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Da continuidade do contrato administrativo nas hipóteses de cisão, fusão ou incorporação da empresa contratada

Agenda 29/12/2009 às 00:00

As operações de cisão, fusão e incorporação constituem formas de reestruturação societária, caracterizando-se como hipóteses de sucessão empresarial.

De acordo com a Lei n.º 6.409/76 – que dispõe sobre as sociedades por ações –, a incorporação é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações. A fusão é a operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar sociedade nova, que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações. Por fim, a cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão.

Embora comum no direito privado, a sucessão empresarial pode não ser admitida nos contratos administrativos, em face dos princípios gerais e do dever de licitar que regem a Administração Pública.

Por possuírem cunho personalíssimo, os contratos administrativos podem ser rescindidos sempre que houverem alterações na estrutura da empresa contratada, que modifiquem as condições inicialmente pactuadas, com prejuízo para a administração.

Assim dispõe a Lei 8.666/93, em seu artigo 78, VI:

Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:

[...]

VI - a subcontratação total ou parcial do seu objeto, a associação do contratado com outrem, a cessão ou transferência, total ou parcial, bem como a fusão, cisão ou incorporação, não admitidas no edital e no contrato.

Todavia, se é pacífica a possibilidade de rescisão do contrato nos casos de reestruturação da pessoa jurídica, o mesmo não podemos dizer no que tange a admissibilidade de previsão no edital ou no contrato em sentido contrário.

Segundo Marçal Justen Filho [01], a possibilidade de rescisão deve ser avaliada "caso a caso", cabendo à Administração "evidenciar que o evento prejudica a execução do contrato ou importa outra categoria de vícios", para que não haja frustração da finalidade buscada pela contratação. Assim, ainda que inexista vedação expressa, as operações de cisão, fusão ou incorporação societárias poderão acarretar a rescisão do contrato se for instrumento de violação das regras disciplinadoras da licitação.

Jessé Torres Pereira Júnior [02], por sua vez, entende pela impossibilidade de previsão no contrato de sua continuidade, nos casos de cisão, fusão ou incorporação da empresa contratada, em razão da violação dos princípios licitatórios.

Argumenta o renomado autor que o decreto-lei, antes, e a lei, agora, ao tratar sobre as formas de modificação da pessoa jurídica, pelos institutos da cisão, fusão ou incorporação, quiseram tão somente prevenir-lhes a ocorrência, "para dizer que se, conquanto desautorizadas, acontecerem, constituirão motivo para a rescisão do contrato" [03].

Nessa linha de raciocínio, defende que a lei licitatória não pretendia admitir que o edital ou o contrato pudesse prever a possibilidade de substituição do contratante, com a cessão total do contrato. A intenção do legislador, portanto, seria apenas deixar expressa a consequência inevitável da rescisão contratual.

No âmbito do Tribunal de Contas da União, a matéria já foi objeto de decisões divergentes, tendo a Corte de Contas, inicialmente, na decisão plenária n.º 420/2002, afastado completamente a hipótese de continuidade do contrato, sob o argumento de que os movimentos contratuais indicados no inciso VI do art. 78 (cessão, transferência, fusão, cisão e incorporação) não podem ser adotados, "eis que isentam a contratada da sua posição de única e plena responsável perante a administração quanto às relações jurídicas emergentes do contrato" [04].

Nos acórdãos n.º 1419/2003 e n.º 1368/2004, proferidos nas sessões plenárias datadas de 24/09/2003 e 08/09/2004, a Corte de Contas voltou a se posicionar pela aplicação da decisão plenária nº 420/2002, destacando, em ambos os acórdãos, que a possibilidade de cessão total do contratado acarretaria iminente risco para a Administração, já que a empresa subcontratada, por ser escolhida pela contratada, não sofreria, necessariamente, análise dos critérios exigidos para contratação com o Poder Público, como, por exemplo, idoneidade, qualificações técnica e econômico-financeira, habilitação jurídica e, entre outros, regularidade fiscal.

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Em sentido contrário, nos acórdãos n.º 1108/2003 e n.º 1245/2004, proferidos nas sessões plenárias datadas de 13/08/2003 e 25/08/2004, o Tribunal de Contas da União entendeu pela necessidade de reforma do entendimento esposado na decisão plenária n.º 420/2002, posicionando-se pela possibilidade da continuidade do contrato, desde que exista permissão expressa no edital e sejam mantidas todas as condições inicialmente pactuadas.

Seguindo esse entendimento, a possibilidade de continuidade contratual, nos casos de cisão, fusão ou incorporação da empresa contratada, afigurar-se-ia possível se atendidos, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) previsão no edital e no contrato, nos termos do art. 78, inciso VI da Lei nº 8.666/93; b) cumprimento pela nova empresa dos requisitos de habilitação estabelecidos no art. 27 da Lei nº 8.666/93, originalmente previstos na licitação; e c) manutenção das as condições estabelecidas no contrato original.

Posteriormente, nos acórdãos n.º 113/2006; 2071/2006 e 634/2007 o Tribunal de Contas da União, em posição mais flexível, passou a admitir, corroborando o entendimento já defendido por Marçal Justen Filho, a possibilidade de continuidade contratual, ainda que não prevista expressamente no edital e no contrato.

Nesses sentido, cabe destacar parte do voto do Ministro Marcos Vinícios Vilaça, relator do Acórdão TCU n.º 2071/2006:

[...] 5. Acerca da legalidade de fusão, incorporação ou cisão em contratos administrativos, frente ao disposto no art. 78, inc. VI, da Lei nº 8.666/93, o TCU entendeu, em consulta formulada pela Câmara dos Deputados, por meio do Acórdão 1.108/2003 do Plenário, que é possível a continuidade dos contratos, desde que sejam observados os seguintes requisitos: - tal possibilidade esteja prevista no edital e no contrato; - a nova empresa cumpra os requisitos de habilitação originalmente previstos na licitação; e - sejam mantidas as condições originais do contrato.

6. Vale dizer, acerca do primeiro requisito, que o Tribunal vem evoluindo para considerar que, restando caracterizado o interesse público, admite-se a continuidade do contrato, ainda que não prevista a hipótese de reorganização empresarial no edital e no contrato. Essa é a posição, aliás, da Unidade Técnica, do autor da representação e do órgão contratante do Distrito Federal. Ademais, está contida no recente Acórdão nº 113/2006 - Plenário.

7. Penso ser louvável a evolução jurisprudencial ocorrida no TCU sobre essa matéria. A dinâmica empresarial inerente a um mercado competitivo e globalizado, que impõe a necessidade de alterações na organização da sociedade para a sua própria sobrevivência, não pode ficar engessada por falta de previsão, nos contratos administrativos, sobre a possibilidade de alteração organizacional, por meio de cisão, fusão ou incorporação.

8. A proibição de alteração da organização da sociedade contratante com a Administração Pública poderia, ao contrário do desejado pela norma, levar ao seu enfraquecimento e, assim, oferecer riscos à plena execução contratual.

9. É sabido que, nos contratos administrativos, a Administração Pública participa com supremacia de poderes na relação jurídica, com suporte no objetivo de fazer prevalecer o interesse público sobre os interesses particulares. E para isso, a Administração dispõe de prerrogativas, entre elas a possibilidade de alterar ou rescindir unilateralmente os ajustes e de aplicar sanções legais.

10. Assim, a previsão contida no art. 78, inc. VI, no que tange à ocorrência de fusão, incorporação ou cisão, deve ser vista como uma prerrogativa, uma faculdade da Administração, e não como uma conseqüência direta e inexorável da reorganização empresarial, que não admite avaliação acerca do interesse público na adoção da medida extrema.

11. A rescisão há de ser aplicada quando a hipótese prevista no dispositivo mostrar-se inconveniente para o serviço público ou quando ferir os princípios básicos da Administração Pública. (grifos nossos)

Como visto, a possibilidade de continuidade do contrato administrativo nas hipóteses de sucessão empresarial encontra restrições, sendo objeto de divergências doutrinárias e jurisprudenciais.

Todavia, em consonância com o entendimento doutrinário e jurisprudencial mais recente, será possível a continuidade do contrato, uma vez mantidas todas as condições inicialmente pactuadas, inclusive no que tange aos requisitos de habilitação e qualificação técnica, cabendo à Administração verificar a inexistência de prejuízo para os princípios que a regem em cada caso.


NOTAS:

1. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2005, p. 586.

2. PEREIRA JUNIOR. Jessé Torres. Comentários à lei de licitações e contrações da administração pública. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 717.

3. Op. cit., p. 717.

4. Fragmento do voto do relator no Acórdão n.º 420/2002 do Tribunal de Contas da União.

Sobre a autora
Clarissa Duarte Martins

Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, especialista em direito público e organização administrativa Brasileira.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Clarissa Duarte. Da continuidade do contrato administrativo nas hipóteses de cisão, fusão ou incorporação da empresa contratada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2372, 29 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14080. Acesso em: 23 dez. 2024.

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