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Direito Natural em Tomás de Aquino.

Breve estudo do pensamento jurídico-filosófico medieval

Agenda 21/03/2010 às 00:00

RESUMO: O objetivo deste trabalho é mostrar algumas características fundamentais do contexto da filosofia escolástica medieval, como pano de fundo para a compreensão das teses de Santo Tomás sobre a ordem política, especificamente de sua teoria sobre a hierarquia das leis e o Direito Natural. Os reflexos do pensamento tomista na Modernidade são grandiosos e lançar um olhar sobre o mesmo é parte de um exercício que se deve fazer em busca das teses clássicas do Direito Natural.

Palavras-Chave: 1 Política Medieval; 2 Direito Natural; 3 Pensamento Tomista

ABSTRACT: The objective of this article is to show some basic characteristics of the context of the Medieval Scholastic Philosophy as a basic ground for the understanding of the Thomas Aquinas’ thesis on the politics and Law, mainly on his theory about the hierarchy of the laws and the Natural Law. The consequences of the Thomas Aquinas’ thought in Modernity are very important and to look back on that is part of an exercise that we have to make in search of the classic thesis concerning to Natural Law.

Key-Words: 1 Medieval Politics; 2 Natural Law; 3 Thomas Aquinas’ Thought


Na esfera da reflexão escolástica, mesmo no âmbito da investigação filosófica, o homem não pode basear-se de modo único e definitivo apenas nas suas funções racionais e intelectuais; mas deve buscar uma confirmação e adequação com a herança religiosa e tradicional construída historicamente e aceita como pressuposto de fundamentação da verdade teórica, tanto no âmbito da ciência em geral como na dimensão da filosofia política. Isso é o que leva Abbagnano a afirmar, referindo-se ao olhar escolástico sobre o indivíduo medieval, que:

A tradição religiosa ajuda-o e deve ajudá-lo fornecendo, através dos órgãos da Igreja, um guia esclarecedor e uma garantia contra o erro. Trata-se mais de uma obra comum que individual: de uma obra na qual o simples indivíduo não pode nem deve basear-se apenas nas suas forças, mas pode e deve recorrer à ajuda dos outros e especialmente daqueles que a própria Igreja reconhece como particularmente inspirados e apoiados na graça divina. Daí o uso constante das auctoritates na especulação. Auctoritas é a decisão de um concílio, uma expressão bíblica, uma sententia de um Padre da Igreja. O recurso à autoridade é a manifestação típica do caráter comum e superindividual da investigação escolástica (ABBAGNANO, [s.d.], p. 11).

Outro caráter essencial da filosofia nesse contexto da escolástica medieval é que ela não tenta propor algo totalmente novo ou inovador da ordem posta. Ela está fixada nos conceitos internos das doutrinas vigentes, de modo que o seu recurso à filosofia grega representa a busca de um instrumental teórico-filosófico que possa servir de meio para racionalizar e dar uma explicação lógico-filosófica das doutrinas religiosas.

Nesse contexto, a filosofia grega é um mero meio, o que tem como exemplo o predomínio da filosofia platônica, utilizada por Agostinho num primeiro momento, e a posterior ascensão do pensamento aristotélico averroísta, na pessoa de Santo Tomás. Nesse momento da escolástica, "o seu principal objetivo é o de compreender a verdade já dada na revelação, e não o de encontrar a verdade" (ABBAGNANO, [s.d.], p. 11). Por este motivo é possível afirmar-se que dentro da "estrutura formal que a filosofia medieval apresenta, reflete-se a própria estrutura social e política do mundo medieval [...], um mundo construído como uma hierarquia rigorosa apoiada numa única força que do alto dirige e determina todos os aspectos" (ABBAGNANO, [s.d.], p. 12).

Por essa característica do pensamento medieval podemos entender os impactos que o desenvolvimento do comércio, das viagens e das trocas a partir do século XI, e, principalmente, o fortalecimento dos reinos e da identidade nacional entre o século XIII e o XIV vão causar na mentalidade do homem medieval: "O poder hierárquico começa a surgir, agora, como um limite ou uma ameaça, mais do que uma ajuda ou garantia, à capacidade humana de adquirir ou conservar os bens que são indispensáveis ao homem" (ABBAGNANO, [s.d.], p. 13).

Dentro desse contexto, a mentalidade política do século XIV é marcada pela ascensão do aristotelismo e naturalismo na pessoa de Santo Tomás, que seria radicalizado por Marsílio de Pádua, mas que em Santo Tomás e em outros pensadores, como Dante, que se coloca como defensor da monarquia, ainda não é capaz de romper com o Hierocracismo, dentro do que Alain de Libera nomeará como processo de "platonização do aristotelismo".

O que leva este comentador a afirmar que "essa platonização política do aristotelismo não cobre senão a esfera do poder temporal: o espiritual permanece, com a sua ordem, suas instituições, seu poder próprio" (DE LIBERA, 1998, p. 452). Para compreender Santo Tomás, devemos tomar com nitidez sua inserção nesse quadro de transição em que, mesmo adotando-se uma filosofia naturalista, aristotélico-averroísta, não existe ainda uma radicalização desta, sendo o Aquinate um teórico que ainda afirma o poderio teológico-político da hierocracia na Igreja medieval, sob a ideia da Plenitudo Potestatis Papalis.

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Esse aspecto da mudança do paradigma agostiniano para o paradigma aristotélico de tendência naturalista, nos finais da Idade Média, é o responsável por uma mudança de perspectiva dos intelectuais de então, tanto na teoria política quanto na fundamentação do pensamento eclesiológico, em que se impunha uma escolha entre a defesa do papado ou do Império, como força preponderante em sociedade. É isso que leva Alain de Libera a afirmar que:

No sentido mais imediato do termo, para um intelectual da Idade Média, ‘fazer política’ significa escolher entre as duas grandes expressões do poder medieval: o papado e o Império. Essa escolha resulta em exercícios obrigatórios. Existe, naturalmente, a discussão teórica, essencialmente teológica e jurídica, sobre a independência do poder político em relação ao poder religioso. É aqui que a racionalidade universitária, isto é, o método de raciocínio aristotélico é mais viável e mostra o seu alcance (DE LIBERA, 1998, p. 453).

A interpretação desse cenário é indispensável para elucidar a contribuição da teoria do direito natural tomista para a concepção da lei em Marsílio. O naturalismo aristotélico-tomista exerce influência determinante na obra de Marsílio de Pádua, o que se percebe pelo fato de que a primeira parte do Defensor da Paz é predominantemente inspirada na Política de Aristóteles.

Marsílio usa as seguintes palavras: "ao analisarmos a questão da tranqüilidade e o seu oposto, procederemos de conformidade com Aristóteles em seu livro intitulado Política" (PÁDUA, 1997, p. 76). Segundo Dubra, "a exigência de uma adequada compreensão do pensamento político de Marsílio nos obriga a reconsiderar a significação de seu aristotelismo" (DUBRA, 1997, p. 671).

Notamos, ainda segundo Dubra, que tal compreensão deverá abarcar alguns traços característicos da utilização dos conceitos aristotélicos por Marsílio: 1) uma interpretação de Aristóteles que tenha interesse exclusivamente filosófico (sem compromisso de conciliação com o dogma), que delimita, de um lado, o saber racional e, de outro, o saber da Revelação; 2) o interesse predominante pelo conhecimento natural; 3) a aplicação desses princípios ao plano político. Nesse ponto, devemos ressaltar o fato de que:

O Estagirita sustentava, em primeiro lugar, que era o homem, ele mesmo, que construía sua própria felicidade. Em segundo lugar, que ele a construía mediante o exercício de virtudes puramente naturais, e em terceiro lugar, que essa felicidade se constituía numa situação humana perfeita e completa já nesse mundo (BERTELLONI, 1997, p. 31).

Neste ponto, constatamos que Santo Tomás de Aquino realizou uma síntese entre o pensamento de Aristóteles e a fé cristã revelada na Escritura, cujo objetivo é harmonizar razão e revelação. Santo Tomás distinguiu o poder em sentido abstrato do poder em sentido concreto. O poder em abstrato é basicamente natural, proveniente da razão, da natureza do homem, e tem em vista a realização dos seus fins terrenos, a ser conhecido pela razão natural. O poder concreto deriva da própria decisão humana, onde um grupo de homens exerce o poder sobre os outros. Este poder concreto pertence a Deus, mas "não se dá em virtude de uma escolha direta ou pessoal de Deus, e sim de uma designação meramente humana" (CHEVALLIER, 1985, p. 212).

O poder abstrato refere-se ao direito natural, modelo para a conduta humana. O poder concreto refere-se ao poder atual, ação dos homens sobre outros homens, coação, regra e norma de conduta. Enquanto para Aristóteles o indivíduo encontra sua realização total na cidade, sua causa final, para Santo Tomás o homem tem dois fins, um natural, outro, espiritual.

O Aquinate propõe uma concepção hierárquica das leis eterna, natural e humana.

Para ele, a ordem política é proveniente indiretamente da lei Eterna, que é a expressão perfeita do modo como Deus projetou o cosmo, dando-lhe ordem e dirigindo cada elemento para o seu fim adequado. Esta lei eterna é o princípio que consubstancia a lei natural, que, por sua vez, é o fundamento da lei humana e social. Portanto, a lei humana é uma ordem coerciva derivada do direito natural, que é inato e informa as decisões humanas, de modo que o poder político pertence ao direito natural, que decorre da razão humana, e o seu objetivo é estabelecer a justiça através da razão.

Isso conduz a uma noção de justiça associada diretamente a lei. A forma concreta e definida da justiça é o direito e a lei. Surge então a teoria contratual, que defende que o reino é fruto de um pacto entre o Soberano e o povo. Conforme Santo Tomás, o poder concreto não é divino, e pode ser adquirido por eleição, por delegação ou por mérito evidente (Cf. COSTA; PATRIOTA, 2004, p. 46).

O Aquinate acrescenta na hierarquia das leis eterna, natural e humana um quarto termo: a lei divina positiva, a lei revelada, oferecida pela graça de Deus gratuitamente. Esta lei divina é também necessária para governar a vida humana, mas tem em vista seu fim sobrenatural. Daí fazer-se a distinção entre as injustiças em relação ao bem humano e as injustiças em relação ao bem divino.

O complexo de idéias políticas de Santo Tomás é, de certo modo, um resultado de sua visão das relações entre fé e razão. Segundo Urbano Zilles, a concepção de Santo Tomás no que concerne à relação entre a fé e a razão pode ser resumida do seguinte modo:

a)Fé e razão são modos diferentes de conhecer. A razão como saber natural e a fé como saber superior, vindo da teologia.

b)Fé e razão, filosofia e teologia, não se podem contradizer porque Deus é o autor comum de ambos.

c)Embora a razão seja suficiente para conhecer as verdades fundamentais de ordem natural e seja autônoma no estudo das coisas naturais, é incapaz, por si só, de penetrar nos mistérios de Deus.

d)Mas a razão pode prestar um grande serviço à fé, seja para demonstrar aquelas coisas que são preâmbulos da fé; seja para ilustrar, por meio de semelhanças e dessemelhanças, as coisas que pertencem à fé; seja para opor-se às coisas que são ditas contra a fé (ZILLES, 1996, p. 120).

No pensamento sobre a necessidade do direito e das leis em sociedade, Tomás de Aquino afirma a sua necessidade como meio para disciplinar o comportamento humano. As leis são um modo de se evidenciar e exaltar as virtudes do homem, na tentativa de evitar que este siga somente o capricho e os vícios. Essa disciplina é dada pelo temor do castigo, pela coerção das leis. "Assim, vê ele muito claramente que, entre direito e força, reina uma relação, sem que se identifiquem pura e simplesmente" (HIRSCHBERGER, 1966, p. 204).

Para Tomás de Aquino, todo o direito humano, traduzido em leis realmente justas, é derivado da lei natural. "As leis eternas, incluídas, para os homens, numa ordem cósmica metafísica, devem ser expostas e desenvolvidas para conduzirem o homem a realizar a sua verdadeira essência e a nobreza da vida" (HIRSCHBERGER, 1966, p. 204). Assim, a lei natural aparece como princípio genérico, um corretivo superior, que deve ser concretizado por meio da lei positiva justa.

A noção de organização social como inspirada na lei natural, leva à ideia de que a lei civil é necessária não diretamente devido à queda do homem no pecado. Esta noção difere da existente na tradição patrística, que entendia a lei social como um resultado direto do pecado humano e da necessidade de regular a vida visando à redenção. Pois segundo essa tradição, "Deus permite a instituição do domínio de uns sobre os outros para por um freio a maldade" (COSTA; PATRIOTA, 2004, p. 41).

Para Santo Tomás, o direito tem sua fonte na natureza e na razão natural. A lei civil é uma interpretação do direito natural. E o Estado é instituído também por este. Ele propõe que o melhor governo é aquele exercido por um só homem, escolhido entre os cidadãos e eleito por todos, mostrando que o governo pode combinar monarquia, aristocracia e democracia, de modo que é o bem comum que legitima a autoridade do governante.

Essas regras não podem, por sua vez, ser desvinculadas totalmente do ideal cristão. Admitir como válida uma lei humana que contradissesse a lei divina seria desviar o homem do seu fim supremo. As teorias de Santo Tomás não rompem com a Plenitudo Potestatis devido a sua mitigação do naturalismo aristotélico averroísta, impedindo a sua radicalização. Essa radicalização é empreendida por Marsílio de Pádua, que propõe a subordinação da Igreja ao Governo Civil e a eliminação da plenitudo potestatis. O traço característico da abordagem de Marsílio é que, ao tomar os conceitos trabalhados por Santo Tomás, adotando também uma visão naturalista, formula uma noção da lei que retira a coercitividade da lei divina e atribui esse poder somente à lei humana, o que possibilita a sua divergência com Tomás de Aquino em face da relação Estado/Igreja.


REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicolas. História da Filosofia. Trad. de Armando da Silva Carvalho. vol. III Lisboa: Editorial Presença, [s.d.].

CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. v. I. trad. Roberto C. Lacerda. Rio de Janeiro: EDITORA GUANABARA, 1985.

COSTA, José Silveira da. Tomás de Aquino: a razão a serviço da fé. São Paulo: Moderna, 1993 (coleção Logos).

COSTA, Marcos R. N.; PATRIOTA, Raimundo A. M. Origens medievais do Estado moderno: contribuições da filosofia política medieval para construção do conceito de soberania popular na modernidade. Recife: PRINTER/INSAF, 2004.

DE LIBERA, Alain. A Filosofia medieval. Trad. de Nícolas Nyimi Campanário e Yvone Maria de Campos Teixeira da Silva. São Paulo: Loyola, 1998.

DUBRA, Julio A. Castello. Nota sobre el aristotelismo y el averroismo político de Marsilio de Padua. Revista Veritas -PUCRS. Porto Alegre. v. 42. n. 3. p. 671-678. Set. 1997.

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TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. Vols. II e III. Trad. Carlos-Josaphat P. de Oliveira (Coord.). São Paulo: Edições Loyola, 2002.

ZILLES, Urbano. Fé e razão no pensamento medieval. Porto Alegre: Edipucrs, 1996.

Sobre o autor
Jair Lima dos Santos

Acadêmico do curso de Direito da UNICAP - Universidade Católica de Pernambuco; Bolsista do PIBIC-CNPq; Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia Antiga e Medieval -GEPFAM/CNPq

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Jair Lima. Direito Natural em Tomás de Aquino.: Breve estudo do pensamento jurídico-filosófico medieval. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2454, 21 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14541. Acesso em: 22 dez. 2024.

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