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Casal Nardoni: um linchamento mal-disfarçado?

Agenda 30/03/2010 às 00:00

O Brasil assistiu ao julgamento do casal, recentemente condenado a mais de 26 anos de pena, cada um, pela morte de uma criança – filha de um e enteada da outra. Dois anos de coleta de provas e preparação para o tribunal do júri, testemunhas arroladas, seleção dos jurados, processo penal, juiz, promotor, advogados, transparência: como falar-se então em linchamento?

Uma série de estranhezas de gravidade indisfarçável chama a atenção para a qualidade dos procedimentos, que são do conhecimento de todos, e, o que é pior, tornam legítimas sérias dúvidas sobre o conhecimento produzido no processo, bem como sobre a correção de seu resultado.

Essa manifestação não pretende defender este ou aquele, nem advogar inocência ou atenuantes. Olha exclusivamente para a qualidade da justiça que temos e fizemos, e tem a pretensão de operar em busca de seu aperfeiçoamento.

O resultado de um julgamento decorrerá sempre de uma mistura de razão e desejo. Tanto a razão como o desejo poderão ser legítimos ou não. É um exemplo de razão legítima aquela que opera as evidências obtidas a partir dos meios de prova, e forma assim conclusões; é exemplo de desejo legítimo o de, por meio da pena, inibir o crime na sociedade, dissuadir o agente de voltar a incorrer em sua inclinação, e estabelecer um rito penal através do qual possa o agente, após seu cumprimento, ser recebido de volta à sociedade. É também legítimo o desejo de não condenar um inocente.

Algumas razões e desejos são contudo ilegítimos nos tribunais, inclusive do júri: por exemplo, o desejo de não ser alvo de assédio e condenação social se um réu for inocentado. Ou o mesmo receio, se cabível, se o Réu for condenado. Desnecessário dizer que esse desejo opera sobre nossa razão, enviesa nosso olhar, impede nosso acesso racional pleno e crítico à evidência, ao mesmo tempo em que cresce na cabeça do julgador, togado ou não, a vontade de cumprir a vontade da turba ameaçadora, ou daquele que o ameaça, para não sofrer as conseqüências.

E não adianta dizer que ninguém saberá, do júri, quem votou desta ou daquela maneira: como o voto é secreto, se o réu for inocentado, todos responderão pela aparente inconveniência do resultado - como se todos e cada um tivessem absolvido o(s) réu(s).

Assim, a turba às portas do tribunal no julgamento do casal Nardoni, no momento do veredito, não recomenda a crença na serenidade do júri, e deveria bastar, por si só, para a conscienciosa anulação do tribunal do Júri. O cerceamento à plena defesa também se dá pela impossibilidade do julgador olhar com eqüidistância e sentimento desinteressado a prova, venha de qual lado vier, o que resta neste contexto impossível.

A excessiva promoção do pré-julgamento e demonização do casal, pela "deusa" grande-mídia, que tão bem labora sobre as paixões morais do público para assim captar-lhe o interesse, a audiência, e público para seus anunciantes, é evidenciada, sem sombra de dúvida, pela repercussão social do caso. O testemunho geral dos experientes operadores do direito é de que nunca se viu tamanha comoção diante de um julgamento. Ora, não faltaram oportunidades para que uma condenação trouxesse uma relevância muito maior para a sociedade, por exemplo, no escândalo do mensalão. O prejulgamento geral induzido pela grande mídia é base tradicional para a desistência de julgar um ato em tribunais de outros países. De onde veio tanta certeza aos que acorreram às portas do tribunal, sem ter o menor conhecimento da prova dos autos? Será que essa mesma fonte de convicção, verdadeira lavagem cerebral, poupou aos jurados? É claro que não!

Imaginemos ainda que o tribunal que condenou o casal Nardoni tivesse transcorrido com todos os seus elementos – o promotor, os jurados, o juiz, as testemunhas, a prova técnica - mas sem um advogado. Qual seria a legitimidade da convicção que brota no corpo de jurados de um tal julgamento? É claro, seria nula. Só uma opinião seria deixada aos julgadores, só um olhar sobre a prova, só uma conclusão possível. Ainda mais com um corpo de acusadores particularmente qualificado. Que liberdade teria o Júri de formar uma opinião justificada na dialética, que vai progressivamente despindo as evidências dos véus da subjetividade? Nenhuma! Comeriam totalmente das mãos do acusador. Mas o que tem isso a ver com o julgamento do casal Nardoni?

Ora, o julgamento do casal Nardoni ocorreu claramente com base em indícios, tecnicamente colhidos, tecnicamente apreciados, e que resultaram numa conclusão técnica, a qual não tem o tribunal qualificação técnica para questionar. Serão, entretanto, os métodos e as observações técnicas, sua apreciação e as conclusões inferidas passíveis de interpelação dialética? É a mera formação técnica capaz de despir um observador de sua subjetividade? É evidente que não! A terminologia e os procedimentos técnicos instrumentalizam, recobrem, mascaram a subjetividade, mas não lhe dão, necessariamente, um fim. Aristóteles já nos ensinara: só as verdades de razão poderão ser verdades verdadeiras; jamais o serão as verdades que são mero fruto da observação, pois o olhar engana a quem olha. A dialética, o múltiplo e arguto questionamento, entretanto, permite desvelar ao máximo possível a verdade, escondida nas observações.

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Mas os peritos, o corpo técnico que acudiu aos trabalhos do júri, lá estavam para defender uma única tese, uma única "verdade" inferida de suas observações (e de suas omissões). Que foi feito da primeira obrigação dos tribunais que é a de promover a dialética entre as partes? Não é nisso que consiste o direito à plena defesa? E quando a parte não se supre da plena defesa, não cabe ao poder público assegurar-lhe? Não se dirá que terá cabido a um mero advogado, desprovido da menor qualificação na matéria técnica dos peritos da acusação, o papel de questionar-lhes o método, seu emprego, os dados colhidos, as inferências produzidas e as conclusões a que chegaram! O advogado de defesa dos réus pode e deve dominar o método jurídico, processual, a matéria jurídica, mas jamais a matéria técnica pericial. Conclusão: se o casal Nardoni não contou com um Assistente Técnico qualificado para questionar a prova técnica, quando a prova que se apresentava contra eles era quase que exclusivamente de natureza técnica, pode-se dizer que os réus não tiveram a menor chance de defesa! Tão ruim ou pior do que se não tivessem um advogado! E o julgamento deve ser considerado tão ou mais ilegítimo quanto seria se não houvesse um advogado!

O povo queria um circo, uma crucificação, sangue – já haviam eleito seus demônios, seduzidos pela capciosa e simplória fábula moral, contada pela grande mídia e pela polícia, imediatamente cooptada para o grande circo da mídia: em suma, reeditando a surrada luta dos bons contra os maus. O povo dizia que queria "justiça", mas esta justiça equivalia apenas a uma condenação agravada. E sequer conheciam a prova...

A falta que fizeram os peritos da defesa fica evidente, inclusive, quando se tenta, e se deve, estabelecer o suposto motivo da suposta autoria dos réus – descontrole! Ora, temos aqui um motivo absolutamente apragmático, equivalente a usar-se a expressão "por que eram doentes mentais". Onde está a pergunta referente à condição emocional dos réus, ao tempo da ação de tipo criminoso, logo após a pergunta sobre a autoria do fato, encaminhada aos jurados? No Brasil, um ato que se explica integralmente pela condição psicológica anormal do autor não é penalizado, mas sentenciado a medida de segurança e tratamento. Ou até a lei muda conforme o pré-julgamento da mídia? A literatura sobre infanticídio, que é, via de regra, perpetrado pelas mães, mostra que, no Brasil, a inclinação dos tribunais é pela não condenação das mães, por decurso de prazo (Mendlowicz et alli, Journal of Forensic Sciences, 1999 Jul;44(4):741-5.). Phillip J. Resnick, comparando mães infanticidas de seus filhos mais velhos, com as de seus bebês recém-nascidos, encontrou entre as primeiras maior incidência de psicoses (loucura). Porque seria diferente entre os homens? Porque isso não foi investigado nos réus? (Resnick, P.J.: " Murder of the Newborn: A Psychiatric Review of Neonaticide", American Journal of Psychiatry, Apr 1970; 126: 1414-1420.)

Na época dos fatos trágicos a que se refere o processo, foi noticiado na imprensa que um certo policial, justamente aquele que primeiro atendeu à vítima, estando, portanto, desde logo, na cena do crime, seria posteriormente incriminado por pedofilia, levando-o ao suicídio na iminência da produção de prova contra ele! (ver youtube "PM, pedófilo, do caso Izabella Nardoni se suicida!!!") Por que este fato foi esquecido na recuperação da memória que envolve o crime? O que foi feito desta história? O que fazia na área, tão perto dos fatos, um soldado pedófilo? A corporação imediatamente descartou qualquer relação entre o policial e o caso Nardoni. Mas a prova, neste sentido, não foi levada ao tribunal. Seria ele a terceira pessoa?

Por outro lado, por que insistiu-se tanto, na mídia como no tribunal, em usar o termo "trancar a porta", quando na verdade apenas se dizia "fechar a porta" – em referência à versão dos Nardoni de que teriam encontrado a porta de casa fechada quando retornaram ao apartamento. Este "equívoco" muda a contagem do tempo, e torna, capciosamente, a versão dos Nardoni absurda. Se entendemos que a porta estava apenas fechada, o violador não precisaria ter a chave: bastaria bater a porta e, assim, acordar a vítima; por outro lado, é absurdo imaginar que o violador teria trancado a porta ao sair, mas não o é que a tivesse apenas fechado, ou batido, como supostamente alega ter ouvido uma testemunha da defesa.

Perguntado pela imprensa, em intervalo dos atos do tribunal, afirma o promotor, a certa altura: "não existe terceira pessoa, ou ele ou ela mataram a menina, ou os dois"! Ora, é gritante a falta de prova da autoria – não têm idéia se foi o pai, a madrasta ou ambas, pois inexiste indício forte o suficiente para qualquer dos dois. Não há aqui lugar para ufanismos ou salamaleques: se a hipótese de esganadura foi imediatamente levantada e a prisão em flagrante dos suspeitos ocorrida, porquê não foi obtida amostra do material orgânico sob as unhas dos suspeitos? É isso uma falha básica na produção da prova? Quem deve pagar pela falha na produção da prova – a vítima, que passa a ter o bizarro encargo de fazer prova de inocência, ou a força policial, a promotoria, e a perícia a estes subordinada, devido à descaracterização da evidência para sua tese?

Chegamos ao último dia do tribunal sem a elementar certeza da autoria, cuja prova foi indireta, frágil, faltante em elementos fundamentais e básicos. Mas isso não impediu que os réus passassem dois anos presos, pré-condenados. E sem qualquer prova definitiva, direta, da autoria!

E aí voltamos ao desejo dos jurados e do juízo: o que significaria inocentar os réus por falta de provas depois de 2 anos de pré-condenação? Depois de todo o investimento ufanista de que a "polícia técnica de São Paulo é uma das melhores do mundo!" – mas não sabe colher material de prova das unhas dos réus. Que desconforto e que comoção seriam impostos aos jurados só de pensarem reprovando o próprio departamento de perícias do Estado de São Paulo, que jogou sozinho no campo adversário, que não compareceu ao jogo? Correriam, além disso, riscos em eventuais relações futuras com a força policial?

E o que foi feito do perturbador depoimento crítico à prova técnica, esta que foi produzida pela honrosa perícia do Estado de São Paulo, a cujos quadros pertence, inclusive, o Sr. Badan Palhares, que atestou certa feita um "homicídio seguido de suicídio" no caso Paulo César Farias, tese esta contestada então, como agora, pelo perito George Sanguinetti? Mesmo que a defesa, por motivo imperscrutável, tivesse aberto mão de seu depoimento – cujo teor ainda se encontra na internet, fustigando as teses da acusação - pergunta-se porque não foi do interesse da própria promotoria trazer Sanguinetti a testemunhar para o Júri, se entendemos que no Brasil, é papel do Ministério Público, antes de tudo, é o de promover a justiça, e não necessariamente o de condenar alguém. Tampouco podia o Ministério Público avaliar por sua própria conta, por absoluta falta de qualificação técnica, a propriedade da prova técnica produzida pela instituição que no Brasil é subordinada à polícia. Alegar que Sanguinetti não tem diploma de Médico Legista, ou não pertence a determinados quadros associativos, depois de conhecermos todos seu trabalho, sua capacidade e sua coragem, é absolutamente irrelevante, soa mesmo desqualificação da pessoa na incapacidade de desqualificar-lhes os argumentos e as observações. Esquecem que hoje, peritos e assistentes técnicos, assim como os advogados e os promotores, são parceiros indispensáveis na produção da justiça, a partir da dialética qualificada.

Apenas para fins de construir um raciocínio, tomada a idéia de que a autoria fosse efetivamente dos réus – ou do pai, ou da madrasta, ou de ambos – há de se convir que, para um suposto crime não-premeditado, com prova de autoria sumariamente indireta, com falhas graves na produção da prova técnica da autoria, e tendo o autor ou autores, provavelmente sido levados a isto por doença mental ou, no mínimo, no contexto de violentas paixões (normalmente considerados de baixíssima periculosidade social), não se poderá entender a noção de tão grave temibilidade social atribuída aos réus, a ponto de se os terem pré-condenado por 2 anos, e de, depois do julgamento, novamente, se os condenarem, ao reverso da regra e da tradição processual penal brasileira, a aguardarem presos o recurso a que teriam direito de aguardar em liberdade – por pior que possamos considerar tal norma processual.

Não há justificativa racional para tantas exceções, tantas falhas, tantas omissões, tanto rigor. No caso Nardoni, o judiciário foi feito gado, cabestreado pela grande mídia, orquestradora irresponsável e interessada no clamor popular, que deve ser, por si, base para a anulação do Tribunal do Juri; até a defesa parece ter jogado seu papel, privando os Réus do direito a um assistente técnico, consagrado no novo código de processo penal, inconscientemente, talvez, operando em favor do desejo geral de produzir e punir algum culpado, e assim afastando o estigma da impotência que brota de nossa incompetência em formar prova técnica decente. É claro, nada disso significa que na opinião do autor o casal fosse inocente. Mas a opinião do autor é irrelevante: relevante é a ampla oportunidade de defesa efetiva, o correto cotejamento da prova, e a obediência à norma processual e à tradição garantista brasileira.

O inculpado, pela prova ou sua falta, enquanto pai, é inclusive, no mínimo, também vítima. Mesmo que fosse, também, autor. Mas se fosse decidida a repetição do tribunal do júri, ficaria ainda assim a pergunta: haverá de fato algum lugar no Brasil em que um brasileiro possa ainda julgar isentamente a prova dos fatos imputados ao casal Nardoni, livre das pressões da mídia, anteriores ao julgamento, e das pressões populares, que lhe serão posteriores? Acredito que não. Talvez, em outro tribunal, em outro estado da federação.

Sobre o autor
Sander Fridman

Psiquiatra Forense titulado pelo Departamento de Psiquiatria Legal da Associação Brasileira de Psiquiatria; Doutorando em Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ, Laboratório de Mapeamento Cerebral e Integração Sensório-Motora.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIDMAN, Sander. Casal Nardoni: um linchamento mal-disfarçado?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2463, 30 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14597. Acesso em: 19 dez. 2024.

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