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Limites constitucionais à ação estatal na economia

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Agenda 26/02/2010 às 00:00

Visto sob o ângulo objetivo, o regime jurídico das ações estatais na economia consiste na positivação das opções de políticas econômicas estabelecidas pelo Estado.

1.Introdução

O tema do presente artigo é o regime jurídico da ação do Estado na economia, dentro dos limites estabelecidos pela Constituição Federal.

Visto sob o ângulo objetivo, o regime jurídico das ações estatais na economia consiste na positivação das opções de políticas econômicas estabelecidas pelo Estado. Isso tem sido chamado de direito econômico. As opções políticas são consagradas pela síntese das forças dominantes que controlam o Estado. Nesse sentido, o direito econômico seria "uma espécie de ordenamento constitucional da economia, no qual se situariam os princípios básicos que devem reger as instituições econômicas". [01] Assim, o objeto do direito econômico seria um pouco mais amplo, pois além de tratar do planejamento, trata também da ação estatal. Daí o caráter instrumental do direito econômico.

Há outros conceitos de direito econômico, inclusive no sentido de ser ele muito mais um método interpretativo do que um ramo autônomo do direito, pois as diretrizes da política econômica matizam as normas de cada ramo. [02] Também já se afirmou que o direito econômico regeria relações econômicas: durante o período soviético, uma corrente doutrinária sustentou que o direito econômico rege não apenas a direção da atividade econômica pelo Estado, mas também as relações econômicas entre os diversos agentes econômicos. [03]

Tomamos neste trabalho, como sentido de direito econômico, o regime jurídico da ação estatal na economia. Isso abrange a normatização (produção de normas) para a proteção das relações privadas com conteúdo econômico, pois a positivação de normas jurídicas é um ato estatal. Porém, não se pode confundir a regência dessas relações, que se inserem precipuamente no âmbito do direito privado, com os limites constitucionais à produção dessas normas ou de outros atos de intervenção estatal na atividade econômica.

Como pressuposto óbvio para desenvolvimento do tema, é preciso definir o que é atividade econômica e situar esse tema dentro da ciência jurídica. Após, é necessário verificar os modos pelos quais Estado pode atuar na economia.

Optamos por classificar em três as formas de ação estatal na economia: normatização, prestação dos serviços públicos e exercício de atividade econômica em sentido estrito.


2.Conceito de atividade econômica.

Antes de definir o que é atividade econômica, é preciso definir o que é atividade. Em sentido amplo, atividade é qualquer ação. Em termos mais estritos, atividade é uma série de atos concatenados, dirigidos a uma finalidade. [04] Essa finalidade poderá ser econômica ou não.

Atividade econômica é qualquer atividade produtora de riquezas, que se opera por meio de transformação de produtos já existentes para a criação de produtos novos (à luz das ciências exatas, "nada se cria, tudo se transforma"). [05] Ou seja, atividade econômica é a atividade criadora de riqueza ou de nova vantagem econômica. [06] Atividade econômica compreende tudo aquilo que possa ser objeto de especulação lucrativa. [07]

É necessário que a atividade econômica seja exercida com intuito de lucro?

Lucro, que é a remuneração do exercente de atividade econômica, consiste na diferença entre os resultados e os custos da atividade. Os lucros poderão, em cada caso concreto, existir ou não. Existirão lucros se essa diferença for positiva; se for negativa, existirão prejuízos ou perdas. A atividade econômica, abstratamente considerada, é uma atividade que potencialmente é geradora de lucros ou de perdas.

A doutrina tradicional considera que o objetivo da atividade econômica deveria ser o de lucro para fins de caracterização, sob o aspecto jurídico, como atividade empresária, pois se a atividade é profissional, tem-se implícito que é exercida com ânimo de lucro, [08] bem como atividade econômica, por sua índole, seria necessariamente uma atividade de lucro. [09]

Por outro lado, também já se afirmou que a atividade econômica é suscetível de gerar lucros, ainda que ele não ocorra por razões de mercado, de má avaliação do empresário etc., [10] ou mesmo nos casos em que isso ocorre por uma escolha do agente da atividade econômica, como é o caso da empresa pública, que poderá ou não gerar lucros. [11] O intuito de lucro, portanto, seria um elemento natural, mas não essencial como motivo da atividade econômica. [12]

O Estado, por exemplo, pode criar uma empresa pública para exercer alguma atividade econômica com um objetivo que não seja o de gerar lucros para si, mas beneficiar a economia do país como um todo. Essa atividade é econômica? Evidente que sim, pois ela é potencialmente lucrativa, ainda que, por uma opção política, ela não o seja no caso concreto. [13]

Diante de tudo isso, parece ser mais adequado perceber que a atividade econômica deve ser abstratamente passível de gerar lucro, [14] o que explicaria as hipóteses em que uma pessoa jurídica exerce atividade econômica sem ânimo de obter lucro, mas apenas para exercer um fim social (ex. uma empresa estatal deficitária ou uma cooperativa). A questão é controvertida na doutrina. [15]

As atividades econômicas poderão ser consideradas como serviço público ou não, conforme opção política do legislador. A parcela da atividade econômica que não é considerada serviço público constitui a chamada atividade econômica em sentido estrito. [16] Ou seja, partindo de uma noção ampla de atividade econômica – tudo aquilo que é potencialmente lucrativo – podemos fazer uma divisão entre a atividade econômica que está precipuamente (mas não exclusivamente) no campo de ação dos particulares (atividade econômica em sentido estrito) e a que está no campo de ação do Estado (serviço público).


3.A ordem econômica constitucional.

A atuação estatal na econômica não é arbitrária, não podendo ser feita ao talante do governante. Ao contrário, há regência por normas jurídicas, criadas pelo próprio Estado, que vinculam a Administração Pública como um todo. O conjunto de princípios e regras que regem a atuação do Estado na economia é chamado de Direito Econômico.

É intuitivo que cabe ao Estado regular relações privadas com conteúdo econômico. Pretende-se aqui discutir quais outras ações exercidas pelo Estado não se caracterizam como simples normas de direito privado.

Assim, regras relativas ao fomento estatal da atividade econômica, à criação de uma situação favorável à atividade econômica, à proteção da concorrência e do mercado, entre outras, não parecem ser singelamente normas de direito privado. Com efeito, as normas dessas ações fazem parte do que passou a se chamar de direito econômico.

O regime jurídico da atuação estatal na economia (direito econômico) pode estar constitucionalizado, isto é, pode ter seus princípios básicos contidos na Constituição. É o que ocorreu, no Brasil, a partir da Constituição de 1934, embora se possa afirmar que antes disso já existia direito econômico em razão das normas de poder de polícia que regulavam a atividade econômica. Adiante iremos analisar essas questões.

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A finalidade de realização da política econômica do Estado é uma marca do direito econômico. Nisso consiste seu caráter instrumental, que no plano do direito constitucional faz parte da noção consagrada de constituição dirigente.

A título de exemplo, vejamos uma exposição de direito econômico, efetuada pela Constituição cubana:

En la República de Cuba rige el sistema socialista de economía basado en la propiedad socialista de todo el pueblo sobre los medios de producción y en la supresión de la explotación del hombre por el hombre (art. 14). (...) El Estado organiza, dirige y controla la actividad económica nacional de acuerdo con el Plan Único de Desarrollo Económico-Social, en cuya elaboración y ejecución participan activa y conscientemente los trabajadores de todas las ramas de la economía y de las demás esferas de la vida social (art. 16, párr. 1º) [17]

No Brasil, exatamente porque é fundamento constitucional da ordem econômica a livre iniciativa (art. 1º, IV, e art. 170, caput), bem como a propriedade privada é princípio dessa mesma ordem econômica (art. 170, II), além das hipóteses expressamente previstas na Constituição, o Estado apenas deverá explorar diretamente a atividade econômica quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (art. 173). Não é, como vimos acima, a opção política contida na Constituição cubana, que prevê não apenas a planificação econômica, mas também a propriedade socialista dos meios de produção.

Ou seja, o conteúdo das normas de direito econômico em Cuba e no Brasil são diferentes. Também são diferentes a Lei nº 8.884/94 do Brasil e a Lei Sherman dos Estados Unidos.

Mas é inegável que todas essas normas - de Cuba, do Brasil e dos Estados Unidos - têm o nítido de propósito de dirigir a economia. No caso do Brasil e dos Estados Unidos, as normas procuram, dentre outros objetivos, defender a concorrência contra abusos do poder econômico.

O que pode existir é uma direção da economia a favor do mercado (Brasil e Estados Unidos) e não um total ou quase total controle dos meios de produção por órgãos estatais (Cuba). Veja-se, nesse contexto, os limites da expressão, acima mencionada, de "dirigir a economia"!

Não podemos ser ingênuos a ponto de pensar que são as bases constitucionais da ordem econômica que definem a estrutura de determinado sistema econômico; a constituição formal não constitui a realidade material. Por outro lado, não é possível aceitar um determinismo econômico sobre a realidade jurídica formal. [18] Com efeito, é inegável que a Constituição tem força normativa, isto é, a Constituição pode ser um meio de transformar a realidade. [19]

A constituição econômica formal consiste no conjunto de normas da constituição política que, garantindo os elementos definidores de um determinado sistema econômico, estabelece os princípios fundamentais de determinada forma de organização e funcionamento da economia e estabelece, por isso mesmo, uma determinada ordem econômica. [20]

A primeira Constituição brasileira, que foi a Constituição do Império, de 1824, não tratou da ordem econômica. Ela não tinha dispositivos que possam ser verdadeiramente considerados como de direito econômico. Com esforço mental no sentido de encontrar alguma manifestação sobre o tema, podemos pinçar o item 25 do art. 179, que previu a abolição das corporações de ofícios.

A segunda Constituição brasileira, que foi a primeira Constituição da República, de 1891, também não tratou da ordem econômica. Também é necessário esforço para encontrar algum dispositivo que possa ser reputado como sendo de direito econômico. Podemos pinçar os seguintes: art. 7º, item 2º, que estabeleceu ser de competência da União os direitos de entrada, saída e estadia de navios, sendo livre o comércio de cabotagem às mercadorias nacionais, bem como às estrangeiras que já tenham pago impostos de importação; art. 7º, § 1º, item 1º, que estabelece ser de competência privativa da União a instituição de bancos emissores; art. 72, § 17, que previa o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública e afirmava que a propriedade das minas era do proprietário do solo.

A primeira Constituição brasileira a positivar a ordem econômica foi a de 1934, sob o título "Da Ordem Econômica e Social", que continha vinte e oito artigos. Dentre outros aspectos relevantes, podemos destacar os seguintes: o art. 115 estabelecia que a ordem econômica deveria ser organizada conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo a possibilitar a todos existência digna e, dentro desses limites, garantia a liberdade econômica. No art. 117, parágrafo único, proibia a usura, punida na forma da lei. O art. 118 inovou ao estabelecer que a propriedade das minas era distinta da propriedade do solo para efeito de exploração ou aproveitamento industrial. O art. 119 previa que a exploração das minas e das jazidas minerais seria feita mediante autorização ou concessão federal, que seriam conferidas exclusivamente a brasileiros ou a empresas organizadas no Brasil, ressalvada ao proprietário a preferência na exploração ou co-participação nos lucros. O art. 131 vedava a propriedade de empresas jornalísticas a estrangeiros, que não poderiam ser acionistas de empresas jornalísticas, e a sociedades anônimas com ações ao portador. O art. 132 estabelecia que deveriam ser brasileiros os proprietários, armadores e comandantes de navios nacionais.

A Constituição de 1937 tratou da matéria na parte "Da Ordem Econômica" em vinte e um artigos. O art. 142 dizia "A usura será punida". O art. 145 previa que só poderiam funcionar no Brasil bancos de depósito e empresas de seguro de propriedade de brasileiros. O art. 149 dispôs que os proprietários, armadores e comandantes de navios nacionais deveriam ser brasileiros natos.

A Constituição de 1946 tratou da ordem econômica no Título V, "Da Ordem Econômica e Social" em dezoito artigos. O art. 145 dizia que "A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano". O art. 146 previa que, mediante lei especial, a União poderia intervir no domínio econômico e monopolizar determinada indústria ou atividade, com base no interesse público e com limite nos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. O art. 147 previa o uso da propriedade condicionado ao bem-estar social. O art. 148 estabelecia que a lei reprimiria o abuso do poder econômico e os grupos de empresas que pretendessem dominar mercados, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros. O art. 154 previa que a usura seria punida na forma da lei. O art. 155 estabeleceu a navegação de cabotagem para o transporte de mercadoria seria privativa de navios nacionais, salvo caso de necessidade pública. O § 2º do art. 155 dispôs que os proprietários, armadores e comandantes de navios nacionais deveriam ser brasileiros.

A Constituição de 1967, no Título III, "Da Ordem Econômica e Social", tratou da matéria em dez artigos. O art. 157 dizia que a ordem econômica teria por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: liberdade de iniciativa; valorização do trabalho como condição da dignidade humana; função social da propriedade; harmonia e solidariedade entre os fatores de produção; desenvolvimento econômico; repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros. O § 8º do art. 157 previa intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada indústria ou atividade, mediante lei federal, quando indispensável por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não pudesse ser desenvolvido com eficiência no regime de competição. O art. 162 estabeleceu que a pesquisa e lavra do petróleo em território nacional constituem monopólio da União, na forma da lei. O art. 163 estabelecia a primazia da iniciativa privada na exploração da atividade econômica, a qual deveria ser estimulada e apoiada pelo Estado, que poderia exercer diretamente a atividade econômica para suplementar a atividade exercida pela iniciativa privada. O art. 166 vedava a propriedade e a administração de empresas jornalísticas a estrangeiros, a sociedades que tivessem sócios estrangeiros ou pessoas jurídicas (excetos partidos políticos) e a sociedades anônimas com ações ao portador. A Emenda Constitucional nº 1/69 tratou da matéria nos arts. 160 a 174, sem inovar substancialmente.


4.A ordem econômica na Constituição Federal de 1988.

O Título VII da Constituição Federal, arts. 170 a 192, consagra a ordem econômica e financeira.

O Título VII está dividido em quatro capítulos. Além dos princípios gerais da atividade econômica, previstos nos art. 170 a 181 (Capítulo I), a Constituição Federal de 1988 trata da política urbana (Capítulo II), da política agrícola e fundiária e da reforma agrária (Capítulo IIII) e do sistema financeiro nacional (Capítulo IV).

Como é até intuitivo, o modo de produção capitalista, em sua versão social-democrata, foi positivada pela Constituição de 1988.

A atividade econômica está baseada na livre iniciativa. Isso significa que, como regra geral, o Estado não exercerá diretamente a atividade econômica. Isso é incumbência dos particulares.

Mas o princípio constitucional da livre iniciativa não significa que o empresário tem o direito de fazer o que bem entender - não há plena liberdade no sentido ultra-liberal do termo. Há limitações.

A existência de limitações à atividade privada (poder de polícia), inclusive à atividade econômica, não contradiz com a existência da livre iniciativa como princípio básico da ordem econômica. A regulação da atividade econômica, por parte do Estado, em menor ou maior grau, é indispensável para a manutenção do sistema capitalista. O Estado liberal deseja e atua na economia, mesmo para restringir as atividades particulares, para garantir a paz social; já o Estado moderno deseja mais, quer a justiça social. Não há país no mundo que não tenha um mínimo de regulamentação e de restrições à atividade econômica.

O art. 170 da Constituição Federal estabelece alguns princípios da ordem econômica constitucional. Podemos destacar o da livre iniciativa e o da função social da propriedade. Esses princípios não devem ser interpretados isoladamente, mas sim em consonância com os demais princípios positivados em todo o texto da Constituição. É de meridiana clareza que o objetivo do constituinte, ao estabelecer esses princípios, foi o de criar um sistema em que a produção gerasse bem-estar social, para toda a população, e não apenas lucro para os empresários. [21]

A esse respeito, merece ser transcrita a lição de Eros Roberto Grau: [22]

a ordem econômica na Constituição de 1988 consagra um regime de mercado organizado, entendido como tal aquele afetado pelos preceitos da ordem pública clássica (Geraldo Vidigal); opta pelo tipo liberal do processo econômico, que só admite a intervenção do Estado para coibir abusos e preservar a livre concorrência de quaisquer interferências, quer do próprio Estado, que do embate econômico que pode levar à formação de monopólios e ao abuso do poder econômico visando aumento arbitrário dos lucros - mas sua posição corresponde ao do neo-liberalismo ou social-liberalismo, como a defesa da livre iniciativa (Miguel Reale); (note-se que a ausência do vocábulo ''controle'' no texto do art. 174 da Constituição assume relevância na sustentação dessa posição; a ordem econômica na Constituição de 1988 contempla a economia de mercado, distanciada porém do modelo liberal puro e ajustada à ideologia neo-liberal (Washington Peluso Albino de Souza); a Constituição repudia o dirigismo, porém acolhe o intervencionismo econômico, que não se faz contra o mercado, mas a seu favor (Tércio Sampaio Ferraz Júnior); a Constituição é capitalista, mas a liberdade apenas é admitida enquanto exercida no interesse da justiça social e confere prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado (José Afonso da Silva)

A evolução das relações de produção, a necessidade de melhorar as condições de vida dos trabalhadores e o mau uso da liberdade conferida aos empresários no sistema capitalista (no qual é falaciosa a ''harmonia natural dos interesses" de empresários e trabalhadores) fizeram surgir mecanismos de condicionamento da atividade privada, com o objetivo de ser realizada a justiça social. Nessa perspectiva é que deve ser o texto do art. 170 da Constituição Federal compreendido: trata-se de uma Constituição preocupada com a justiça social e com o bem estar coletivo. [23]

O século XX foi o século da social-democracia preocupada em manter o sistema capitalista intacto, mediante uma melhoria das condições de vida dos trabalhadores. O exemplo do sucesso dessa doutrina está nos países da Europa ocidental, especialmente nos países escandinavos, onde a social-democracia efetivamente confere boas condições de vida para a população. Nos países periféricos, contudo, as tentativas de implantação dessa idéia não têm propiciado os mesmos resultados. De todo modo, a Constituição Federal de 1988 positivou os princípios da social-democracia.

Ensina-nos o Prof. Carlos Jacques Vieira Gomes que há duas categorias de princípios jurídicos na Constituição de 1988: os princípios liberais ou estatutários, e os princípios intervencionistas ou conformadores, que compõem a constituição econômica em sentido formal e definem a ordem econômica instituída. Os princípios liberais são os que se opõem ou limitam a intervenção do Estado, garantindo uma esfera de isenção ao particular em face da ação estatal, e os princípios intervencionistas são os que justificam e impõe essa intervenção, como forma de conformar a realidade econômica e social. Dentre os princípios liberais – aduz o mencionado autor – pode-se citar a livre iniciativa econômica (arts. 1º, IV, 5º, XIII e 170, caput) e o direito à propriedade privada dos meios de produção e de consumo (arts. 5º, XXII e 170, II); e, dentre os princípios intervencionistas, pode-se mencionar a dignidade da pessoa humana (arts. 1º, III e 170, caput), o valor social do trabalho (arts. 1º, IV e 170, caput), a função social da propriedade (arts. 5º, XXIII e 170, III), o objetivo de construção de uma sociedade livre e solidária (art. 3º, I), dentre outros. [24]

Ao lado da política de seguridade social, de prestação de serviços públicos, enfim, de proteção da população, para atingir os objetivos de bem estar social, é protegida a liberdade de iniciativa dos particulares, mas é também permitida pela Constituição não apenas a regulamentação dessa atividade econômica e a até a própria exploração diretamente pelo Estado, nos limites estabelecidos pelo art. 173 da Constituição Federal. A regra geral, porém, é que incumbe o exercício da atividade econômica aos particulares: a atuação direta do Estado como agente produtivo é excepcional.

É fundamental ter em mente que a liberdade de atividade econômica somente pode ser limitada pela lei, assim como o direito privado - que rege a atividade econômica - prestigia a teoria da autonomia da vontade. Nesses pressupostos está assentado o modelo jurídico do liberalismo econômico vigente no Brasil. [25]

Feitas essas considerações, vejamos os princípios da ordem econômica, tal como positivada pela Constituição Federal.

De acordo com o caput do art. 170, da Constituição Federal, a ordem econômica está fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. O escopo é assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Ainda que a planificação econômica não seja um princípio da ordem constitucional brasileira, há um nítido caráter de constituição dirigente na Constituição Federal de 1988. Existem objetivos a serem atingidos: "assegurar a todos existência digna" (art. 170); "bem-estar e justiça sociais" (art. 193) etc.

A interpretação da legislação infraconstitucional e até mesmo dos dispositivos constitucionais deve ser feita de acordo com estes postulados:

- valorização do trabalho;

- livre iniciativa;

- existência digna a todos;

- justiça social.

O fundamento da ordem econômica é a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. Ou seja, o legislador constituinte deixou clara a opção pelo liberalismo econômico, em sua versão social-democrata. Isso significa que o Estado brasileiro não deve ser omisso na condução da economia. Ao contrário, deve agir.

Assim, "A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da ‘iniciativa do Estado’; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa". [26]

O art. 170 também estabelece alguns princípios, que norteiam a ordem econômica. São eles:

- soberania nacional;

- propriedade privada;

- função social da propriedade;

- livre concorrência;

- defesa do consumidor;

- defesa do meio ambiente;

- redução das desigualdades regionais e sociais;

- busca do pleno emprego;

- tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Além disso, os arts. 172 a 181 estabelecem princípios e regras, dentro do contexto geral dos princípios gerais da atividade econômica.

Não é difícil concluir que a Constituição Federal estabeleceu uma economia de mercado. A iniciativa privada é um princípio básico dessa ordem econômica, de natureza capitalista. José Afonso da Silva responde como deve isso ser interpretado diante do postulado da valorização do trabalho humano como fundamento da ordem econômica:

embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado. Conquanto se trate de declaração de princípio, essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado na economia, a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho que, ao lado da iniciativa privada, constituem o fundamento não só da ordem econômica, mas da própria República Federativa do Brasil (art. 1º, IV). [27]

Os arts. 173, 174 e 175 da Constituição Federal estabeleceram que o Estado regula a economia, presta serviços públicos e, em caráter excepcional, exerce atividade econômica. São atividades que não se confundem, devendo ser complementares, como veremos adiante.

Portanto, não se deve confundir a atuação direta do Estado como agente produtivo, que é excepcional, com a atuação do Estado na economia como agente normativo, prestador de serviços públicos, sancionador de condutas lesivas à ordem econômica etc., que nada tem de excepcional. Nesse sentido, já afirmou o STF:

É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. [28]

Sobre o autor
Bruno Mattos e Silva

Bacharel em Direito pela USP. Mestre em Direito e Finanças pela Universidade de Frankfurt (Alemanha). Foi advogado de empresas em São Paulo, Procurador-chefe do INSS nos tribunais superiores, Procurador Federal da CVM e Assessor Especial de Ministro de Estado. Desde 2006 é Consultor Legislativo do Senado Federal, na área de direito empresarial, de regulação, econômico e do consumidor. Autor dos livros Direito de Empresa (Ed. Atlas) e Compra de Imóveis (Edi. Atlas/GEN).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Bruno Mattos. Limites constitucionais à ação estatal na economia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2431, 26 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14419. Acesso em: 24 dez. 2024.

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