do militar (seja ele estadual ou federal) ultrapasse os 8 dias, certamente haverá o crime de Deserção previsto no art. 187 do CPM.

Como se nota, o tipo penal previsto no art. 190 do CPM ofende os princípios norteadores do direito penal, a saber o da subsidiariedade, da fragmentariedade e da proporcionalidade.

Tal conduta poderia ater-se à seara administrativa a qual é mais célere e efetiva. Movimentar a máquina do judiciário a fim de punir condutas irrisórias e de somenos importância para a sociedade - e até mesmo para a Administração - é no mínimo brincar com o dinheiro público e com o tempo precioso do judiciário brasileiro, o qual deveria se preocupar com questões jurídicas mais importantes.


4.DESERÇÃO ESPECIAL: PUNIÇÃO NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO

Em boa hora seria se o legislador brasileiro expurgasse do CPM a descrição fática do art. 190: a uma porque ofensiva aos princípios do direito penal mínimo; a duas porque ofende o fundamento da dignidade humana [02], submetendo o militar a um processo desgastante e inseguro, já que pelo tempo da pena prevista para o crime poderá ocorrer a sua prescrição; a três porque sua incidência poderia ficar somente no âmbito administrativo militar.

Darei um exemplo prático: um militar estadual escalado juntamente com sua Companhia para viajar de Belo Horizonte para a cidade de Diamantina, com partida prevista para a 8h, deixa de apresentar-se no momento da partida, vindo apresentar-se somente às 8h30min. Nesse caso, o militar deveria ser preso em flagrante? Deveria ser confeccionado o termo de deserção [03]? Ou seria mais prático confeccionar um expediente disciplinar?

No caso acima seria prático e viável confeccionar a comunicação disciplinar, participando ao Comandante do militar a falta ocorrida, concedendo-se ao policial faltoso a oportunidade de apresentar sua defesa em procedimento regular. Soma-se a isso, a possibilidade de o Comandante do militar faltoso reaproveitá-lo em outras atividades no Batalhão, pelo fato de não ter-se deslocado juntamente com a sua tropa.

No caso da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais (PMMG), tem-se a Lei nº 14.310/2002 (Código de Ética e Disciplina dos Militares) que prevê em seu art. 13, inciso XX e art. 15, inciso I, as seguintes faltas:

Art. 13. São transgressões de natureza grave:

XX – Faltar ao serviço:

Art 15. São transgressões de natureza leve:

I – Chegar injustificadamente atrasado para qualquer ato de serviço de que deva participar;

Na primeira falta pune-se o militar com até 10 dias de suspensão do serviço. No segundo caso, o militar poderá sofrer uma advertência ou repreensão.

Dessa forma, a punição na seara administrativa surtirá efeitos mais efetivos e imediatos ao militar faltoso, dispensando-se um processo judicial penoso e sujeito às agruras do tempo. Observando-se as penas aplicáveis ao crime de Deserção Especial, caso o processo perdure por um lapso de tempo superior a 2 anos [04], sendo o militar condenado à pena mínima (2 meses), ocorrerá a prescrição da pretensão punitiva, nos moldes do art. 123, inciso IV do CPM [05].

Sob essa ótica, o crime em questão poderia ser retirado do CPM ficando somente no âmbito administrativo disciplinar, considerando-o infração disciplinar. Ora, não podemos olvidar que o codex castrense foi editado num período conhecido como "os anos de chumbo", em pleno regime de exceção (ditadura militar).

Como já dito anteriormente, ficaria melhor a Deserção Especial descrita nos crimes em tempo de guerra, já que essa conduta não seria tolerada em caso de movimentação de tropa para uma zona de guerra. O militar, nessa situação, deve estar pronto para o emprego imediato, não se tolerando atrasos ou morosidade da sua parte.


5.CONCLUSÃO

Os princípios do direito penal norteiam a aplicação da lei para que não haja exageros ou injustiças quando a sanção for proferida pelo juiz da causa. Os princípios do direito penal mínimo (ou da intervenção mínima), da fragmentariedade e da proporcionalidade devem ser observados, a fim de que a sanção tenha sua finalidade educativa e corretiva, reinserindo o infrator no convívio social.

O crime de Deserção Especial previsto no art. 190 do CPM ofende tais princípios do direito penal, pois sua descrição fática não tutela interesses relevantes para a Administração Pública, nem tão pouco para a sociedade.

No caso de sua ocorrência no âmbito das polícias militares dos Estados, seu processamento deverá cingir-se à esfera administrativa, punindo-se o militar faltoso a título de infração disciplinar nos limites dos regulamentos e códigos disciplinares.

Com isto, evita-se a movimentação da máquina judiciária para processar crimes de menor potencial (bagatela), pois o judiciário deve-se ocupar de ofensas relevantes aos bens jurídicos de maior importância para a sociedade.

Por essa forma, e sem esgotar o assunto, fica aqui a reflexão aos nobres membros do Ministério Público Militar, do Poder Judiciário e aos Comandantes em todos os níveis para a mudança de conduta em relação ao crime em tela, procurando-se efetivar o interesse público de modo racional e prático, sem ofensas aos fundamentos e princípios do Estado Democrático de Direito, além de evitar o desgaste de um processo demorado e oneroso para os cofres do Estado.


BIBLIOGRAFIA

BRASIL, Constituição da República Federativa do. Vade Mecum universitário RT. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

CÓDIGO PENAL MILITAR, 4ª edição revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003 – RT mini-códigos.

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR, 4ª edição revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003 – RT mini-códigos

NETO, José da Silva Loureiro. Direito Penal Militar. 4ª edição, São Paulo: Editora Atlas, 2001

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007


Notas

  1. "A unidade aqui deve ser tomada no sentido de unidade de combate, ou unidade tática, seja um navio, embarcação, avião, carro de combate, companhia, batalhão ou regimento". (LOUREIRO NETO, José da Silva, Direito Penal Militar, 4ª edição, São Paulo, Atlas, 2001)
  2. A Constituição Federal em seu artigo 1º, inciso III traz como um de seus fundamentos o respeito à dignidade da pessoa humana baseada nos valores do homem como um ser dotado de direitos inalienáveis como a vida, a liberdade e a igualdade. Desta forma, como anota Guilherme de Souza Nucci, "toda lei que violar a dignidade da pessoa humana seria inconstitucional" (Código Penal Comentado, 7ª ed, 2007, p. 45).
  3. O art. 451, § 2º do Código de Processo Penal Militar reza que no caso de deserção especial, o termo será lavrado imediatamente.
  4. O art. 125 do CPM regula a prescrição da ação penal pelo tempo da pena prevista para o crime. No caso em questão, a prescrição se daria pelo fato de a pena mínima ser de dois meses. Assim, o inciso VII do art. 125 registra que o crime prescreverá em dois anos se o máximo da pena é inferior a 1 ano. Portanto, caso o militar seja condenado à pena mínima (2 meses), e já passados mais de 2 anos do processo, certamente seria extinta a punibilidade com base no art. 123, inciso IV do CPM.
  5. Art. 123. Extingue-se a punibilidade: I – pela morte do agente; II – pela anistia ou indulto; III – pela retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso; IV pela prescrição; V – pela reabilitação; VI pelo ressarcimento do dano, no peculato culposo (art. 303, § 4º) .
Sobre o autor
Pedro Paulo Pereira Alves

2º Ten da PMMG, Bacharel em Direito pela faculdade FEAD/BH

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Pedro Paulo Pereira. O crime de deserção especial do art. 190 do Código Penal Militar e a sua inaplicabilidade no âmbito da Justiça Militar Estadual.: Breves reflexões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2365, 22 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14061. Acesso em: 23 dez. 2024.

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