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O problema das antinomias na aplicação do Direito

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Agenda 30/04/2010 às 00:00

IV. Classificação das antinomias jurídicas

Considerada a antinomia jurídica, podemos classificá-la segundo diversos critérios. Serão adotados neste trabalho aqueles mais usualmente aceitos na doutrina.

Nessas condições, as antinomias podem ser classificadas:

4.1. Quanto ao critério de solução

As antinomias dividem-se em aparentes e reais.

Antinomias aparentes são aquelas para as quais o ordenamento encontra forma sistêmica de solução; os critérios para solução estão no próprio ordenamento.

As antinomias reais ocorrem quando não houver na ordem jurídica qualquer critério normativo para solucioná-las, sendo, então, imprescindível à sua eliminação a edição de uma nova norma ou extirpação de uma daquelas normas conflitantes.

Gize-se que somente haverá antinomia real se, após a interpretação adequada das duas normas, a incompatibilidade entre elas perdurar. Por isso é entendida como a oposição entre duas normas contraditórias, emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito – aplicador do direito - numa posição insustentável de escolha sem que possa optar por uma delas, sem ferir a outra.

A antinomia real não é tão comum de se notar, justamente por ser amplo e diversificado o rol dos remédios extraídos da análise dos critérios e metacritérios disponíveis, e de suas variações interpretativas.

A princípio, o aplicador do direito, com base na ideia de unidade do sistema, deve laborar esforço no sentido de tentar harmonizar os textos sistematicamente, de forma a buscar uma saída interpretativa que afaste a ideia de antinomia.

4.2. Quanto ao conteúdo

Temos a subdivisão em antinomias próprias e impróprias.

Originariamente, essa classificação é vista em Engisch [19], que, ao cuidar da "correcção do Direito incorrecto", distingue as contradições (conflitos) havidas no seio da ordem jurídica em cinco espécies: de técnica legislativa, normativas, valorativas, teleológicas e de princípios. A segunda espécie (normativa) consubstancia a chamada antinomia jurídica própria, enquanto as demais incluem-se no bojo das antinomias jurídicas impróprias.

A antinomia própria existe quando uma conduta aparece ao mesmo tempo e em duas normas conflitantes: prescrita e não prescrita, proibida e não proibida, prescrita e proibida. Ex.: norma do Código Militar que prescreve a obediência incondicionada às ordens superiores e disposição do Código Penal que condena a prática de certos atos, como matar. Ante a ordem de um Capitão que ordena o fuzilamento de um prisioneiro de guerra, o soldado se vê às voltas com duas normas conflitantes – a que impõe obediência e a que impõe pena por matar um ser humano. Somente uma delas pode ser tida como aplicável.

Não podem existir duas regras jurídicas que impõem dois juízos concretos de dever contraditórios e que sejam ao mesmo tempo válidas. Essa é a denominada ‘antinomia jurídica própria’. Uma regra sendo válida, deve-se fazer o que ela exige. As antinomias próprias caracterizam-se pelo fato do sujeito não poder atuar segundo uma norma sem violar a outra, devendo optar por uma delas, e esta sua opção implica a desobediência a uma das normas em conflito.

Antinomia imprópria é a que ocorrer em virtude do conteúdo material das normas. Por exemplo, o conceito de posse em direito civil é diverso daquele que lhe é dado em direito administrativo. Essas antinomias são impróprias porque não impedem que o sujeito aja conforme as duas normas, cada qual no seu ramo, embora sejam materialmente conflitantes.

A doutrina refere-se à ‘antinomia jurídica imprópria’, quando o conflito alinhado entre normas não conduz à conclusão de que a escolha de uma delas, em detrimento de outra, implica desobediência à segunda. O conflito se manifesta, há incompatibilidade entre ambas, porém, não resulta em antinomia jurídica própria, ou seja, a escolha por uma delas, não implicará necessariamente em descumprimento de outra.

Maria Helena Diniz [20], ancorando-se em Engisch, complementa que, dentre as antinomias impróprias, incluem-se:

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a) antinomias de princípios, quando as normas de um ordenamento protegem valores opostos, como liberdade e segurança;

b) antinomias valorativas, quando, v.g., atribui-se pena mais leve para um delito mais grave; e

c) antinomias teleológicas, quando há incompatibilidade entre os fins propostos por certas normas e os meios propostos por outras para a consecução daqueles fins.

4.3. Quanto ao âmbito

As antinomias podem ser de direito interno, de direito internacional ou de direito interno-internacional.

A antinomia de direito interno é a que ocorre entre normas de um mesmo ramo do direito ou entre aquelas de diferentes ramos jurídicos, num dado ordenamento jurídico.

A de direito internacional é aquela que aparece entre normas de direito internacional, como convenções internacionais, costumes internacionais, princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas etc.

E a de direito interno-internacional é a que surge entre norma de direito interno de um país e norma de direito interno de outro país, também ocorrendo entre norma de direito interno e norma de direito internacional. Resume-se no problema das relações entre dois ordenamentos, na prevalência de um sobre o outro.

Em geral, se o juízo que vai decidir é internacional, a jurisprudência consagra a superioridade de norma internacional sobre a interna. Se o juízo é interno, temos diferentes soluções. A primeira reconhece a autoridade relativa do tratado e de outras fontes na ordem interna, entendendo que o legislador não quer ou não quis violar o tratado, salvo nos casos em que o faça claramente, hipótese em que a lei interna prevalecerá. A segunda reconhece a superioridade do tratado sobre a lei mais recente em data. A terceira também reconhece essa superioridade, mas liga-se a um controle jurisdicional da constitucionalidade da lei [13].

4.4. Quanto à extensão da contradição

A presente classificação, haurida de Alf Ross [21], estriba-se na existência de inconsistência entre duas normas. Para o indigitado doutrinador, há inconsistência entre duas normas quando lhe são imputados efeitos jurídicos incompatíveis às mesmas condições factuais. Corolariamente, as antinomias, tendo em vista as maneiras como as inconsistências se apresentam, podem ser total-total, total-parcial e parcial-parcial.

A primeira espécie surge se uma das normas não puder ser aplicada em nenhuma circunstância sem conflitar com a outra em todos os seus termos. Ocorre entre normas com âmbitos de validade idênticos, caso em que a aplicação de qualquer das duas necessariamente elimina inteiramente a aplicação da outra.

O segundo tipo está presente se uma das normas não puder ser aplicada, em nenhuma hipótese, sem entrar em conflito com a outra, que tem um campo de aplicação conflitante com a anterior apenas em parte. O âmbito de validade das normas é coincidente, porém o de uma delas é mais restrito, sendo que, quanto a esta última, a aplicação da norma antinômica exclui totalmente a sua eficácia, o que não ocorre com a norma mais abrangente quando o dispositivo contrário é aplicado, já que continua a reger sua área própria. A primeira norma não pode ser em nenhum caso aplicada sem entrar em conflito com a segunda; a segunda, por sua vez, tem uma esfera de aplicação em que não entra em conflito com a primeira.

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Finalmente, a antinomia parcial-parcial subsiste quando as duas normas tiverem um campo de aplicação que, em uma parte, entra em conflito com o da outra, e, em outra parte, não. O conflito permanece apenas em parte do âmbito de validade das normas, havendo ainda espaços de regulação exclusiva para ambas fora desta área cinzenta. Cada uma das normas tem um campo de aplicação em conflito com a outra, e um campo de aplicação no qual o conflito não existe.


V. Critérios para a solução das antinomias

Para haver conflito normativo, as duas normas devem ser válidas, pois se uma delas não o for, não haverá qualquer colisão. O aplicador do direito ficará num dilema, já que terá de escolher, e sua opção por uma das normas conflitantes implica a violação da outra.

A ciência jurídica aponta, tradicionalmente, três critérios (hierárquico, cronológico e de especialidade) a que o aplicador deverá recorrer para sair dessa situação anormal.

O primeiro é o hierárquico, que está baseado na superioridade de uma fonte de produção jurídica sobre a outra, embora, às vezes, possa haver incerteza para decidir qual das duas normas antinômicas é a superior. O critério hierárquico, por meio do brocardo lex superior derogat inferiori (norma superior revoga inferior), informa que deve sempre prevalecer a lei superior no conflito.

O segundo critério apontado é o cronológico, que remonta ao tempo em que as normas começaram a ter vigência. O critério cronológico, por intermédio do brocardo lex posterior derogat priori (norma posterior revoga anterior), conforme expressamente prevê o art. 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil, preceitua que a lei mais nova, editada posteriormente, prevalece sobre a lei mais velha.

Por derradeiro, há o critério da especialidade, que visa a consideração da matéria normada. A superioridade da norma especial sobre a geral constitui expressão da exigência de um caminho de justiça: da legalidade à igualdade. O critério da especialidade, por meio do postulado lex specialis derogat generali (norma especial revoga a geral), opta pela prevalência da norma especial em detrimento da norma geral. Referido critério ancora-se na justificativa de que o legislador, ao tratar de maneira específica de um determinado tema, o faz, presumivelmente, com maior precisão.

Tradicionalmente, destes três critérios, o mais aceito é o hierárquico, por ser o mais sólido.

Se esses critérios são aplicáveis na solução dos conflitos de normas, o sujeito não estará frente a uma situação insustentável, pois terá uma saída para solucionar a antinomia. Por tal razão, Bobbio entende que, se é possível uma solução, através da utilização dos referidos critérios, haverá, decerto, mera antinomia aparente. Conclui, pois, o mencionado doutrinador que a antinomia real somente se configura se houver conflito entre os critérios [22].

Caso não seja possível a remoção do conflito normativo, ante a impossibilidade de se estabelecer uma meta-regra dando prevalência a um critério em detrimento de outro, sem contrariar a adaptabilidade do direito, ou seja, quando houver conflito entre os critério, surgirão, então, as denominadas antinomias de segundo grau, das quais trataremos a seguir.

5.2. Antinomias de segundo grau e os metacritérios para sua resolução

Haverá situações em que surgem antinomias entre os próprios critérios, vale dizer, quando num determinado conflito entre normas sejam aplicáveis dois critérios. Por exemplo, num conflito entre uma norma constitucional anterior e uma norma ordinária posterior, qual haverá se ser aplicada?

Se considerarmos o critério hierárquico, aplicaremos a norma constitucional; se usarmos o critério cronológico, haverá preferência da norma ordinária.

Igual problema teríamos ao nos depararmos com um conflito entre uma norma anterior-especial e uma posterior-geral, onde seria a primeira preferida pelo critério da especialidade, e a segunda pelo critério cronológico.

Poderá ocorrer, também, de haver uma norma superior-geral, antinômica a uma inferior-especial, ocasião em que o critério hierárquico indicará a aplicação da primeira, e o da especialidade apontará para a segunda norma.

Realmente, os critérios de solução de conflitos não são consistentes, daí a necessidade de ‘metacritérios’ para resolverem as ‘antinomias entre critérios’, também chamadas de ‘antinomias de segundo grau’.

Assim, na hipótese de haver conflito entre o critério hierárquico e o cronológico, prevalecerá o primeiro, por ser mais forte e soberano que o segundo, posto que a competência se apresenta mais sólida do que a sucessão no tempo.

Em caso de antinomia entre o critério da especialidade e o cronológico, valerá o metacritério lex posterior generalis non derrogat priori speciali, ou seja, a regra especial prevalecerá sobre a cronológica, pois aquele critério mostra-se mais forte que este.

No conflito entre o critério hierárquico e o de especialidade, se deverá optar, teoricamente, pelo hierárquico, máxime em se tratando de norma constitucional-geral em confronto com norma ordinária-especial. Há, contudo, doutrinadores que defendem não ser possível estabelecer-se uma meta-regra geral dando prevalência ao critério hierárquico, ou vice-versa, sem que se contrarie a adaptabilidade do direito. Nesta vertida hipótese, trata-se de conflito entre dois critérios fortes entre si. Donde, não haverá uma resposta segura para a solução da contradição, a qual dependerá do intérprete, que poderá optar por aplicar um ou o outro critério, conforme as circunstâncias apresentadas.

Aqui, a gravidade do conflito deriva, segundo Bobbio, do fato de estarem em jogo dois valores fundamentais de todo ordenamento jurídico: o do respeito da ordem, que exige o respeito da hierarquia; e o da justiça, que exige o respeito ao critério da especialidade, colimando a adaptação gradual do Direito às necessidades sociais.

Muitos doutrinadores defendem que, em caso extremo de falta de um critério que possa resolver a antinomia de segundo grau, o critério dos critérios para solucionar o conflito normativo seria o do ‘princípio supremo da justiça’, segundo o qual entre duas normas incompatíveis dever-se-á escolher a mais justa. Nesses casos, o aplicador do direito estará autorizado a recorrer aos princípios gerais do direito, para proporcionar a garantia necessária à segurança da comunidade. Nesta caso, o juiz deverá, portanto, optar pela norma mais justa ao solucionar o caso concreto, servindo-se de critério metanormativo, em benefício do fim social e do bem comum.

Em qualquer dos casos, é de grande importância que se destaque o seguinte: no campo infraconstitucional, quando resolvido o conflito de normas, uma delas será sempre considerada, naquele momento, ineficaz, eis que a colisão de regras assim se resolve. Não significa dizer que a norma desconsiderada será extirpada do ordenamento, mas será considerada inaplicável para aquele caso concreto.

É de se observar que muitos autores não admitem a existência de antinomia jurídica entre princípios do direito, pois a aplicação de um, não significaria o afastamento do outro. O julgador deverá valorar a aplicação ao caso concreto, sem contudo afastar definitivamente a aplicação do princípio ali desprezado. Em casos futuros, quando em confronto dois princípios, um prevalecerá sobre o outro, no caso concreto, segundo a melhor aplicação do julgador em busca ora da justiça, ora da segurança jurídica.

Sobre a autora
Andréa Presas Rocha

Juíza do Trabalho Auxiliar da 16ª Vara de Salvador/Ba, mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, doutoranda em Direito do Trabalho pela PUC-SP, doutoranda em Direito Social pela Universidad Castilla La Mancha na Espanha e professora universitária.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Andréa Presas. O problema das antinomias na aplicação do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2494, 30 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14763. Acesso em: 23 nov. 2024.

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