O Presidente dos Estados Unidos da América do Norte (1901-1909) Theodore Roosevelt proferiu no inicio do século XX o seguinte discurso:
"Um dia perceberemos que o principal dever, o dever inevitável de um cidadão correto digno, é o de deixar sua descendência no mundo. E também que ele não tem o direito de permitir a perpetuação do cidadão incorreto. O grande problema da civilização é assegurar um aumento relativo daquilo que tem valor, quando comparado aos elementos menos valiosos ou nocivos da população. O problema não será resolvido sem uma ampla consideração da imensa influência da hereditariedade. Eu desejo muito que. se possa evitar completamente a procriação de pessoas erradas. E o que se deve fazer, quando a natureza maligna dessas pessoas foi suficientemente flagrante? Os criminosos devem ser esterilizados, e aqueles mentalmente retardados devem ser impedidos de deixar descendência. A ênfase deve ser dada à procriação de pessoas adequadas."1
O século XIX foi o século das ideias. Neste momento da história surgiram teorias sociais e econômicas, foi o momento do aparecimento dos partidos políticos e as pessoas acreditavam que seria possível construir uma sociedade ideal. Havia uma crença no progresso como destino da humanidade. Esta crença se manifestou nas ciências naturais e nas ciências humanas.
O inglês Francis Galton acreditava que a ciência podia ajudar na evolução biológica inexorável da "raça" humana. Em um momento de grande desenvolvimento econômico desordenado, pois fundado em premissas teóricas econômicas liberais, a miséria e as desigualdades sociais passam a ser explicadas, não por razões históricas, mas pela incapacidade de algumas pessoas de espírito e corpos inferiores.2
Este discurso cumpre uma função de grande importância para o grupo de pessoas que representava os interesses das grandes empresas capitalistas que cresciam e lucravam com a economia liberal do século XIX. A naturalização de algo que tem fundamento social e econômico, e, portanto, histórico, servia claramente aos interesses daqueles que ganhavam com o sistema posto e por isto não tinham nenhuma intenção em mudá-lo.
Entre as medidas propostas pela teoria eugênica encontramos:
a)Educação social de jovens visando o casamento de pessoas aptas a uma "procriação sadia";
b)Combate aos "vícios morais" como o alcoolismo e o antipatriotismo e às "doenças morais" como a sífilis e a tuberculose; 3
c)Esterilização de pessoas "ineptas" ou proibição de casamento pessoas "ineptas" à procriação. 4
O Filme Homo Sapiens - 1900 (Suécia, 1998, 88 minutos) do sueco Peter Cohen nos mostra as experiências e políticas eugênicas racistas em sistemas políticos e econômicos bem diferentes como o liberalismo norte-americano; a social democracia sueca e o totalitarismo nazista da Alemanha hitlerista. O f1lme mostra ainda o embate entre duas correntes eugênicas que repercutiram, durante algum tempo, o embate ideológico entre capitalismo (nas suas vertentes liberal, social e totalitária) e o socialismo soviético do período inicial do stalinismo.
O nazismo chegou ao extremo de criar uma clinica de reprodução, onde homens "arianos perfeitos" eram escolhidos reprodutores para inseminação de mulheres "arianas" com o intuito de criar uma geração de "arianos evoluídos".
A explicação de todos os problemas sociais e econômicos era dada de forma estratégica (ideológica) por falsas verdades biológicas, especialmente pela genética.
Ideologia como encobrimento do real. O real existe.
"Há quem sustente que a atual complexidade atingida pela bioética alcançou tamanhas proporções que já se pode sentir sua proximidade com as ideologias; isso quer dizer que a bioética, revestida com as características de uma ideologia, não conseguiria dialogar com a ciência, assim como o evolucionismo não dialoga com o criacionismo". 5
Precisamos primeiro explicar o significado da palavra ideologia empregado neste texto. Para isto vamos propor a conciliação entre conceitos que em geral são postos como inconciliáveis: ideologia como distorção do real, realidade e autopoiesis. Abandonando preconceitos e verdades pré-estabelecidas vamos pensar juntos.
O real existe? O mundo ocidental vem se reencontrando com o seu passado, quando oriente e ocidente, materialismo e espiritualismo não eram cuidadosamente separados. Em um destes reencontros, a ideia de autopoiesis como essencial à vida é retomada. Um destes reencontros está na obra de dois biólogos chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela, que após experiências com a visão de animais reconstroem o conceito de autopoiesis como condição de qualquer ser vivo. Não se trata aqui de explicar o social pela biologia, mas de compreender uma condição humana que repercute na nossa condição no mundo. Não é, pois, nenhum "biologismo" ideológico. Esta compreensão não se opõe a nossa condição de seres históricos, capazes de construir nossa própria história, como ao contrário, o leitor verá. A autopoiesis reforça a ideia de historicidade, de contextualização da compreensão do mundo, das ideias e das pessoas.
Um pressuposto fático e não apenas teórico, é a condição de que, enquanto vivos, estarmos condenados a autopoiesis. Somos necessariamente, enquanto seres vivos, autorreferenciais e autorreprodutivos, e esta condição se manifesta também nos sistemas sociais.
Humberto Maturana e Francisco Varela6, trouxeram uma importante reflexão, que a partir da compreensão da vida na biologia, resgatam a ideia de autorreferência que se aplica para toda a ciência. 7
Estudando a aparelho ótico de seres vivos 8, os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua língua quando era lançada para pegar uma presa, seguia, também, na direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.
A partir desta simples experiência temos uma conclusão que pode ser absolutamente obvia, mas que, entretanto, foi ignorada pelas ciências durante séculos, ciências que buscavam uma verdade única, ignorando o papel do observador na construção do resultado.
O fato é que, entre nós e o mundo, existe sempre nós mesmos. Entre nós e o que está fora de nós existem como que lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma destas lentes.
Assim, para percebemos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado, que é capaz de perceber cores e uma série de coisas, mas, que não é capaz de perceber outras, ou por vezes nos engana, fazendo com que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores.
Outras lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas, e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim quando estamos deprimidos percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e interpretar o mundo. De outra forma, quando estamos felizes, ou quando tomamos drogas, como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada por esta condição química. A cada vez que recordamos um fato, esta condição influencia nossa lembrança. A percepção diferente do mesmo fato decorre do fato de que cada observador é um mundo, um sistema autorreferencial formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.
Assim podemos dizer que uma outra lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo, é constituída por nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo está condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.
Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo tempo nos revela um mundo esconde outros. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre a cinquenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em um determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos, que até o momento são dificilmente universalizáveis.
Somos seres autopoiéticos (autorreferenciais e autoreprodutivos) e não há como fugir deste fato. Entre nós e o que esta fora de nós sempre existirá nós mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chamamos de realidade. Nós somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Nós somos a dimensão de nosso mundo.
A linguagem e a série de conceitos que ela traduz é nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será revelado.
Assim não podemos falar em urna única verdade. Não há verdades científicas absolutas, pois é impossível separar o observador do observado9. Este universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, as intolerâncias. A compreensão da autopoiesis significa a revelação da impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo a tolerância, a relatividade, a compreensão e a busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A relatividade pode ser amiga do diálogo, essência da democracia., desde que também, não absolutizada.
Importante lembrar que o reconhecimento da relatividade do conhecimento não exclui a existência do real. O real existe além da matrix. O real é relativo e histórico, mas ao mesmo tempo, é diferente da mentira que busca propositalmente encobrir o real, é diferente de um mundo construindo pelo outro com o propósito de encobrir algo.
O termo ideologia 10 encontra na filosofia e nas ciências sociais, significados distintos. Podemos resumir de forma simplificadora dois significados principais, um positivo, como um sistema lógico de ideias que visam um determinado objetivo ou e um em sentido negativo, enquanto o encobrimento ou distorção proposital do real. Trabalhamos aqui a ideologia como uma força que se interpõe entre a pessoa e o seu entorno (o real) distorcendo ou encobrindo os fatos sob análise do observador. Desta forma, não ignorando a condição autopoiética, histórica e contextualizada do conhecimento, utilizamos o termo ideologia como uma representação distorcida do mundo criado por um terceiro por meio de diversas formas, que impede que a visão histórica da pessoa possa atuar sobre os dados do real.
A questão é complexa pois este terceiro, este poder do outro, pode atuar e atua na formação das pré-compreensões que fundamentam a discussão do mundo. Nos significados atribuídos aos significantes básicos que formam nossa condição primeira de comunicação. Daí a importante afirmação de Slavoj Zizek quando este diz que o grande embate do poder é pela construção do senso comum. Pela construção dos significados do mundo:
"A luta pela hegemonia ideológico-politica é por conseqüência, sempre, a luta pela apropriação dos termos ´´espontaneamente´´ experimentados como apolíticos, como transcedendo as clivagens políticas." 11
Além de uma luta pela construção dos significados dos significantes (na escola), pela construção do senso comum com seu desprezo pela conexão das palavras com os fatos e com o seu sentido histórico, Zizek chama a atenção para termos que, "ideologicamente", se tornam apolíticos (como direitos humanos, por exemplo) e a importância capital pela sua apropriação, ou seja, pela apropriação de seu sentido. Estes termos têm a força de se tornarem sacralizados, intocáveis, uma vez que despolitizados.
Neste sentido a matrix é real enquanto algo que encobre propositalmente a possibilidade de intervir na história, ou provoca intervenções que não intencionalmente levem ao caminho oposto do desejado. O que chamamos de real são as relações que se constroem no mundo da vida como possibilidade de dialogo e intervenção na história não manipulada pelo outro. O real não busca estrategicamente encobrir os jogos de poder, o real é a revelação dos jogos de poder. A mentira se opôs ao real ou a uma verdade historicamente construída.
Matrix, o filme (1999) parte desta compreensão e propõe algo assustador. E se nossa autorreferência não pertencer mais a nós mesmos? Se alguém, um poder externo construir nossos limites de compreensão e nossas verdades? A partir deste universo o filme nos incita a outra reflexão: na medida em que outro constrói propositalmente mentiras que se transformam em verdades estamos impossibilitados de perceber o real. Este manipulador externo de nosso mundo usurpa nossa liberdade.
A partir do momento em que a matrix cria um mundo artificial de mentiras, propositalmente, para que não enxerguemos o real, podemos dizer que o real existe e pode ser alcançado. A tentação relativista da compreensão da autopoiesis pode encontrar um limite real. O real se constitui nas relações de interpretação e de comunicação fundadas em uma base de honestidade, de compromisso de busca de uma comunicação que parta de pressupostos de honestidade. A matrix se constrói sobre a construção proposital da mentira com fins de manipulação, de dominação e de pacificação pela completa alienação das condições reais de vida, das reais relações de poder. Alguém propositalmente me faz acreditar em suas mentiras como sendo verdades. Nas relações falsamente construídas como sendo reais.
A matrix é real. A manipulação da opinião pública, a distorção proposital do real, a fabricação de noticias e de fatos que encobrem os fatos, a criação de fatos falsos está presente. Assistimos golpes midiáticos como a tentativa de golpe contra o governo constitucional de Hugo Chaves onde a mídia fabricou fatos, notícias, medos. Assistirnos ao golpe midiático nos EUA como a ocorrida na primeira eleição de Bush e a sustentação de um estado de exceção mantido pela geração diária do medo pela grande mídia. A matrix está ai, mas seus limites são claros na reação popular ao golpe na Venezuela.
O interessante do filme é que as agressões no mundo da matrix são reais. Talvez o único real no mundo da matrix. Uma agressão física virtual causa feridas reais. Daí que a fuga do real na matrix não garante segurança e retira liberdade.
A verdade posta no filme está na conexão do eu com o real. Este eu que interpreta o mundo. Na matrix não há verdade, pois, não há conexão entre o eu e o real. O real foi subtraído da experiência de vida. A pessoa vive uma representação criada por outro.
A descontextualização do crime no século XIX e os novos devaneios securitários fundados na tecnologia.
A minha alma ta armada
E apontada para a cara do sossego Pois paz sem voz, paz sem voz
Não é paz é medo
Às vezes eu falo com a vida Às vezes ela quem diz
Qual a paz que eu não quero conservar Pra tentar ser feliz
As grades do condomínio São pra trazer proteção
Mas também trazem a dúvida Se é você que esta nesta prisão
Me abraça e me dê um beijo
Faça um f1lho comigo
Mas não me deixe sentar numa poltrona num dia de domingo
Procurando novas drogas de aluguel nesse vídeo coagido
E pela paz que eu não quero seguir admitindo
(Minha alma - A paz que eu não quero) - O Rappa / Marcelo Yuka)
Segurança e liberdade não são inconciliáveis. São, em certa medida, complementares. Em tempos de criminalidade crescente, terrorismo, desemprego e insatisfação o recurso ao discurso da segurança com perda de ,liberdade e aumento de controle encontra respaldo em uma sociedade assombrada, amedrontada pela mídia e pelos governos.
A busca da segurança com a criação de mecanismos de controle, de isolamento, pode manter distante o perigo que vem do outro externo a uma comunidade, mas não tem como nos afastar de nós mesmos, não nos isola da condição humana. Se há a crença falsa de que alguns entre nós já nascem criminosos o isolamento entre muros não nos afasta desta possibilidade que estaria na nossa natureza. Se a violência é inerente à condição humana e diante de determinadas circunstâncias todos nós podemos praticar atos violentos, de nada adianta vivermos entre muros, pois o que deve ser evitado é que a paixão, a história, os encontros e desencontros não sigam determinados caminhos. Logo assim será necessário controlar a história de cada pessoa, casal, família, comunidade e sociedade. Como controlar as ações das pessoas? Como controlar as ações e desejos de agir que não podem ser percebidos pelas câmeras de controle? Colocando um mecanismo de controle dentro de cada pessoa, o medo, o sentimento permanente de medo.
O filme "A vila" (The Village - 2004) cuida do controle; do isolamento; da busca de uma sociedade ideal, isolada, controlada e limitada por muros externos e pelo medo interno. Pessoas cansadas e amedrontadas querem controlar o tempo; o espaço e os valores de uma sociedade criada para não viver a violência. Mas a qual violência nos referimos? A violência do medo; do não poder; do não desejar; a violência de não sair dos muros seguros e de esconder sua própria condição de sujeito.
Do controle exercido sobre as crianças, o mais cômodo e eficaz parece ser o medo. A geração artificial do medo. Não o temor sobre o real, mas um temor que ultrapassa o real. O perigo pode estar em cada esquina, em cada pessoa, em cada ação. O desconhecido é, por essência, perigoso mesmo que seja desconhecido. O medo paralisa e quanto maiores os temores do que não existe menos nos expomos ao que existe. A segurança nestes termos não passa pelo conhecimento dos limites, mas pela limitação da ação, do desejo, trancafiando qualquer transgressão nos limites culpados de um sonho que se esconde de si mesmo.
Portanto, a segurança está em gerar um medo além dos limites do real. A partir daí tudo passa a ser idealizado e distanciado do real: os muros; o controle; as câmeras de controle policial; o efetivo policial; a armas que protegem; os presídios de segurança máxima; tornozeleiras para presos; "chips" na cabeça; controle genético, etc.
O medo torna as pessoas dóceis. Facilita a negociação com os direitos. As pessoas estão dispostas a abrir mão de qualquer coisa até o limite do medo que estas sentem. Quanto maior o medo mais fácil se torna a negociação.
O filme "A vila" trata de uma comunidade de se afasta do real e projeta uma nova realidade controlada, idealizada e controlada pelo medo. O medo infantil do lobo na floresta, de animais desconhecidos e perigosos, o medo do escuro, o medo de sons na noite. A descoberta da violência entre dos membros da comunidade apresenta um problema sem solução: como nos protegermos de nós mesmos.
O filme foi realizado em uma realidade histórica específica: 2001. Os atentados terroristas e o fortalecimento dos mecanismos de controle com a concordância da população amedrontada. Quanto maior o medo do outro, gerado pelo poder, mais fácil se torna abrir mão de qualquer coisa. O outro é desconhecido; diferente de nós; meio humano meio selvagem. Os valores do outro não são os nossos valores e esta condição meio humana facilita a compreensão da necessidade de eliminação deste outro.
Este outro estranho aos valores "humanos", esta invenção deste outro não humano, que não merece direitos humanos por não ser humano é necessária para não enxergamos este outro em nós. A compreensão de nossa condição se torna logo uma ameaça à segurança. Não podemos nos enxergar no outro. Este "outro" estranho passa a ser a razão de toda nossa insegurança e a sua eliminação (impossível) se torna o meio de garantir a nossa segurança.
No século XXI este outro é para alguns o terrorista; para outros o ocidental; para alguns o monstro assassino; para outros a polícia. Lembrando de um trecho da letra da musica "Les uns et les autres" do filme "Retratos da Vida" de Claude Lelouch: "Se cada um é outro para um, raramente ele é um para o outro, apesar de todos os discursos e os pedidos de socorro, dos outros."
Para refletirmos este século XXI na sua busca impossível por segurança e liberdade em uma sociedade capitalista; realização de desejos nas demandas criadas pelo mercado e a castração do sonho, vamos buscar algumas reflexões a partir da história do século XIX.
O século XIX (e não só ele) foi o século do encarceramento, o afastamento físico dos não adaptados em estabelecimentos de internação coletiva como os presídios e os manicômios. Um exemplo típico de encobrimento do real.
O liberalismo econômico não saiu como esperado.
Da promessa de uma sociedade com oportunidade para todos, liberdade e igualdade, livre mercado e economia democratizada, o liberalismo se mostrou na prática o que a teoria não escondia mas o discurso disfarçava: radicalmente excludente. Se o direito liberal era para homens brancos e a democracia para homens brancos e ricos a economia não poderia oferecer oportunidades para todos. Nem igualdade perante a lei, nem oportunidade, nem tampouco liberdade foi o resultado do liberalismo no século XX, e as conquistas do voto igualitário e do voto feminino veio da ação dos partidos e sindicatos socialistas.
Desigualdade, exclusão e miséria, se não são os únicos fatores para a criminalidade são os fatores preponderantes no século XIX assim como nas sociedades e economias neoliberais contemporâneas.12 Não seria necessário cercar de muros as novas cidades burguesas, os bairros ricos, os condomínios fechados com segurança privada, se a desigualdade não fosse tanta e os valores tão individualistas. Uma sociedade fundada no individualismo, na competição e no egoísmo parece não ter muito futuro.
A equação que se formou no século XIX tem características interessantes que mostram a necessidade de encobrimento do real para aqueles que se encontram no poder. Vigia a época o voto censitário previsto na ordem constitucional liberal de boa parte dos países ocidentais. Por este mecanismo só votava quem tivesse propriedade e renda anual superior a um determinado patamar e só poderia ser votado quem tivesse renda ainda maior. Ora, a equação é fácil. A economia denominada liberal com total ausência de intervenção estatal permitiu que poucos dominassem os mercados. Estes poucos votavam e podiam ser votados e logo estavam no poder do estado. Para eles, o sistema econômico que excluía a maioria e gerava exclusão trazendo criminalidade, exclusão, desigualdade, não era um problema mas a solução. Logo como fazer com a criminal idade?
Para reduzir substancialmente o problema era necessário mudar o sistema econômico o que lhes traria um enorme problema pois comprometeria sua crescente riqueza. Mas no poder do Estado, estes conservadores, para manter seu poder, deveriam controlar a criminalidade. Logo para resolver o problema sem criar problemas para o sistema que lhes beneficiava nada melhor que desconectar os dois: separar criminalidade do sistema econômico-social. Mesmo que se pudesse estabelecer no mundo real uma relação entre os dois, agora no discurso os dois estão separados.
A criminalidade passa ser responsabilidade exclusiva dos criminosos: que conclusão obvia diriam alguns! Mas resta uma pergunta: porque os criminosos cometem crimes? Ora, porque nascem doentes ou maus ou então adoecem ou escolhem o caminho do mal. Afinal vivemos numa sociedade livre diriam os liberais (acreditando) e os conservadores (sabendo que era mentira). Logo para resolver o problema construímos presídios e manicômios, aumentamos as penas e os crimes, radicalizamos o tratamento e expandimos as patologias. Então gradualmente todos passam acreditar que solucionarão o problema da insegurança e criminalidade com presídios, muros, códigos, penas, manicômios, drogas legais, médicos e choques elétricos.
Um problema semântico é ignorado: o controle passa a ser a solução. Mas como solucionar um problema com controle? O controle controla, logo se ele controla ele não soluciona, mas simplesmente mantém a situação como está.
Este resumo de extrema simplicidade que acabo de fazer como um filme mudo em preto e branco se repete em pleno século XXI remasterizado, colorido artificialmente e com falsos diálogos científicos introduzidos com requintes de avanços biotecnológicos, pesquisas genéticas e outros espetáculos pirotécnicos que novamente buscam encobrir o real de uma parcela expressiva da classe média.13
O que eu quis demonstrar é como a ideologia pode nos desviar a atenção. Desviar nosso olhar. Enquanto a bola esta na área adversária o goleiro de nosso time pode fazer qualquer coisa pois ninguém olha para ele. Logo ele nunca faz nada pois ninguém viu. Isto me faz lembrar o f1lme "O medo do goleiro diante do pênalti Die angst des tormanns beim elfmeter", do cineasta alemão Wim Wenders de 1972.