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A inclusão social perversa dos trabalhadores escravizados e a ordem constitucional vigente no Brasil

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Agenda 06/01/2010 às 00:00

RESUMO

A partir do estudo do trabalho escravo contemporâneo no Brasil, o presente artigo buscou entender a exclusão social, ou inclusão social perversa a que são submetidos tais trabalhadores. Nesses termos, mostra-se relevante fazer um contraponto entre tais fatos e a ordem constitucional vigente, no sentido de observar os direitos humanos, trabalhistas, econômicos e sociais que estão sendo, severamente, desrespeitados.

SUMÁRIO: 1. Trabalho Escravo: Conceito E Evolução Histórica; 2. A Exclusão Capitalista (Ou Inclusão Social Perversa) Como Causa Do Trabalho Escravo Atual: Indivíduos Descartáveis; 3. As Peculiaridades Do Trabalho Escravo No Brasil Contemporâneo; 4. A Constituição Federal De 1988 E A Abordagem Da Escravidão Contemporânea; 5. Considerações Finais (Inconclusões).


1. TRABALHO ESCRAVO: CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA

"Que ninguém seja tão pobre que precise vender-se e ninguém tão rico que possa comprar a outrem" (Jean-Jacques Rousseau).

Historicamente, sempre houve subjugação pelo poder de um indivíduo sobre o outro, seja nos tempos mais primitivos pela lei do mais forte, seja nos tempos mais modernos pela força do capital simbólico, utilizando-se de uma nomenclatura bourdieuriana1.

Desse modo, segundo o antropólogo V. Gordon Childe2, em um determinado momento da pré-história (cerca de 2.400 a.C.), no qual aconteceu a denominada Revolução Urbana e a disseminação dos conhecimentos metalúrgicos, ocorreram diversas lutas de clãs, surgimento de figuras humanas de Reis-deuses, concentração de riquezas nas mãos de nobres (os escolhidos do Rei-deus), subjugação das tribos derrotadas, e nesse contexto os homens perceberam que os prisioneiros de guerra, anteriormente sacrificados em cultos religiosos, poderiam ser utilizados para o trabalho ou "domesticados" como os animais.

Assim, desde os tempos mais remotos, nas civilizações da Antiguidade, a escravidão já era uma prática constante.

Entretanto, a despeito da vulgaridade de tal ato, é imprescindível destacar que a escravidão ainda é algo difícil de conceituar, bem como definir um padrão, tendo em vista que ao longo da história da humanidade ela se manifestou de diversos modos, chegando, em alguns momentos, a não ser reconhecida como tal por alguns pesquisadores, dada as nuances diferenciadas.

Diante disso, buscar-se-á definir, respeitando-se as limitações da multiplicidade de elementos, a escravidão, através da sua evolução histórica.

No que tange a etimologia, o termo "escravo" procede de

slave, do latim slavus ou sclavus e do grego bizantino sklábos, que significava de origem estrangeira, por força dos povos eslavos terem sido maciçamente escravizados na Alta Idade Média, precisamente no século IX, como prisioneiros de guerra dos germanos, que, em troca de poupar-lhes a vida, eram obrigados a submeter sua força de trabalho aos desígnios de seu vencedor3.

Surge, então, um termo marcado pela busca do poder e da subjugação da força de trabalho, bem como pela imposição da superioridade de um povo sobre outro.

Nesse diapasão, muitos historiadores, dentre eles David Brion Davis4, apontam a escravidão como um modelo para certos dualismos religiosos, filosóficos e políticos. Assim, insta destacar a palavra correlata para escravo em hebraico, ebed, a qual era usada para se referir a uma justa punição sancionada pelo Senhor Deus aos infiéis, sentido que, ao longo da história, foi muito utilizado, vigorando como justificativa a essa subjugação5.

Aristóteles6 dizia que a escravidão era algo natural, necessário para suprir as demandas vitais dos seres humanos, considerando-se que em sua época havia uma nítida diferenciação entre a virtude e a sabedoria e o trabalho braçal. O escravo para ele era uma coisa com alma, acompanhando as ideias de Platão que entendia haver uma clara inferioridade natural, racial e racional7.

O trabalho era para esses "inferiores", os quais tinham que sustentar um Estado e seus governantes, que possuíam a sabedoria e o poder para guiar os destinos de seus súditos e servos.

Na escrita ideográfica japonesa, o símbolo utilizado para expressar a idéia de "trabalho" é composto pela junção de dois caracteres, o que representa "movimento" e o que representa "pessoa", significando que o princípio do trabalho é o movimento executado por uma pessoa8, numa perspectiva de produção, transformação e criação de algo.

No ocidente, entretanto, numa análise etimológica da palavra "trabalho", pode-se perceber o seguinte9:

A palavra "trabalho" tem sua origem no vocábulo latino "TRIPALIU" - denominação de um instrumento de tortura formado por três (tri) paus (paliu). Desse modo, originalmente, "trabalhar" significa ser torturado no tripaliu.
Quem eram os torturados? Os escravos e os pobres que não podiam pagar os impostos. Assim, quem "trabalhava", naquele tempo, eram as pessoas destituídas de posses.

Em tais termos, ressalte-se a estreita ligação entre o binômio trabalho-escravo, devendo-se ao fato de que à época o ato de trabalhar era para os escravos e aqueles das classes menos abastadas, enquanto os nobres contemplavam o ócio, sendo apenas no século XIV que começou a tomar contornos da denotação contemporânea.

Entretanto, esse trabalho torturante e degradante agregou certo significado à mentalidade humana, correlacionando-se à falta de prazer, numa perspectiva que Marx chama de trabalho estranhado, forma como se dá alienação contemporânea, em que o capital é uma relação social de produção e o trabalho entra como fator central, mas uma centralidade que subverte a potencialidade do trabalho como trabalho concreto, subsumindo-o, ao contrário, à sua dimensão de valor de uso para o capital, ou seja, sua dimensão de trabalho abstrato10. O trabalhador surge diante do capitalista apenas como a personificação desse trabalho abstrato. Tornando-o oposto ao prazer, a satisfação pessoal é meio de transformação social e pessoal, traduzido pela máxima "primeiro o trabalho, depois o lazer", como se esse existisse apenas fora do trabalho.

Correlacionando-se os termos trabalho e escravo na antiguidade grega, o primeiro era identificado com atividades manuais degradantes e inferiores, não dignas dos cidadãos11, mas sim de competência dos escravos12.

Os servos dos feudos, na Idade Média, estavam sujeitos a um nobre, mas muitos autores não reconhecem, nesses, traços de escravidão. Entretanto, destaque-se que ainda havia escravos, convivendo mutuamente com essa forma de submissão de um homem ao seu senhor, numa situação que, num olhar inicial, não diferia. Nesse sentido, observam-se as ponderações de Márcio Túlio Viana13:

E havia também os que – como os servos – não eram escravos, nem homens livres, e se multiplicaram sobretudo na Idade Média. Presos à terra, também a prendiam, usando-a não só (e nem tanto) para o senhor, mas para si. Em geral, viviam vida miserável, mas eram protegidos não só pelos laços primários de solidariedade que os uniam, como pelas mãos do próprio nobre feudal – obrigado, pela tradição, a socorrê-los nas grandes fomes.

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Para Marx e Engels14, a história da humanidade é marcada por lutas de classes, e os servos da Idade Média, com o contexto de expansão de mercados, a descoberta das Américas, a circunavegação da África, começaram a se transformar em uma nova classe, os burgueses livres das primeiras cidades. O Feudalismo em decomposição e os novos contornos de uma nova ordem econômica proporcionariam, posteriormente, a ascensão da burguesia, o surgimento da figura do proletário e a ruptura com as antigas relações sociais.

Avançando a termos mundiais, a escravidão renasce com o capitalismo comercial, ou seja, no período da Mercantilização, que teve seu apogeu com as Grandes Navegações. Nesse contexto, os negros africanos eram utilizados como mão-de-obra compulsória pelas grandes nações européias, dentre as quais Portugal, que necessitavam dos mesmos para o trabalho nas colônias, em geral, americanas. Diante dessas considerações, é valioso salientar alguns resquícios do passado, ressurgindo à época, como se depreende da lição de Platão15:

[...] as cidades da Grécia não deviam possuir escravos de origem Helênica, a fim de evitar ódios internos que impedissem todos os gregos de lutar contra os bárbaros. O escravo tinha que ser necessariamente um estrangeiro, pois só assim ele poderia ser desenraizado e reduzido de pessoa a coisa, a propriedade.

Num primeiro momento, houve como referência um processo colonizatório, em busca de novas áreas para extração de recursos naturais para alimentar o mercado europeu. E, em virtude da necessidade de realização dos trabalhos mais bruscos, manuais, braçais, os colonizadores, diante da docilidade e receptividade dos índios16, passaram a se apoderar da sua força de trabalho.

A escravidão negra continuou; entretanto, diante da existência de mão-de-obra nas próprias colônias, dominável em função, especialmente, da superioridade armamentista européia, no Brasil (e nas Américas), a escravidão teve como sujeitos passivos, inicialmente, os índios17.

Com a chegada dos jesuítas, esse meio de apoderação do trabalho dos índios pelos portugueses foi rechaçado, em função da intervenção daqueles, que tinham planos evangelizadores para aquelas almas, restando a alternativa utilizada pela maioria dos Estados Europeus Colonialistas, qual seja, a intensificação na utilização de mão-de-obra africana.

Nesse contexto, muitos negros africanos, que à época eram vistos apenas como res vocale (coisa que falava), um bem, foram trazidos ao Brasil, através dos Navios Negreiros, e eram vendidos aos "Senhores de Engenho", passando a ser explorados, subjugados aos desejos e desígnios daqueles.

Ao perder as suas raízes, os negros ficaram vulneráveis às mazelas do novo mundo, alguns morrendo de doenças diversas, depressão (banzo), mas o destino comum no país estranho os fez produzir uma rica cultura, com traços africanos e europeus – como mostram o candomblé, a capoeira, o samba e a feijoada. Já os índios, apesar de estarem em "suas terras", mantiveram-se presos, não conseguindo fugir ou morrer. Viveram a dualidade da proteção que esmaga: "os jesuítas quebraram as correntes de seus punhos, mas ao preço de envolver uma cruz em seus pescoços. Na troca dos deuses, perderam-se as línguas, os cantos, as danças, as crenças e os valores"18.

Apesar de toda essa aparente pacificidade e cordialidade nas relações de dominação aos colonizadores, conforme se sucede ao longo da história da humanidade, a submissão e resistência sempre conviveram na escravidão brasileira19. "No caso dos negros, o mar afogava as esperanças de uma volta à pátria, mas a floresta cobria as escapadas para os interiores da nova terra". No caso dos índios, "o que houve foi, sobretudo, um vasto morticínio, salpicado, aqui ou ali, por algumas revanches históricas"20.

Os quilombos são espaços conquistados pela resistência estratégica dos negros, os quais visavam elaborar táticas de combate e materialização de uma nova economia, formada por produtores livres, calcada na utilização dos recursos naturais disponíveis. Em Minas Gerais, por exemplo, os quilombos eram voltados à cata de ouro e diamantes, enquanto na Amazônia se especializaram no extrativismo de ervas21:

[...] e muitos praticavam "feitiçaria", sofriam alcoolismo, tabagismo ou consumiam-nas para entorpecimento, cometiam suicídios: era comum os senhores de escravos vigiarem o parto das escravas, para que essas não matassem seus filhos recém-nascidos, evitando assim que as crianças fossem escravizadas desde a pequena infância. Tudo isso realizado como prática de resistência ao horrível martírio da escravidão, prática de suicídio como libertação, reiterada desde a Antiguidade, simbolizada inclusive na literatura eurocêntrica por figuras clássicas como Demóstenes e Cleópatra, que como milhões de outros não-libertos na História, livravam-se da morte ignominiosa, da injúria ou da servidão perpétua conduzindo sua morte com as próprias mãos.

Esse regime econômico, de produção escravista, manteve-se, oficialmente, por cerca de 300 (trezentos) anos, quando, devido a pressões e intensificação de fiscalizações externas, bem como a mudança no modo de pensar a escravidão no cenário mundial, muitas vezes mais dispendiosa para um regime que visa sempre o lucro, lentamente fora se modificando, passando-se então ao emprego assalariado, no qual se empregavam, em geral, imigrantes europeus, que vinham para o Brasil com sonhos de conseguir prosperar nessa nova terra.

É sabido que a escravidão não foi definitivamente substituída pela mão-de-obra assalariada européia, mas sim continuou subsistindo, mesmo com o fim do tráfico negreiro transatlântico.

Márcio Túlio Viana22 leciona que, no início, "compensava mais comprar um negro já pronto do que criá-lo desde o berço, como se fazia com potros, frangos e bezerros. Mais tarde, com as restrições ao tráfico, passou a valer a pena reproduzi-los; e as senzalas se tornaram também incubadoras".

E mesmo antes da abolição, começaram a chegar ao Brasil imigrantes suíços e alemães para trabalhar nas fazendas paulistas. "No início, o Governo pagava as passagens; depois, o custo da imigração passou para os ombros dos próprios imigrantes", que passaram a ser escravos das dívidas com o transporte e sufocados pelo poder dos coronéis23.

Com o crescimento das teorias abolicionistas24, o que desencadeou maiores pressões externas e internas, destaque-se algumas conquistas: em 1850 foi extinto o tráfico negreiro, o que diminui o número de escravos no Brasil; em 1871 foi promulgada a Lei do Ventre-Livre, que tornava livre os filhos de escravos que nascessem a partir daquele momento; em 1885, foi aprovada a lei Saraiva-Cotegipe ou dos Sexagenários que beneficiava os negros de mais de 65 anos.

Somente após mais de 300 anos de escravidão negra no Brasil25, em 13 de maio de 1888, é assinada a Lei Áurea26, que aboliu a escravidão no país, libertando os negros que ainda trabalhavam em tais circunstâncias, declarando-a extinta.

Entretanto, numa visão mais crítica e menos ingênua, não foi bem isso o que aconteceu. Ressalte-se, que mesmo com a abolição da escravatura no país, devido à falta de políticas públicas para acolher e conferir condições de vida digna aos negros libertos, houve uma reformulação do tráfico de pessoas, intensificando-se internamente, onde esses negros eram transportados para as grandes plantations27, que precisavam de mão-de-obra barata para continuar a superexploração e a infra-humanização, transmudando-se do tráfico de escravos para o mercado de trabalho opressor e degradante. Nesse sentido28:

Na verdade, o que aconteceu com os imigrantes aconteceria logo depois com os negros. Libertos da escravidão, libertaram os seus senhores do peso de sustentá-los; e, embora já tornados sujeitos, continuaram objetos de direito, trocando por farinha e feijão as fadigas diárias de seus corpos.

Com esses subsídios teóricos, é possível aventurar-se na determinação de parâmetros para uma conceituação geral de "escravo", observando-se as seguintes características: sua pessoa29 é propriedade de outrem; sua vontade está sujeita à autoridade de seus proprietários; seus trabalhos ou serviços são obtidos por meio de coerção; tal relação tem que se dar fora dos limites das relações familiares, considerando-se que apenas as três características anteriores abarcariam o grupo de esposas e crianças de uma família patriarcal; em geral, é propriedade móvel e sua relação não é limitada pelo tempo ou espaço, logo é hereditária e alienável30.

É evidente que algumas dessas características foram mitigadas em certos momentos, para em outros se destacarem. A escravidão africana pelos muçulmanos, por exemplo, não foi a mesma que a transatlântica nas Américas, assim como esta muito se distanciou dos modelos gregos e romanos, e mais ainda da servidão feudal e da prisão por dívida atual no norte e nordeste brasileiros. Enfim, em cada momento surgem novas nuances, mas há algo que permanece: um opressor e um oprimido.

Assim, o trabalho escravo, que era visto como um modo de produção, num contexto em que vigorava a economia mercantil escravista, passa a apresentar contornos diferenciados, como meio de exploração da mão-de-obra e acúmulo de riquezas, devido a atual condição do trabalhador, visto como algo descartável31, em especial aqueles que apresentam baixos níveis de escolaridade e especialização, nas regiões marcadas pela pobreza e pela exclusão.


2. A EXCLUSÃO CAPITALISTA (OU INCLUSÃO SOCIAL PERVERSA) COMO CAUSA DO TRABALHO ESCRAVO ATUAL: INDIVÍDUOS DESCARTÁVEIS

A exclusão é um tema bem pertinente à compreensão da escravidão contemporânea, o qual, apesar de muito desvirtuado e mal empregado por alguns autores, segundo Sawaia32, manifesta-se como algo multifacetado, apresentando-se ora como desigualdade, ora como falta de algo, outras como injustiça e, ainda, como exploração social.

A literatura francesa dos anos 90 destaca-se nos debates acerca da temática da exclusão, entretanto, desde 1974, René Lenoir já desenvolvia uma noção de exclusão social, apontando como suas causas, "o rápido e desordenado processo de industrialização, a inadaptação e uniformização do sistema escolar, o desenraizamento causado pela mobilidade profissional, as desigualdades de renda e de acesso aos serviços", o qual "não se trata de um fenômeno marginal, referido unicamente à franja dos subproletários, mas de um processo em curso que atinge cada vez mais todas as camadas sociais33.

Assim, indo na contramão das discussões sociais acerca das dimensões dos direitos fundamentais, insta observar as dimensões da exclusão, visando suplantar os vícios do monolitismo analítico, partindo para uma compreensão hermenêutica sistêmica, tendo na dimensão objetiva, a desigualdade, numa abordagem ética, a injustiça, e, ainda, subjetivamente, o sofrimento.

Nesse sentido, objetivamente, a sociedade percebe o excluído como algo materialmente desprovido de bens, a margem dos direitos de propriedade e de acúmulo de capital.

Entretanto, numa análise ética, abordando os ideais de justiça social34, a exclusão é algo injusto, devido a não observância do outro como semelhante, que deve ser protegido e não, simplesmente, explorado.

E tudo isso, no íntimo daqueles que são sujeitos passivos, nessa relação de opressão, causa dor e sofrimento, diante do fato de não vislumbrarem perspectivas de mudança, reduzindo-se ao conformismo e ao estranhamento da vida, do trabalho e da banalização da justiça.

Segundo Sawaia, a exclusão tem como qualidade conter em si a sua negação e não existir sem ela, id est35, a inclusão, manifesta-se, verdadeiramente, como inclusão social perversa36.

Entretanto, Boaventura de Sousa Santos37 entende que as sociedades capitalistas têm vários sistemas, podendo ser reduzidos à duas formas de domínio hierarquizado: o sistema de desigualdade e o sistema de exclusão:

Eles são distintos, e muito freqüentemente só vemos o sistema da diferença porque o sistema de desigualdade é um sistema de domínio hierarquizado que cria integração social, uma integração hierarquizada também, mas onde o que está embaixo está dentro, e tem de estar dentro porque senão o sistema não funciona. O sistema típico de desigualdade nas sociedades capitalistas é a relação capital/trabalho: os trabalhadores têm de estar dentro, não há capitalistas sem trabalhadores, e Marx foi um grande teorizador disso.

Mas há um sistema de exclusão, de domínio hierarquizado, onde o que está embaixo está fora, não existe: é descartável, é desprezível, desaparece. A Sociologia das Ausências tenta trazer para o centro de nossa discussão o sistema de exclusão.

Logo, Boaventura reconhece que no sistema de desigualdade há uma "inclusão perversa" e necessária, entretanto defende que há indivíduos totalmente excluídos. Atualmente, há um sistema de intercâmbio intenso entre a desigualdade e a exclusão, e "cada vez mais gente passa do sistema de desigualdade ao sistema de exclusão; de estar dentro de uma maneira subordinada a estar fora, a sair do contrato social, da sociedade civil"38.

O "papel" do excluído pode ser observado nas relações escravistas atuais, através das quais o ser humano, sua essência e natureza, bem como condição39, se perde e "aquilo que, inicialmente, é um comportamento social, configurado no processo de inclusão do excluído, acaba por naturalizar-se"40.

Boaventura Santos, no entanto, reconhece que a escravidão contemporânea é o modo extremo do que ele denomina sistema de desigualdades41:

O sistema de desigualdade também tem uma forma extrema: a escravidão. O problema é que as formas extremas continuam existindo, não são parte do passado mas do presente: sabemos hoje que o trabalho escravo é cada vez mais florescente no mundo. Há escritórios das Nações Unidas para detectá-lo, e no Brasil eles têm agora a função de identificá-lo, porque existe uma determinação de que todas as propriedades agrícolas onde haja trabalho escravo podem ser expropriadas para a reforma agrária. Imaginam a luta política que isso significa?

Assim, apesar das diferenças de nomenclatura e abordagem do tema, há uma confluência no sentido de que os escravos contemporâneos estão inseridos no sistema capitalista como viabilizador e mantenedor do mesmo.

Nesse sentido, Paugam visualiza essa "exclusão" como causa da maioria dos problemas sociais, sendo "o resultado da degradação do mercado de emprego, particularmente forte no início desta década [de 90], e também a evolução das representações e das categorias de análise"42.

As restrições impostas pelas transformações no mundo do trabalho ou no sistema decorrente da estrutura econômica é um dos fatores, quiçá o mais importante, na geração de desigualdades e da configuração da escravidão, tal qual se manifesta hodiernamente.

Caminha-se, nesse momento do texto, à percepção de que os "excluídos", fugindo do senso comum, num non-sens43, não são aqueles indivíduos que estão à margem da sociedade, mas sim aquele que é incluído perversamente, para viabilizar e legitimar uma estrutura de desigualdades.

Em tais circunstâncias, visualiza-se um estado de exceção44, pelo qual todos são homo sacer, a um nível global, disponíveis para a manutenção desse sistema capitalista e passível de se tornar um excluído, quando isso for necessário ao "poder soberano", justificando-se, assim, a modificação intensa social, na qual a estrutura de castas imovéis e rígidas não se verifica mais, bem como cada vez é maior o número desses não-sujeitos, apartados socialmente45.

Slavoj Zizek46, analisando o pensamento de Giorgio Agamben acerca do Homo sacer, leciona que:

[...] não existe espaço para o projeto "democrático" de "renegociar" o limite que separa o cidadão de pleno direito do Homo sacer ao permitir que, gradualmente, sua voz seja ouvida; sua posição [de Agamben], pelo contrário, é que, na "pós-política" de hoje, o próprio espaço público democrático é uma máscara que esconde o fato de, em última análise, sermos todos Homo sacer.

Pierre Bourdieu47 externa que a precariedade afeta profundamente qualquer homem ou mulher exposto a seus efeitos. As incertezas de futuro impedem qualquer antecipação racional, bem como o mínimo de crença e de esperança no porvir, reduzindo, ou até mitigando, a capacidade de se revoltar, sobretudo coletivamente, contra o presente, mesmo o mais intolerável.

E é nesse contexto que, no Brasil, após uma origem de regime de produção escravocrata, se vislumbra uma banalização dessa cultura de subjugação do "homem pelo homem"48, observável no modo como o cenário público nacional trata as questões sociais.

Salientando-se que, quanto ao Estado, cabe fazer alguns adendos, uma vez que o sentimento de um Ente Público apaziguador de conflitos, fonte de poderes emanados pelo povo, cujo olhar decisório deve ser orientado pelos sentimentos e convicções desse, defendidos pelos contratualistas, é um flagrante convite ao enternecimento, já que os próprios Hobbes49, Locke50 e Rousseau51 reconhecem no ser humano uma natureza, ou uma construção social fraca moralmente.

Menciona-se muito a necessidade desse "Grand Leviathan"52 para apaziguar e resolver os conflitos de modo mais equânime e imparcial, entrementes o que se visualiza nos recortes de jornal, nas notícias da televisão e nos passeios urbanos e rurais é que ou o Estado é incompetente, ou está aguardando o momento certo, construindo aos poucos, em bases sólidas, uma efetivação da justiça social, ou tudo isso não passa de uma falácia, contada pelos "grã-duques e reis", a fim de garantir uma estabilidade nessa desigualdade, tão apropriada.

Assim, num universo de busca do lucro, do valor de troca, a situação do trabalhador em situação análoga a de escravo remete-se a uma nova realidade, pela qual esse excluído (ou apartado, ou incluído perversamente, ou desigual) é transformado em renda capitalizada53, não se vislumbrando um modo de produção escravista, mas sim a continuidade na utilização de tal trabalho, ainda em circunstâncias de exploração, legitimadas e influenciadas pelas ideias individualista e econômica, inseridas pelo capitalismo.

Sobre a autora
Daniela Rocha Teixeira

Pesquisadora em Meio Ambiente do Trabalho e Conflitos Coletivos de Terra. Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana-BA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Daniela Rocha. A inclusão social perversa dos trabalhadores escravizados e a ordem constitucional vigente no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2380, 6 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14140. Acesso em: 19 dez. 2024.

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