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O problema das antinomias na aplicação do Direito

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30/04/2010 às 00:00

Resumo:


  • As antinomias jurídicas são conflitos entre normas que apresentam soluções antagônicas para uma mesma situação, e são inerentes ao sistema jurídico devido à sua complexidade e dinamismo.

  • Existem critérios tradicionais para resolver antinomias, como hierarquia, cronologia e especialidade, mas antinomias de segundo grau surgem quando há conflitos entre esses próprios critérios.

  • Para manter a coerência e justiça do ordenamento jurídico, as antinomias devem ser eliminadas, respeitando-se os critérios estabelecidos ou, em última instância, recorrendo ao princípio supremo da justiça para escolher a norma mais justa aplicável ao caso concreto.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

SUMÁRIO. I – Introdução. II – Aplicação do direito. 2.1. Considerações gerais. 2.2. Problemática da aplicação do direito. III. A coerência do ordenamento jurídico. 3.1. O ordenamento jurídico como um sistema. 3.2. Antinomias. 3.2.1. Definição. 3.2.2. Tipos. 3.2.3. Caracterização da antinomia jurídica. 3.3. Inerência das antinomias ao sistema jurídico. 3.4. A problematização entre o princípio da coerência do sistema jurídico e a antinomia jurídica. IV. Classificação das antinomias jurídicas. 4.1. Quanto ao critério de solução. 4.2. Quanto ao conteúdo. 4.3. Quanto ao âmbito. 4.4. Quanto à extensão da contradição. V – Critérios para a solução das antinomias. 5.1. Critérios tradicionais para a solução das Antinomias. 5.2. Antinomias de segundo grau e os metacritérios para sua resolução. VI – Conclusão. VII – Bibliografia.


I. Introdução

O objetivo do direito, como ordenamento, é regular a vida e a conduta de todo e qualquer indivíduo, através de um complexo de normas jurídicas gerais e abstratas.

Não há norma jurídica sem finalidade. Toda norma foi editada para incidir e ser aplicada, tendo em vista a valoração de fatos prévia e genericamente considerados.

As normas jurídicas são elaborações, partindo-se de situações genéricas e abstratas, a incidirem sobre casos específicos e concretos. Por isso mesmo, do conceito de norma jurídica, pode-se extrair que a lei é geral e abstrata.

Obviamente, antes de aplicar a lei ao caso concreto que se lhe apresenta, cabe ao aplicador observar a hipótese de incidência, ou seja, analisar o sentido e o alcance das expressões do direito contidas na norma, e, após conhecidos e identificados tais termos e expressões, proceder à interpretação jurídica, ou seja, revelar o sentido da norma.

Este trabalho preocupa-se com a aplicação do direito feita pelo Poder Judiciário. Tal esclarecimento é necessário porque todos, durante a vida, aplicam o direito, até mesmo nos mais pequenos e singelos atos da vida. Nesse sentido, o juiz aplica as normas ao sentenciar, o legislador, ao editar leis, os particulares, ao elaborarem contratos.

Neste estudo, far-se-á um corte metodológico do tema, a fim de se atribuir ênfase aos problemas enfrentados pelo Poder Judiciário na aplicação do direito, mormente aqueles atinentes às antinomias jurídicas. A abordagem deste trabalho, envolverá, ainda, a questão da coerência do ordenamento em face das antinomias, a inerência das antinomias ao sistema, chegando-se, finalmente, à classificação das antinomias jurídicas, de acordo com a apreciação traçada pela doutrina, e os critérios para a sua solução.

É importante sublinhar que toda a abordagem do presente trabalho será feita à vista do pensamento doutrinário construído em face da família de direitos romano-germânica - também denominada de sistema do civil law [01]. Portanto, o destaque será para o direito positivo, e para a questão sobre como os sistemas que adotam o civil law enfrentam a problemática das antinomias.


II. Aplicação do direito

Conforme leciona Celso Bastos, no processo de efetivação da norma jurídica, distinguem-se dois momentos: primeiramente, tem-se a seleção, dentre as várias possibilidades potencialmente existentes, da norma aplicável ao caso; num segundo momento, há a efetiva aplicação [02]. Citando Carlos Maximiliano, assoma o referido Autor que "a interpretação é a diagnose, e a aplicação a medicação" [03].

Para Karl Engisch, a aplicação do direito é a determinação in concreto daquilo que é realmente devido ou permitido, o que é feito de um modo autoritário pelos órgãos aplicadores do direito, pelo direito mesmo instituídos, isto é, através dos tribunais e das autoridades administrativas, sob a forma de decisões jurisdicionais e atos de administração [04].

As normas jurídicas existem para serem aplicadas por um órgão competente. Ocorre que, tendo em vista a abstração das normas, decorrente do seu processo generalizante, há um evidente afastamento entre a norma e a realidade. A aproximação entre as normas jurídicas e os fatos (aplicação do direito) é realizada por intermédio da figura do magistrado, ou seja, é pela ação do juiz que a norma abstrata se transforma numa disposição concreta, passando a reger uma determinada situação individual. Denomina-se subsunção este processo de aplicação do direito. Em outras palavras, é pela subsunção que a abstração contida na norma se aproxima da realidade fática.

2.2 Problemática da aplicação do direito

O processo de subsunção, cujo escopo consiste na aproximação entre a abstração contida na norma jurídica e a realidade fática, tem como problema central a qualificação jurídica dos casos sub judice, que, por seu turno, apresenta dificuldades devido a dois fatores: a falta de informação sobre os fatos do caso (lacuna de conhecimento); e a indeterminação semântica dos conceitos normativos (lacuna de reconhecimento).

O primeiro problema (falta de conhecimentos empíricos) é remediável pelas presunções legais, que permitem ao juiz suprir sua falta de conhecimento dos fatos e atuar como se conhecesse todas as circunstâncias relevantes do caso.

A segunda dificuldade (indeterminação semântica), embora não possa ser totalmente eliminada, pode ser mitigada através da introdução de terminologia técnica. Na interpretação das normas, os termos, embora possam ter sentidos diversos no seu uso comum, passam pelo que Rudolf Carnap chamava de "processo de elucidação". Sem embargo, diante dos defeitos imanentes à linguagem natural, que obstaculizariam a adequada tradução das normas jurídicas, os aplicadores do direito partem para a elaboração de definições técnicas, de molde a purificar a linguagem natural, através da demarcação da extensão e do sentido dos vocábulos que, por qualquer razão, obscurecem a explicação ou a compreensão da norma.

Não devem os problemas acima especificados (lacunas de conhecimento e reconhecimento) ser confundidos com as ‘lacunas normativas’ ou com as ‘lacunas de conflito’ (antinomias). Quando o magistrado não encontra norma que seja aplicável a determinado caso, e não podendo subsumir o fato a nenhuma norma, devido a um defeito no sistema normativo, que pode consistir na ausência de uma solução ou na existência de várias soluções incompatíveis, estará diante de um problema de ‘lacuna normativa’, no primeiro caso, ou de ‘lacuna de conflito’ (ou antinomia), no segundo caso.

Como visto, as lacunas de conhecimento e reconhecimento dizem respeito ao processo de subsunção, ao passo que as lacunas normativas e as antinomias referem-se à etapa da interpretação. Para a subsunção é necessária uma prévia interpretação para determinar a qualificação jurídica da matéria fática sobre a qual deve incidir uma norma geral, vale dizer, para subsumir, o órgão precisa, antes, interpretar, estando, pois, a subsunção condicionada por uma prévia escolha de natureza axiológica, entre as várias interpretações possíveis.

A lacuna normativa constitui um estado incompleto do sistema que deve ser colmatado, ante o princípio da plenitude do ordenamento jurídico. A antinomia representa um estado incorreto do sistema que precisa ser solucionado, à vista do princípio da unidade da ordem jurídica, que tem por postulado a resolução das contradições. O sistema jurídico deve formar um todo coerente, excluindo qualquer contradição (antinomias), a fim de assegurar a sua homogeneidade e garantir a segurança na aplicação do direito.


III. A coerência do ordenamento jurídico

O problema da coerência surge em função do ordenamento jurídico constituir-se por um conjunto de normas, as quais, por emergirem de variadas fontes, podem apresentar oposições entre si. Essas oposições somente podem ser avaliadas ou julgadas se levado em conta o conteúdo das normas, não bastando referir-se à autoridade jurídica da qual emanaram. É neste ponto que Bobbio diverge de Kelsen.

Para Kelsen [05], o sistema jurídico é fundamentalmente um sistema dinâmico – entendido este como um sistema puramente formal, que não se refere à conduta que as normas regulam, mas tão somente à maneira como essas normas foram postas. Para Kelsen, a existência de duas normas cujo conteúdo seja contraditório não torna ilegítimo o sistema nem invalida as normas contraditórias.

Bobbio [06] não admite esse ponto de vista porque considera que ele viola a ideia de sistema como totalidade ordenada.

Bobbio apresenta então três concepções de sistema distintas [07], que foram desenvolvidas na filosofia do direito.

O primeiro significado de sistema é no sentido de sistema dedutivo, no qual todas as normas de um ordenamento são deriváveis de alguns princípios gerais, considerados da mesma maneira que os postulados de um sistema científico. Essa concepção de sistema foi típica do jusnaturalismo.

A segunda concepção de sistema indica um ordenamento da matéria realizado através do processo indutivo, isto é, partindo do conteúdo das simples normas com a finalidade de construir conceitos sempre mais gerais e classificações ou divisões da matéria inteira, gerando um procedimento de classificação.

Por fim, o terceiro significado de sistema é considerado por Bobbio o mais interessante, e é neste sentido que será utilizado em todo o capítulo sobre a coerência do ordenamento. O ordenamento, desse modo, é um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. Se houver normas incompatíveis, uma ou ambas devem ser eliminadas.

3.2. Antinomias

3.2.1. Definição

Consoante Houaiss, o vernáculo antinomia significa, in verbis:

"FIL na tradição cética ou em doutrinas influenciadas pelo ‘ceticismo’, tal como o ‘kantismo’, contradição entre duas proposições filosóficas igualmente críveis, lógicas ou coerentes, mas que chegam a conclusões diametralmente opostas, demonstrando os limites cognitivos ou as contradições inerentes ao intelecto humano" [08].

Muitas vezes, usam-se as palavras paradoxo e antinomia como sinônimos, ou, então, consideram-se as antinomias como uma classe especial de paradoxos: os resultantes de uma contradição entre duas proposições, em que cada uma delas é racionalmente defensável.

De uma forma geral, antinomia designa um conflito entre duas ideias, proposições, atitudes, etc.. Fala-se, por exemplo, de antinomia entre fé e razão, entre amor e dever, entre moral e política. Num sentido mais restrito, antinomia designa um conflito entre duas leis.

O termo antinomia é, por vezes, utilizado para designar um conflito entre duas proposições, ou entre as consequências que delas advêm. A antinomia de duas proposições difere da contrariedade. Duas proposições podem ser contrárias sem que constituam uma antinomia, no entanto ela surge quando se pretende provar a validade de cada uma delas.

Juridicamente, emprega-se o termo antinomia como sendo "uma oposição existente entre duas normas e princípios no momento de sua aplicação" [09].

3.2.2. Tipos

Tercio Sampaio Ferraz Jr., antes de tratar da antinomia jurídica, distingue a antinomia em lógico-matemática, semântica e pragmática.

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Segundo Ferraz Jr., é no campo da lógica onde o termo antinomia é mais rigorosamente definido, gerando uma autocontradição por processos aceitos de raciocínio. Nesse sentido, a antinomia consiste num enunciado que é simultaneamente contraditório e demonstrável.

A antinomia semântica, conforme Ferraz Jr., como a lógico-matemática, também pode ser definida como uma contradição que resulta de uma dedução correta, baseada em premissas aparentemente coerentes da linguagem.

Para o referido Autor, a antinomia pragmática, dentre as quais se situa a antinomia jurídica, aponta para uma situação possível nas relações humanas, mas que leva uma das partes a uma situação de indecidibilidade [10].

3.2.3. Caracterização da antinomia jurídica

Na tragédia grega de Sófocles sobre Antígona, filha de Édipo, restou tratada a ideia de antinomia entre as leis do direito natural e do direito positivo. Existia uma contradição entre um Édito baixado por Creonte, Rei de Tebas, norma esta que proibia a celebração fúnebre em honra de Polinicies (irmão de Antígona), morto em combate em defesa de Argos, e uma Lei universal-divina de que a família tinha o dever de enterrar piedosamente os familiares. Antígona entendia que tal Lei universal transcendia o poder de um soberano. A antinomia neste caso solucionou-se com Antígona aplicando o Direito natural e enterrando o irmão com as devidas honrarias e cerimônias fúnebres tradicionais, arcando, porém, com a condenação provinda de seu tio, o Rei Creonte, de viver sozinha em uma caverna.

Hodiernamente, sempre que estivermos diante de um conflito entre duas normas, ou entre dois princípios, ou ainda, entre uma norma e um princípio, e não existirem critérios postos no ordenamento que resolvam esses conflitos, estaremos diante de uma antinomia jurídica.

A rigor, antinomia jurídica ocorre com a existência de duas normas, tipificando a mesma conduta, com soluções antagônicas, onde repousem três requisitos: incompatibilidade, indecidibilidade e necessidade de decisão.

A antinomia jurídica não se confunde com a mera contradição. Duas normas podem contradizer-se, mas só haverá antinomia quando esta contradição estiver acompanhada de outros fatores.

Por isso para que se admita a existência de uma antinomia jurídica, devem estar presentes os seguintes requisitos:

a) que as normas que expressam ordens ao mesmo sujeito emanem de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo;

b) que as instruções dadas ao comportamento do receptor se contradigam e, para obedecê-las, ele deve também desobedecê-las;

c) que o sujeito deve ficar numa posição insustentável, sem nenhuma regra jurídica que aponte uma solução positivamente válida para a solução do conflito.

Consideradas as características que são ínsitas às antinomias jurídicas, Tercio Sampaio Ferraz Jr. as caracteriza como:

"a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento válido" [11].

Bobbio, por seu turno, define a antinomia como "aquela situação na qual são colocadas em existência duas normas, das quais uma obriga e a outra proíbe, ou uma obriga e a outra permite, ou uma proíbe e a outra permite o mesmo comportamento" [12].

Assoma o jurista italiano que a definição supra não está completa, sendo necessária, ademais, a satisfação de duas condições, quais sejam: as duas normas devem pertencer ao mesmo ordenamento; e as duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade (temporal, espacial, pessoal ou material) [13].

Conclui, portanto, Bobbio que a antinomia jurídica pode ser definida como "aquela situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e tendo o mesmo âmbito de validade" [14].

3.3. Inerência das antinomias ao sistema jurídico

O sistema jurídico tem as suas características peculiares como todo sistema. Destacamos: a complexidade, a unidade, a dinamicidade, a coerência tendencial e a completude tendencial.

O ordenamento jurídico é caracterizado por Bobbio como complexo, por ter múltiplas fontes geradoras de normas:

"A complexidade de um ordenamento jurídico deriva do fato de que a necessidade de regras de conduta numa sociedade é tão grande que não existe nenhum poder (ou órgão) em condições de satisfazê-la sozinho. Para vir ao encontro dessa exigência, o poder supremo recorre geralmente a dois expedientes:

1) A ‘recepção’ de normas já feitas, produzidas por ordenamentos diversos e precedentes.

2) A ‘delegação’ do poder de produzir normas jurídicas a poderes ou órgãos inferiores.

Por essas razões, em cada ordenamento, ao lado da fonte direta temos fontes indiretas que podem ser distinguidas nestas duas classes: ‘fontes reconhecidas’ e ‘fontes delegadas’. A complexidade de um ordenamento jurídico deriva portanto da multiplicidade das fontes das quais afluem regras de conduta, em última analise, do fato de que essas regras são de proveniências diversas e chegam à existência (adquirem validade) partindo de pontos os mais diferentes" [15].

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

A unidade do sistema jurídico repousa na sua disposição de forma hierárquica. O sistema tem origem na norma fundamental, a qual, num Estado Democrático, pode ser traduzida pela fórmula "todo o poder emana do povo". No Direito pátrio, temos regramento similar, contido no parágrafo único, do art. 1º, da Constituição Federal, in verbis: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição".

Para que o sistema seja considerado unitário, a norma fundamental deve ter poder normativo, em relação a todas as outras normas do sistema, ou seja, a norma fundamental deve ter influência direta ou indireta sobre todas as outras normas. O poder constituinte originário deriva da norma fundamental, assim como a Constituição deriva do poder constituinte originário e assim sucessivamente. Esta forma hierárquica do sistema é a sua unidade. Bobbio assim leciona, ipsis literis:

"Que seja unitário um ordenamento complexo, deve ser explicado. Aceitamos aqui a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen. Essa teoria serve para dar uma explicação da unidade do ordenamento jurídico complexo. Seu núcleo é que ‘as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano’. Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a ‘norma fundamental’. Cada ordenamento tem uma norma fundamental. É essa norma fundamental que dá unidade a todas as outras normas, isto é, faz das normas espalhadas e de várias proveniências um conjunto unitário que pode ser chamado ‘ordenamento’.

A norma fundamental é o termo unificador das normas que compõem um ordenamento jurídico. Sem uma norma fundamental, as normas de que falamos até agora constituiriam um amontoado, não um ordenamento. Em outras palavras, por mais numerosas que sejam as fontes do direito num ordenamento complexo, tal ordenamento constitui uma unidade pelo fato de que, direta ou indiretamente, com voltas mais ou menos tortuosas, todas as fontes do direito podem ser remontadas a uma única norma. Devido à presença, num ordenamento jurídico, de normas superiores e inferiores, ele tem uma estrutura hierárquica. As normas de um ordenamento são dispostas em ordem hierárquica" [16].

O sistema jurídico é dinâmico, mutável, pois as normas que o compõem tentam acompanhar as valorações do seu tempo sobre os fatos já vividos até então e sobre os novos fatos vivenciados pela sociedade humana. Os valores humanos se transmudam ao longo do tempo, pois a sociedade humana evolui no transcurso do aprofundamento das relações entre os indivíduos e destes com o meio. Esta complexidade das relações humanas é causa do surgimento de novas relações, e destas surgem novos fatos jurídicos a serem previstos pela norma jurídica, e, por fim, tais normas se transformam em elementos do sistema jurídico vigente.

O sistema jurídico é reflexo de sua ciência, a ciência do direito, que, como todas as outras, busca a verdade, mesmo sabendo que o alcance da verdade é utopia. Os seus elementos, normas, poderão ser revistas, pois a valoração dada como verdade no tempo em que foi elaborada poderá cair por terra, pois o direito como ciência não admite verdade absoluta.

A coerência do sistema é representada pelo princípio da não-contradição ou da unicidade. Esta característica deve existir no sistema jurídico, pois é postulado essencial para a garantia do alcance da justiça pelo direito. A certeza de que o fato está regulamentado de uma só forma é primórdio para o direito, pois só assim o jurisdicionado estará possibilitado de prever a consequência jurídica para uma conduta própria ou de outrem. Os ensinamentos de Bobbio esclarecem:

"A coerência não é condição de validade, mas sempre condição para a ‘justiça’ do ordenamento. É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas válidas, e pode haver indiferentemente a aplicação de uma ou de outra, conforme o livre-arbítrio daqueles que são chamados a aplicá-las, são violadas duas exigências fundamentais em que se inspiram ou tendem a inspirar-se os ordenamentos jurídicos: a exigência da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem), e a exigência da justiça (que corresponde ao valor da igualdade). Onde existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e, portanto ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as conseqüências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria" [17].

Esta característica do ordenamento jurídico é teórica e tendencial. Devido à vivacidade do sistema, em que normas originam-se de diversas fontes (complexidade) e são valorações, estas modificam-se em conformidade com o espaço e o tempo evidenciados. Estas valorações incidem sobre os fatos jurídicos, que surgem ao longo da evolução da sociedade humana, apresentando a característica de dinamicidade do sistema. Devido a esses fatores, a coerência não pode ser atingida na prática.

Assim sendo o sistema tem como meta, objetivo ou tendência a disposição das normas em total harmonia. A importância desta característica reside na sua contraposição à arbitrariedade.

A completude é bem tratada por Bobbio, ipsis verbis:

"Por ‘completude’ entende-se a propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para regular qualquer caso. Uma vez que a falta de uma norma se chama geralmente ‘lacuna’ (num dos sentidos do termo ‘lacuna’), ‘completude’ significa ‘falta de lacunas’. Em outras palavras, um ordenamento é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular qualquer caso que não possa ser regulado com uma norma tirada do sistema" [18].

O sistema jurídico tenta, mas não anda em compasso com a realidade fática vivida pela sociedade humana. Assim, poderá no caso concreto evidenciar-se fato jurídico não previsto por qualquer norma. Tal fenômeno é denominado de lacuna. Assim a completude do sistema é somente uma tendência do sistema, é sua força motriz para a normatização de novos fatos jurídicos.

A antinomia jurídica, devido a esta dinamicidade e complexidade, é um elemento inerente ao sistema jurídico. Não há como a ciência do direito prever em seus escopos toda a complexidade das relações humanas que se modificam e se aprofundam cotidianamente.

Este elemento, antinomia jurídica, existe dentro do sistema jurídico e coexiste com o sistema, à medida que o mesmo prevê critérios para sua solução, por ser a coerência do sistema jurídico algo tendencial e não pressuposto da existência do sistema. Por isso, sustenta-se que o direito não é propriamente um sistema, mas, sim, uma ciência sistematizada como método, pois, sendo assim, o seu estudo se torna mais próspero.

3.4. A problematização entre o princípio da coerência do sistema jurídico e a antinomia jurídica

O fenômeno jurídico da antinomia, conforme já ressaltado, é algo inerente ao sistema jurídico. Porém tal contradição deverá ser suprida, pois o princípio da unidade do sistema jurídico formula a ideia teórica da coerência, ou seja, o antagonismo entre as normas deste sistema deve ser solucionado.

Para o Direito, a essência da relevância do princípio da unicidade, também chamado de princípio da não-contradição, é configurada ao sabermos que o fato não será analisado sob a ótica de uma única norma, mas, sim, sob o conjunto das normas formadoras do sistema jurídico. Assim sendo, o fato é regulamentado pelo sistema de uma maneira global. É o sistema jurídico em sua totalidade que normatiza o fato, e não apenas uma lei em específico.

A relevância é tamanha que alguns doutrinadores entendem que é inconcebível a ideia da existência do sistema jurídico sem o cumprimento integral do princípio da não-contradição, ou seja, não poderia haver antinomias jurídicas sem solução. Tal pensamento é descartado ao encaramos o sistema como algo mutável, e a nova valoração do fato, sob ótica condizente com o pensamento vigente no tempo, será, em sua grande maioria, antagônica à velha vontade, ali representada pela norma anterior.

Corolariamente, toda e qualquer contradição deverá ser eliminada, utilizando-se dos procedimentos e critérios predefinidos, colimando a manutenção da aplicação do direito, pela via da interpretação. Porém, caso o intérprete e aplicador da lei seja submetido a uma antinomia jurídica real, não terá como conciliar a aplicação das duas normas válidas, e muito menos autonomia de ab-rogar definitivamente, à sua escolha, uma das leis confrontantes. Por conseguinte, o sistema existe mesmo com a antinomia jurídica real, conquanto a permanência de tal fenômeno seja contrária a um dos princípios basilares (o da não-contradição) da ideia de sistema jurídico, que, por tal razão, deve ser eliminada. A antinomia deverá ser suprida, primeiramente, pelo caminho da retirada da eficácia de uma das leis, e, assim, a aplicação justa do direito estará resguardada.

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Sobre a autora
Andréa Presas Rocha

Juíza do Trabalho Auxiliar da 16ª Vara de Salvador/Ba, mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, doutoranda em Direito do Trabalho pela PUC-SP, doutoranda em Direito Social pela Universidad Castilla La Mancha na Espanha e professora universitária.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Andréa Presas. O problema das antinomias na aplicação do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2494, 30 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14763. Acesso em: 26 dez. 2024.

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