5 Direito de Superfície no Código Civil
Uma das mudanças mais marcantes do Código Civil de 2002 para o de 1916 foi que, no Livro III, dedicado ao direito das coisas, há previsão do direito de superfície como direito real sobre coisa alheia.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (401), em sua obra, introduzem o assunto da seguinte forma:
No projeto do Código Civil de 1916 houve a inserção da matéria por Clóvis Beviláqua, mas a Comissão Revisora suprimiu o ingresso da temática. Também estava a superfície alinhado no anteprojeto do Código Civil de Orlando Gomes de 1963. Mas, pioneiramente, o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.157/01) regulamentou os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, introduzindo no ordenamento jurídico pátrio o direito de superfície. No Código Civil de 2002 a disciplina se instala no Livro do Direito das Coisas (arts. 1.369 a 1.377, do CC).
A finalidade do direito de superfície no Código Civil é atender às necessidades privadas.
A regra do Código Civil de 2002 é de que tudo que é plantado ou construído no solo é de propriedade do dono do solo. É o que consagra o art. 1.255 [17] do Código Civil.
Essa regra, porém, é relativizada com o direito de superfície. É que no caso do direito de superfície, a propriedade do que se plantou ou construiu será de propriedade desse terceiro que praticou o ato, permanecendo a propriedade do solo com seu proprietário.
Edílson Nobre Júnior leciona:
[o direito de superfície], como um direito incidente sobre um bem imóvel, independente do direito do solo sobre o qual é exercido. Tem como efeito excepcionar o brocardo latino quod solo inaedificatur solo cedit, consoante o qual tudo aquilo que é construído sobre o solo acede a este.
São essas as lições de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (401):
Há um fenômeno de superposição de duas propriedades distintas. Nesta bipolarização da propriedade, o superficiário e o proprietário do solo atuam em esferas distintas. Enquanto o superficiário adquire a propriedade resolúvel das acessões (construções e plantações), o proprietário mantém a titularidade sobre o solo. Ou seja: ao contrário da dogmática dos direitos reais tradicionais de fruição (v.g.enfiteuse, usufruto), não há um desdobramento dos poderes dominiais, e sim a criação de duas propriedades autônomas.
Nota-se que no direito de superfície não há uma relação de subordinação. São duas propriedades autônomas e horizontalmente fracionadas. Cada uma dessas propriedades mantém seus atributos de uso, fruição, disposição e reivindicação.
O direito de superfície é firmado em um contrato solene por escritura pública levada a registro. Como já visto, a escritura pública, neste caso, independe do valor do imóvel, pois trata-se de exigência do próprio artigo. É possível que as partes estipulem neste contrato qualquer cláusula, desde que não atinja a legislação urbanística.
Após essa solenidade, o direito real de superfície constitui-se como direito real imobiliário.
A propósito, a superfície insere-se no Código Civil de 2002 em um rol numerus clausus de direitos reais (art. 1.225, II [18], CC).
Há uma diferença marcante entre a superfície prevista no Estatuto e a prevista no Código Civil. Esta só pode se dar por prazo determinado, enquanto que aquela admite estipulação por prazo indeterminado. Note-se que nenhuma delas permite a superfície perpetuamente.
O bem que será concedido em superfície é, num primeiro momento, incorpóreo. Após, o superficiário dará forma a esta superfície, construindo ou plantando.
Pelo Art. 1369 [19], CC, percebe-se que o legislador quis excluir a denominada superfície por cisão, ou seja, superfície de construções já edificadas antes do nascimento da superfície. Porém, a III Jornada de Direito Civil deu outra interpretação ao artigo, afirmando admitir-se a constituição do direito de superfície por cisão, o que pode ter grande utilidade no caso das construções mal conservadas.
Aqui, há também a possibilidade de disposição do direito de superfície, por transferência a terceiros via negócio jurídico ou pela sucessão dos herdeiros. Por obvio, diante da transmissão, o direito de superfície perdurará pelo tempo restante.
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald observam (407):
... nada impede que seja o direito de superfície objeto de transferência por legado, em razão de disposições testamentárias, com a possibilidade de inserção de cláusula de inalienabilidade da propriedade superficiária. Cuida-se de negócio jurídico mortis causa, que aqui poderia se aplicar sem lesão a normas de ordem pública.
O Art. 1369, parágrafo único [20], não autoriza obra no subsolo, exceto se isso for inerente à concessão feita, como, por exemplo, abertura de poço artesiano e canalização de águas até o local da plantação.
O direito de superfície poderá ser concedido de forma gratuita ou onerosa. Se onerosa, as partes podem estipular se o pagamento será integral ou parceladamente. A remuneração periódica do proprietário é chamada solarium ou cânon superficiário. Se gratuita, ainda assim será de grande utilidade para ambos os envolvidos, já que o proprietário, ao final, receberá o imóvel valorizado, sem ter investido para isso; ao passo que o superficiário terá tirado proveito econômico do mesmo enquanto durou a superfície.
Em todo o caso, o superficiário é quem deverá arcar com os encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel. Não obstante a disposição expressa no Art. 1371 [21], as partes poderão estipular sobre o pagamento desses valores de forma proporcional entre o proprietário e o superficiário.
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald fazem uma observação interessante (409):
Não observamos inconstitucionalidade na regra, por suposta violação ao Art. 146, III, da Constituição Federal, que exigiria reserva de lei complementar para a definição de contribuintes e de tributos. Em sentido diverso, o Código Civil não criou nova espécie de contribuinte, e sim um responsável patrimonial em caráter de solidariedade passiva com o proprietário – contribuinte -, medida factível por meio de lei ordinária (art. 128 do CTN). Enquanto o contribuinte tem vínculo pessoal e direto com o fato imponível, o responsável se relaciona apenas de forma mediata com o fato gerador. Em suma, o poder público poderá cobrar as obrigações tributárias do proprietário ou do superficiário, ou mesmo de ambos.
Como ocorre no Estatuto, ocorrendo a alienação da superfície ou do imóvel, caberá ao proprietário ou superficiário, respectivamente, a preferência na aquisição daqueles.
Segundo Maria Helena Diniz (1097):
Aquele que preterir o direito de preferência do outro deverá pagar indenização pelas perdas e danos, e o preterido poderá depositar em juízo o valor igual ao pago pelo terceiro.
O Código ainda permite que o proprietário extinga o contrato no caso do superficiário dar destinação diversa à pactuada, sendo a extinção uma conseqüência do desvio de finalidade.
A extinção da concessão da superfície deverá ser averbada no Cartório de Registros Imobiliários. A partir daí, o proprietário do imóvel volta ter o domínio pleno, independente de indenização sobre a construção ou plantação realizada, salvo disposição expressa em contrário no contrato que instituiu a superfície.
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (405) fazem uma importante observação quanto à destinação diversa da superfície:
... poderá o superficiário constituir ônus reais sobre o seu direito de propriedade, concedendo parcelas dominiais para a formação de direitos reais em coisa alheia, como o usufruto, servidão e direito de habitação.
Neste sentido, na III Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal, aprovou o seguinte enunciado:
Enunciado n. 249: a propriedade superficiária pode ser autonomamente objeto de direitos reais de gozo e de garantia, cujo prazo não exceda a duração da concessão da superfície, não se lhe aplicando o art. 1474 [22].
Nos casos de desapropriação, a indenização deverá ser repartida entre o proprietário e o superficiário, do mesmo modo que ocorre no Estatuto da Cidade, no valor que corresponder ao direito de cada um deles.
6 Conflito aparente de normas
Como o direito de superfície acabou sendo reintroduzido no ordenamento jurídico por meio de dois diplomas legais distintos, faz-se necessário saber se houve a revogação do Estatuto da Cidade frente ao Novo Código Civil, no que tange ao direito de superfície.
Tendo em vista o Código Civil ter regulado a mesma matéria que já estava tratada no Estatuto da Cidade, alguns afirmam que o Código Civil teria revogado o Estatuto nesta matéria, segundo o §1º, Art. 2º da Lei de Introdução do Código Civil, que assim dispõe:
§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
Este é o raciocínio com o qual coaduna J. Miguel Lobato Gómez:
O Novo Código Civil é posterior à Constituição e, praticamente, a todas as leis especiais vigentes, incluindo o Estatuto da Cidade. Além disso, não cabe dúvida que os princípios fundamentais que inspiram o novo Código em matéria patrimonial podem considerar-se formal e materialmente, conformas a atual Carta Magna do Brasil, especialmente em matéria de função social da propriedade e do contrato. Portanto, ninguém pode argumentar que o código civil vigente, por mais que seja o resultado de um processo iniciado nos anos setenta, por mais que assuma conceitos, regras e princípios de direito patrimonial já consagrados no vetusto texto de 1916, não teve em conta a Constituição e não respeitou seus princípios fundamentais. Além disso, embora seja uma lei geral, é uma lei posterior que, se não derroga por completo nenhuma lei anterior, ao menos derroga tacitamente todos os preceitos das leis vigentes com antecedência, gerais e especiais, em tudo o que sejam claramente contrárias ou se oponham ao estabelecido nelas.
Noutro giro, há doutrinadores que apontam que o critério que deve prevalecer nesse conflito de normas é o da especialidade. Afirmam que o Estatuto da Cidade seria um microssistema, assim como o Código de Defesa do Consumidor.
Em casos como este, a prudência deve imperar, conforme ensina Maria Helena Diniz (2001:90):
Em caso de antinomia entre o critério de especialidade e o cronológico, valeria o metacritério lex posterior generalis non derrogat priori speciali, segundo o qual a regra de especialidade prevaleceria sobre a cronológica. Esse critério é parcialmente inefetivo, por ser menos seguro do que o anterior, podendo gerar uma antinomia real. A meta-regra lex posterior generalis non derrogat priori speciali não tem valor absoluto, dado que, às vezes, lex posterior generalis derogat priori speciali, tendo em vista certas circunstâncias presentes. A preferência entre um critério e outro não é evidente, pois se constata uma oscilação entre eles. Não há uma regra definida; conforme o caso, haverá supremacia ora de um, ora de outro critério.
Diante disso, não houve revogação e os dois diplomas legais co-existem, cada um em seu campo de incidência. Esta é a orientação aprovada na I Jornada de Direito Civil:
Enunciado n. 93 – As normas previstas no Código Civil, regulando o direito de superfície, não revogam as normas relativas a direito de superfície constantes do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), por ser um instrumento de política urbana.
Desta forma, prevalece o entendimento de que os dois diplomas convivem no que diz respeito ao direito de superfície. Não obstante, outra discussão é travada. Visando estabelecer o critério de fixação da especialidade, para saber qual a lei aplicável ao caso concreto.
Sarmento Filho (2008) resume a polêmica que envolve o tema:
Em primeiro lugar, existem aqueles que elegem como objeto determinante da especialidade o fator localização do imóvel (a). Desse modo, quando o imóvel sobre o qual se institui a superfície se localizar em área urbana, aplica-se o Estatuto da Cidade, ao passo que o Código Civil estaria reservado aos imóveis rurais.
Outros, por sua vez, consideram que a especialidade do Estatuto da Cidade não seria no sentido de aplicá-lo sempre que o solo fosse urbano, mas sim quando o direito superficiário fosse utilizado como instrumento de política urbanística (b).
Destarte, nos casos em que o direito de superfície não fosse utilizado como instrumento de política urbana, mas como simples aproveitamento econômico da propriedade pelos particulares incidiria o Código Civil, mesmo que o solo fosse situado no perímetro urbano.
Isto porque o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257/01, foi editado para dar cumprimento ao artigo 182 da CF/88, que trata da política de desenvolvimento urbano.
Assim, o que esses doutrinadores têm a dizer é que o Código Civil traz um direito de superfície como instrumento destinado a atender interesses e necessidades privados, ao passo que no Estatuto da Cidade, o direito de superfície é voltado para atender as necessidades do desenvolvimento urbano, viabilizando a função social da cidade. Destarte, o caso concreto, dentro desses motivos, determinaria qual o diploma legal o regeria.
Mesmo porque o Código Civil não revogou expressamente a lei especial, como o fez no caso do Código Comercial, o que demonstra que a vontade do legislador não foi a de revogar o Estatuto da Cidade.
Na verdade, o caso concreto dirá se é caso de aplicação do Estatuto da Cidade, do Código Civil ou dos dois, pois o aplicador do direito deve buscar harmonizar as normas provenientes de múltiplas fontes.
Por isso, Sarmento Filho (2008) exemplifica:
... se o município, por exemplo, desafetar uma praça e instituir o direito de superfície para explorar como estacionamento, incidirá as regras do Estatuto da Cidade.
Se, todavia, é o particular que constrói uma piscina no terreno vizinho sob o regime superficiário, aplicar-se-ia o Código Civil.
Percebe-se que não há incompatibilidade entre os dois regramentos, havendo apenas antinomias aparentes, facilmente superadas pelo diálogo das fontes.