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As empresas de energia elétrica e o uso do solo urbano

Agenda 01/10/2000 às 00:00

1. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA:

Com a consagração da tese de inconstitucionalidade da cobrança da Taxa de Iluminação Pública, inclusive por decisão do Supremo Tribunal Federal, os Municípios de diversos Estados da federação brasileira vêm, paulatinamente, perdendo uma preciosa fonte de receita.

Em Sergipe, modestamente, contribuímos para a consolidação do entendimento com um pioneiro Parecer publicado na Revista do Ministério Público (Vol. 07 – 1994) e, posteriormente, em Revistas de circulação nacional (Ciência Jurídica – Vol. 58 – 1994 e Revista dos Tribunais – Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política – Vol. 06 – 1994).

Talvez em função desses reveses não previstos, as Comunas brasileiras buscaram encontrar uma outra fonte de receita: instituíram uma retribuição, devida pelas empresas concessionárias de energia elétrica, pelo uso do solo urbano em face da instalação de postes da rede de distribuição.

Leis foram criadas e antes mesmo da respectiva cobrança as empresas se anteciparam e promoveram medidas judiciais preventivas.

Sem embargo de já existiram decisões judiciais assegurando o direito das empresas de energia elétrica e, consequentemente, reconhecendo a inconstitucionalidade das referidas leis municipais, ousamos, data venia, discordar dos fundamentos apresentados pelos arestos que chegaram em nossas mãos e, através desse breve estudo, enfrentaremos a quaestio juris procurando trazer outros argumentos que reputamos importantes para o esclarecimento desse polêmico tema.

Registramos, ainda, que o interesse sobre a tormentosa questão nasceu de discussões teóricas travadas com o eminente Doutor Carlos Ayres Britto, brilhante constitucionalista sergipano, que honra a cultura jurídica nacional.

Passemos, então, a enfrentar a matéria, a partir de um dos casos concretos, que servirá, exclusivamente, como paradigma para a nossa análise.


2. O MANDADO DE SEGURANÇA Nº 57/99 E A PRETENSÃO DA EMPRESA ENERGÉTICA DE SERGIPE

A EMPRESA ENERGÉTICA DE SERGIPE S.A. - ENERGIPE, empresa privada, concessionária de serviços públicos de energia elétrica, com área de concessão em parte do território do nosso Estado, com base na legislação em vigor, impetrou MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO contra ato na iminência de ser praticado pelo SR. PREFEITO DO MUNICÍPIO DA BARRA DOS COQUEIROS, em face da promulgação da Lei Complementar Municipal nº 03, de 17 de maio de 1999 que autoriza o Poder Executivo a cobrar taxa pela instalação de postes para serviços de energia elétrica.

Alegou a impetrante, sustentando a sua tese, não ser possível a cobrança, pois o tributo criado é ilegal e inconstitucional.

Justificou que o tributo criado feriu o art. 155, § 3º da Lei Maior, e que o serviço de energia elétrica é concessão federal, sendo, assim, reservada à União a competência exclusiva para dispor sobre a matéria. (art. 21, XII, "b" e art. 22, IV – CF).

Por outro lado, aduziu a impetrante, que a legislação específica aplicada aos serviços de energia elétrica (Código de Água e Decretos Federais) concedeu-lhe o direito de ocupar o território municipal, sem ônus para as concessionárias.

Prestando informações, o impetrado refutou a tese da ENERGIPE, lastreado na teoria da autonomia municipal e, paralelamente, justificando que a retribuição prevista na Lei Complementar nº 03/99 não tinha natureza tributária.

Sustentou, nesse passo, a inconstitucionalidade do Decreto Federal Nº 84.398/80.

Com base nesses dados, passemos a aprofundar o questionamento e a pretensão da Empresa de Energia Elétrica procurando, sobretudo, buscar a exegese dos dispositivos constitucionais e da legislação aplicável às empresas de energia elétrica.

Antes, porém, imperioso se torna fazer uma brevíssima exposição sobre o uso dos bens públicos, especificamente voltado para o caso objeto dessa reflexão.


3. DO USO DOS BENS PÚBLICOS:

Preceitua o art. 68 do Código Civil Brasileiro que "o uso dos bens públicos pode ser gratuito, ou retribuído, conforme as leis da União, dos Estados, ou dos Municípios, a cuja administração pertencerem".

A hipótese enfrentada versa sobre a utilização de bens de uso comum (art. 66, I – CC), tais como ruas, praças e estradas.

Tais bens, no dizer de Clóvis Beviláqua ("Código Civil dos Estados Unidos do Brasil", vol. I, Editora Rio, 1975, pág. 301), pertencem a todos (res communes omnium). Diz o mestre, com singular clareza, que o proprietário desses bens é a coletividade, sendo confiadas à Administração Pública a sua guarda e gestão.

É de todos sabido e ressabido que a regra pela utilização dos bens públicos é a gratuidade. A contribuição pecuniária, no entanto, apesar de exceção, é devida em retribuição ao uso dessas coisas, em condições particulares.

A propósito do tema, esclarecedoras são as lições de J. N. CARVALHO SANTOS no seu sempre citado "Código Civil Brasileiro Interpretado", vol. II, Freitas Bastos, 1950, as quais é de se invocar neste particular (págs. 159/160):

"A gratuidade não pode ser exigida senão para o que se pode denominar de uso ordinário e normal do domínio público.

Isto é o que se diferenciam a circulação sobre uma praça pública, da edificação sobre o solo desta praça.

É contrária à sua destinação natural, no sentido de acarretar um certo embaraço à circulação livre".

O entendimento esposado justifica-se pelo fato de representar para o beneficiário, isto é, para aquele que se utiliza do bem público, um plus, uma vantagem não assegurada a todos os munícipes. Esta é a razão pela qual, lastreado em argumento doutrinário de autoridade, conclui-se pela possibilidade, mesmo que excepcional, da utilização onerosa de bens de uso comum do povo.

Como conclusão desse tópico, permitimo-nos trazer, à título meramente de reforço, o magistério de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, quando, abordando a natureza inalienável e imprescritível, em regra, dos bens de uso comum do povo, com utilização normalmente sem restrições ou ônus, sentenciou ("Instituições de Direito Civil", 16ª edição, Forense, 1994, pág. 280):

"Mas não se desfiguram a sua natureza, nem perdem eles a sua categoria, se os regulamentos administrativos condicionarem a sua utilização a requisitos peculiares, ou restringirem o seu uso em determinadas condições, ou instituírem o pagamento de retribuição (Código Civil de 1916, art. 68)".

Adotando posicionamento similar, THEMÍSTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, no clássico "Tratado de Direito Administrativo", vol. III, 4ª edição, Freitas Bastos, 1960, págs. 374/375.

Evidencia-se a necessidade, averbe-se, de, em homenagem ao princípio constitucional da legalidade (art. 5º, II – CF), existir lei disciplinando a matéria, pois "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

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Ademais, a atividade da Administração Pública será sempre sub lege (art. 37, caput – CF). Havendo lei regulando a questão, revela-se possível a retribuição pela utilização de bens públicos. E tal retribuição não tem caráter tributário.


4. A LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA INVOCADA PELA EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE ENERGIA ELÉTRICA E A AUTONOMIA MUNICIPAL.

Procurando fundamentar a sua tese em bases estritamente jurídicas, a empresa concessionária trouxe a lume o Código de Águas e Decretos Federais (Decretos nºs 41.019/57 e 84.398/80), os quais justificariam a impossibilidade de cobrança de quaisquer retribuições pelo uso do solo urbano.

Em face das peculiaridades e considerando a nova ordem constitucional inaugurada pela Carta Magna de 1988, mister se faz uma análise cautelosa da legislação antes referida.

Dispõe o Código de Águas (Decreto nº 24.643, de 10.07.34), no seu art. 151, "a", que "para executar os trabalhos definidos no contrato, bem como, para explorar a concessão, o concessionário, terá, além das regalias e favores constantes das leis fiscais e especiais, os seguintes direitos: utilizar os terrenos de domínio público e estabelecer as servidões dos mesmos e através de estradas e vias públicas, com obrigação aos regulamentos administrativos" (sem o destaque no original).

Similar dispositivo encontramos no Decreto Nº 41.019, de 26 de fevereiro de 1957 que estabelece o Regulamento de Serviços de Energia Elétrica, mais especificamente o art. 108, "a".

Ninguém questiona que as eventuais servidões, notadamente as de passagem, constituem-se em servidões administrativas essencialmente afetadas de utilidade pública. E uma de suas características fundamentais é a exigência de indenização, desde que recaiam em terrenos particulares. Esse, inclusive, o entendimento consubstanciado por ANTÔNIO DE PÁDUA NUNES no seu "Código de Águas", vol. II, 2ª edição, RT, 1980, pág. 72.

A legislação colacionada, em nenhum momento, dispõe que a ocupação de terrenos públicos de não propriedade do poder concedente seria, necessariamente, GRATUITA. Um outro diploma normativo, no entanto, merece uma especial análise.

O Decreto Federal Nº 84.398, de 16 de janeiro de 1980, modificado pelo Decreto Nº 86.859, de 19 de janeiro de 1982, trata de ocupação de terrenos públicos em geral e, de forma expressa, determina:

"Atendidas as exigências legais e regulamentares referentes aos respectivos projetos, as autorizações serão por prazo indeterminado e sem ônus para os concessionários de serviços de energia elétrica" (art. 2º).

Diante do conteúdo do art. 2º, o impetrante fundamentou a sua pretensão e justificou, em particular, a impetração do mandamus de natureza preventiva.

Em face dessa legislação específica poder-se-ia chegar a uma conclusão que protegeria as pretensões da empresa concessionária de energia elétrica. Todavia, quer nos parecer que tal conclusão não se coaduna com o atual espírito do ordenamento jurídico capitaneado pela Lex Legum, promulgada em 05 de outubro de 1988.

Não se pode interpretar um sistema jurídico da base para o topo. Vale dizer: num sistema hierarquizado de normas, o ordenamento tem que ser compreendido, sempre e necessariamente, a partir da Constituição, fundamento de validade de todas as normas infraconstitucionais. Em razão dessa análise hermenêutica, todas as vezes que ocorre a manifestação do Poder Constituinte Originário com o surgimento de uma nova Constituição, a legislação ordinária somente sobreviverá, se compatível com a recém-nascida Carta Magna. É o que a doutrina convencionou chamar de fenômeno da RECEPÇÃO. Desde que a legislação de inferior hierarquia se encontre em linha de colisão com a nova orientação constitucional estará automaticamente revogada.

A atual Constituição Federal, diferentemente de todas as anteriores, privilegiou, sobremaneira, o Município.

Concedeu-lhe autonomia de uma forma muito ampla, equiparando-o à condição dos demais entes federados (Estado-membro e Distrito Federal). O art. 18 se expressa de forma inequívoca. E a autonomia se situa nos planos administrativo, político e financeiro.

Como registra HELY LOPES MEIRELLES ("Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, págs. 78 e seguintes), dispõem os Municípios de "um direito público subjetivo de organizar o seu governo e prover a sua Administração, nos limites que a Lei Maior traça". E diz mais: a atual Constituição da República inscreveu a autonomia como prerrogativa intangível do Município, capaz de autorizar, inclusive, a Intervenção Federal, para mantê-la ou restaurá-la (Art. 34, VII, "c").

Ora, em face do expendido, seria razoável conceber a hipótese de um Decreto Federal (não lei e mesmo que fosse lei) interferir na administração municipal, no seu patrimônio, nos seus bens, violando flagrantemente a sua AUTONOMIA, conferida constitucionalmente ?

Desde que se concluísse pela possibilidade, seria o mesmo que defender a tese de que estaria a União autorizada a instituir isenções de tributos (se fosse o caso) de competência dos municípios, prática expressamente vedada pela Lei das Leis no seu art. 151, III e não prescrita nas Constituições anteriores, frise-se.

Destaque-se, nessa mesma linha de raciocínio, que o fato de o serviço público de energia elétrica ser de competência da União (art. 21, XII, "b" – CF) e, ainda, por competir privativamente à União (art. 22, IV – CF) legislar sobre energia, não autoriza a essa pessoa política estatal (União) interferir na AUTONOMIA do Município. Não se pode confundir disciplinamento sobre o serviço, na qualidade de poder concedente, com a ingerência indevida – e portanto inconstitucional – na disposição do patrimônio de outro ente estatal, pois o uso dos bens integra, necessariamente, o exercício da autonomia de cada ente.

Invocando, mais uma vez, o magistério de HELY LOPES MEIRELLES (ob. cit., pág. 232), registre-se que em qualquer dos usos dos bens municipais, cabe somente ao Município interferir como poder administrador, "disciplinando e policiando a conduta do público e dos usuários especiais, a fim de assegurar a conservação dos bens e possibilitar a sua normal utilização, tanto pela coletividade quanto pelos indivíduos, como, ainda, pelas repartições administrativas que também usam dos próprios bens municipais para a execução dos serviços públicos".

Diferentemente, no entanto, seria se o Município vedasse a utilização das áreas necessárias à implantação das instalações elétricas, o que não é o caso.

Isso sim é consequência imediata da concessão. Não se pode prestar o serviço, sem poder realizá-lo materialmente.

Aliás, a própria legislação mais recente sobre a matéria, Lei Nº 9.074, de 07 de julho de 1995, consolidada pela Lei Nº 9.648, de 27 de maio de 1998, no seu art. 10, estabelece que "cabe à Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL declarar de utilidade pública, para fins de desapropriação ou instituição de servidão administrativa, das áreas necessárias à implantação de instalações de concessionários, permissionários e autorizados de energia elétrica".

Outra não é a inteligência do art. 29, IX da Lei Nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, mencionando, expressamente, a responsabilidade pelas indenizações, dispositivo citado somente à título de argumentação.

Assevere-se, ainda, que mesmo assim, a utilização dos bens do município ocorrerá com prévia permissão municipal, como já decidiu o Excelso Pretório, antes do advento da Constituição de 1988, na década de 60, quando a autonomia municipal não era tratada com a dimensão apresentada na atual Lei Maior (RTJ 00023-01, págs. 110/111 – Acórdão citado pelos advogados do Município de Barra dos Coqueiros – Escritório Carlos Ayres Britto – quando das informações prestadas no MS Nº 57/99).

Assim, se a legislação desta década menciona a necessidade de desapropriação ou instituição de servidões administrativas, cabendo à concessionária os encargos decorrentes das indenizações respectivas, de clareza solar a conclusão: não decorre da concessão, nem do poder concedente, o direito de utilização de bens particulares ou públicos (estaduais, distritais ou municipais) à título exclusivamente GRATUITO.

Neste momento já se pode apresentar uma segunda conclusão: o art. 2º do Decreto Nº 84.398/80 no que concerne à utilização dos bens públicos municipais, sem ônus, não foi recepcionado pela nova ordem constitucional, não podendo, por conseguinte, ser invocado.


5. EXEGESE DO ART. 155, § 3º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL:

Um último ponto a ser abordado se relaciona com a eventual aplicação do art. 155, § 3º da Constituição Federal:

"Art. 155....

§3º À exceção dos tributos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro tributo poderá incidir sobre operações relativas à energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País".

As empresas de energia elétrica valem-se dessa regra constitucional para invocar a situação de uma pretensa imunidade parcial e, consequentemente, justificar a impossibilidade da cobrança da retribuição pelos Municípios.

Esse, inclusive, o fundamento dos acórdãos, cujas ementas transcrevemos nessa oportunidade:

"Tributário – Preço Público – Mandado de segurança concedido contra ato de autoridade pela cobrança de ‘preço público’ por ocupação do espaço público pela implantação de postes de distribuição de energia elétrica – Reexame necessário – Taxa travestida de Preço Público – Diferenciação – Município de Cachoeira Paulista – Decreto Municipal nº 26/96 – Inadmissibilidade da cobrança – Concessionária que recebeu isenção tributária – Afronta aos arts. 21, inciso XII, "b", 22, inciso VI e 145, inciso II, da CF/88 – Recurso impróvido." (Ac un da 10ª C do 1º TAC SP – AC 776.264-3 – j 11.08.98 – DJ SP I – 16.09.98, p. 93 – ementa oficial).

Mandado de Segurança. Preliminares. Impropriedade do meio e ilegitimidade ativa. Argüição de inconstitucionalidade de lei na via de exceção. Rechaçadas as preliminares porque, em se tratando de controle difuso, pode ser exercido por qualquer pessoa e em qualquer processo. Conhece-se, também, a segurança, por se dirigir contra lei de efeitos concretos, que gera efeito imediato, não necessitando de ato normativo posterior e é direcionada a ente definido, não se revestindo do caráter de generalidade e abstração atinentes ás leis em geral. No mérito, declara-se a inconstitucionalidade, na via incidental, da taxa de ocupação por solo público, no âmbito do município de São Cristóvão, que objetiva tarifar, à concessionária de energia elétrica, o solo de logradouros públicos para afixação de postes indispensáveis à transmissão de energia elétrica, inteligência do art. 155, § 3º da CF e legislação infraconstitucional pertinente – arts. 1º e 2º do decreto 84.398/80. (Ac. nº 2.166/99 – MS nº 20/99 – AJU – Rel. Des. Aloísio de Abreu Lima – DJE de 25.10.99 – pág. 07).

A primeira vista pode parecer que o dispositivo constitucional indigitado se adequa perfeitamente ao caso em tela. Teríamos, aparentemente, uma situação de "não incidência" constitucional ou, na linguagem da doutrina, uma imunidade virtual, consagrando, indiretamente, uma vedação ao legislador ordinário (federal, estadual, distrital ou municipal).

Debruçando-se sobre o caso objeto da investigação, apesar de não se negar a existência da imunidade parcial, pois mandamento constitucional, é forçoso reconhecer que não tem aplicação no objeto discutido. O legislador constituinte ao trazer a presente regra afirmou que, sendo considerada a energia elétrica como "mercadoria", sobre ela e sobre as suas operações, somente incidiriam ICMS (imposto estadual), I.I. e I.E. (importação e exportação – impostos federais).

Não afirmou, direta ou indiretamente, que as concessionárias de energia elétrica estavam imunes a outros tributos. Disse, isto sim, que nas operações de energia elétrica não poderiam incidir outros tributos, salvo os definidos constitucionalmente.

Tanto isso é verdade que o legislador constituinte excluiu, expressamente, até mesmo as empresas públicas e sociedades de economia mista da imunidade geral prevista no art. 150, VI, "a" (ver § 3º). A impetrante, em que pese concessionária de Serviço Público, é empresa privada. Se os entes da administração indireta não possuem imunidade geral, muito menos a impetrante.

Tal disposição foi incluída na Lei Suprema em face da extinção dos chamados impostos únicos que vigoravam na antiga ordem constitucional.

A propósito do tema, é de se trazer a baila as conclusões de SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO após comentar o dispositivo em análise ("Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário", Forense, 6ª edição, Rio de Janeiro, 1997, pág. 407):

"Como sabido, estas mercadorias (e a energia o é, pois é coisa móvel sujeita a tipificar o crime de furto; subtração de coisa alheia móvel) estavam, antes da CF de 1988, sujeitadas aos chamados impostos únicos. Eram assim chamados porque além de monofásicos (só podiam incidir numa das fases do ciclo de circulação, excluídas as demais fases) excluíam a incidência de outros tributos sobre os objetos por eles já incididos. Com a subsunção dos impostos únicos no título do ICMS, quebrou-se a imunidade e adotou-se a não cumulatividade. Então para previnir "outros tributos" foi lavrada a regra da imunidade virtual ora em foco".

Outro não poderia ser o entendimento, lastreado em dois argumentos insuperáveis: 1º) A imunidade é de natureza tributária e a retribuição a ser cobrada não tem o caráter de tributo, consoante registrado no item 3 desse estudo; 2º) A não-incidência se relaciona tão somente às operações de energia elétrica e não a todas e quaisquer atividades prestadas pela empresa concessionária. Ou será que a impetrante, com fundamento em tal imunidade, iria pleitear o não pagamento de Imposto sobre a Renda, Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana ou, mesmo, Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis ?

A não-incidência existe para preservar as operações de compra, venda, transformação de energia elétrica. Diz respeito à atividade de geração e distribuição de energia em si, tão-somente. Como referiu SACHA COELHO, a imunidade abrange a tributação sobre a energia, enquanto mercadoria. E só.


          6.O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SERGIPE E A MUDANÇA DE ENTENDIMENTO

Após a elaboração desse estudo, tivemos o prazer e a honra de encaminhá-lo a alguns Desembargadores do Tribunal de Justiça de Sergipe, os quais, após intensa meditação, modificaram seus anteriores posicionamentos (ver Ac. nº 2166/99 – TJSE), acatando a tese aqui defendida e agregando novos elementos no julgamento dos Mandados de Segurança nº 021/99 (Ac. nº 01/2000); MS 057/99 (Ac. nº 03/2000) e MS nº 023/99 (Ac. nº 341/2000).

Eis as respectivas ementas:

"Mandado de Segurança Administrativo – Uso do solo urbano – Fixação de tarifa – Constitucionalidade – Autonomia Municipal.

1.Em face da autonomia Municipal, estabelecida nos arts. 18 e 29 da Constituição Federal, têm os Municípios poder e competência para legislar sobre impostos, taxas e tarifas públicas;

2. A imunidade de que trata a Constituição Federal no § 3º, do art. 155, é de natureza tributária e a retribuição cobrada, com base na Lei Municipal impugnada, não tem caráter de tributo, mas de tarifa, que difere de taxa. Assim, o fato gerador da cobrança, previsto na Lei Municipal, é de natureza administrativa e não tributária, uma vez que visa fixar o preço público para o uso do solo municipal, no exercício de suas atribuições constitucionais.

3. Mandamus denegado. Decisão por maioria."

(MS 021/99 – AC. nº 01/2000 – Rel. Des. Manuel Pascoal Nabuco D´Ávila – TJSE. Com idêntica ementa o Acórdão 03/2000 no MS 57/99).

"Administrativo e Constitucional – Taxa Municipal pela instalação e utilização de postes nas redes de energia elétrica – Preliminares de incabimento do mandamus – Ato normativo municipal cuja compatibilidade com a Constituição Federal, só poderá ser aferida pela via difusa – Ato normativo revestido de efeitos concretos – Prova preconstituída – Matéria de Direito – Preliminares rejeitadas – Mérito – Uso do solo urbano – Fixação de Tarifa – Constitucionalidade – Autonomia municipal – Ordem denegada – Decisão por maioria.

Em face da autonomia Municipal, estabelecida nos arts. 18 e 29 da Constituição Federal, têm os Municípios poder e competência para legislar sobre impostos, taxas e tarifas públicas;

A imunidade de que trata a Constituição Federal no § 3º, do art. 155, é de natureza tributária e a retribuição cobrada, com base na Lei Municipal impugnada, não tem caráter de tributo, mas de tarifa, que difere de taxa.

Assim, o fato gerador da cobrança, previsto na Lei Municipal, é de natureza administrativa e não tributária, uma vez que visa fixar o preço público para o uso do solo municipal, no exercício de suas atribuições constitucionais." (MS 023/99 – Ac. nº 341/2000 – Rel. Des. José Antônio de Andrade Góes).


7. CONCLUSÕES:

Ao cabo dessa análise, cabe-nos apresentar as conclusões:

a. O uso dos bens públicos, em especial o do solo urbano, por expressa disposição legal, pode ser gratuito ou oneroso, não havendo nenhum óbice para, mediante lei, ser fixada retribuição pela utilização uti singuli do respectivo bem;

b. O Município, em face de sua autonomia como ente integrante de Federação Brasileira, poderá fixar, obedecendo ao princípio da legalidade, retribuição pelo uso do solo urbano, que não terá natureza tributária;

c. A competência privativa da União para legislar e dispor sobre concessão do serviço público de energia elétrica não tem abrangência de interferir na autonomia municipal, pois prerrogativa de raiz constitucional e inerente à estrutura do Estado brasileiro;

d. O art. 2º do Decreto Federal Nº 84.398/80, na parte que autoriza o uso do solo sem ônus, não foi recepcionado pela atual ordem constitucional;

e. Como decorrência da concessão do serviço público de energia elétrica a utilização do bem público é compulsória, mas necessita de autorização do ente estatal (município), a título gratuito ou oneroso;

f. A imunidade parcial constante do art. 155, § 3º da Lei das Leis diz respeito tão somente às operações relativas à energia elétrica, não se aplicando à cobrança da retribuição pela instalação de postes de energia elétrica (uso do solo urbano).

Sobre o autor
Carlos Augusto Alcântara Machado

promotor de Justiça em Sergipe, professor da UFS e UNIT, mestre em Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. As empresas de energia elétrica e o uso do solo urbano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1427. Acesso em: 22 nov. 2024.

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