1. Introdução
Ao passo da nossa evolução constitucional, sob uma perspectiva eminentemente histórica, o controle de constitucionalidade das leis cambiou entre a completa inexistência (p. ex. Constituição de 1824), passando pela hegemonia do modelo americano do controle difuso (p. ex. Constituições de 1891 e 1934) e pela introdução, ainda que tímida, do modelo austríaco do controle concentrado (p. ex. Constituições de 1946, 1967 e EC nº 1 de 1969), até se chegar à Constituição Republicada de 1988, onde o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade pôde, de fato, dizer-se ambivalente.
Foi com a Constituição cidadã, na denominação conferida à Lei Fundamental de 1988 pelo Deputado Federal Ulisses Guimarães, que, muito embora mantido modelo misto (concreto e abstrato) de controle da constitucionalidade, o dito controle abstrato/concentrado ganhou força, superando definitivamente o controle concreto/difuso, antes dominante.
Tal fenômeno se deve (em breve resumo) principalmente à considerável ampliação dos legitimados ativos à propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (art. 103, CF/88); à criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade por meio da Emenda Constitucional nº 3/1993 (art. 102, I, "a", CF/88); da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (art. 103, § 2º, CF/88); bem como, e por fim, através do desenvolvimento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (art. 102, § 1º, introduzido na CF/88 pela Emenda Constitucional nº 3/1993) que preencheu as lacunas existentes no modelo concentrado, permitindo a análise direta pelo Supremo Tribunal Federal de questões que antes somente poderiam ser discutidas por meio de Recursos Extraordinários: como a inconstitucionalidade de normas pré-constitucionais, controvérsia constitucional sobre normas já revogadas e a inconstitucionalidade de norma municipal em face da Constituição Federal.
Assim, fácil observar que o controle concentrado, antes de iniciativa exclusiva do Procurador-Geral da República e restrito à declaração de inconstitucionalidade de normas estaduais e federais vigentes ao momento da propositura da demanda, foi enormemente ampliado com o advento da atual Lei Fundamental, alterada pelas Emendas Constitucionais nº 3/1993 e nº 45/2004.
Hodiernamente, pode-se dizer, o controle de constitucionalidade "trivial" é o controle concentrado ou abstrato, de competência da nossa Corte Constitucional – que acumula também a função de última instância recursal do nosso país –, de caráter objetivo e que, por isso, possui eficácia erga omnes e efeito vinculante, sem a necessidade de suspensão da eficácia da norma pelo Senado, como dispõe o art. 52, X, da CF/88.
Neste diapasão de profunda primazia do controle concentrado de constitucionalidade (ADI, ADIo, ADC e ADPF) em relação ao controle difuso (Recurso Extraordinário) é que surgiu a tendência, hoje em fase de consolidação no âmbito do Supremo Tribunal Federal, da objetivação deste último, cambiando o seu caráter originário de ação (recurso) meramente subjetiva, para assumir a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Sobre o tema, convém lembrar a lição do Professor e Ministro Gilmar Ferreira Mendes, extraída do processo administrativo nº 318.751/STF, que culminou na edição da Emenda nº 12 (DJ de 17-12-2003) ao Regimento Interno do STF, verbis:
O recurso extraordinário "deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesses das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional (verfassungsbeschwerde).
(...)
A função do Supremo nos recursos extraordinários – ao menos de modo imediato – não é a de resolver litígios de fulano ou beltrano, nem a de revisar todos os pronunciamentos das Cortes inferiores. O processo entre as partes, trazido à Corte via recurso extraordinário, deve ser visto apenas como pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos." [01]
Tal fenômeno, registre-se por oportuno, foi precedido por diversas causas – alterações legislativas –, dentre as quais se destaca o advento da Emenda Constitucional nº 45 que introduziu em nosso sistema as figuras da:
a) Art. 102, §3º: repercussão geral para admissão dos Recursos Extraordinários; e
b) Art. 103-A: súmula vinculante.
Contudo, anteriormente à referida EC nº 45/2004 operaram-se alterações legislativas que contribuíram de modo relevante com a mencionada tendência à objetivação dos RREE, como são exemplos as alterações nos artigos 475, § 3º, 481, parágrafo único e 557, §1º-A, todos do Código de Processo Civil, operadas pelas Leis nº 9.756/98 e nº 10.352/01, que em última análise conferem efeito vinculante às decisões do STF, mesmo que proferidas em sede de controle difuso/concreto de constitucionalidade, senão vejamos (grifos nossos):
Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
(...)
§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente. (Redação dada pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001)
Art. 481. omissis
Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão. (Redação dada pela Lei nº 9.756, de 17.12.1998)
Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. (Redação dada pela Lei nº 9.756, de 17.12.1998)
§ 1º-A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso. (Incluído pela Lei nº 9.756, de 17.12.1998).
É mister situar topograficamente o leitor dentro do Código de Processo Civil, para uma melhor compreensão do que se está a falar: o art. 475 está encartado no Livro I – Do Processo de Conhecimento, Título VIII – Do Procedimento Ordinário, Capítulo VIII – Da Sentença e da Coisa Julgada, Seção II – Da Coisa Julgada. Nessa Seção, o Código de Ritos normatiza a eficácia preclusiva máxima, que torna imutável e indiscutível uma sentença, a chamada coisa julgada.
Neste diapasão, informa o art. 475 que determinadas decisões não necessitam do impulso das partes para que sejam revistas pelo Tribunal ad quem. É o que se convencionou chamar de duplo grau de jurisdição obrigatório, ou remessa necessária.
Não se deve entender tal instituto como sendo mais um recurso. Absolutamente. O duplo grau obrigatório ou remessa necessária nada mais é do que uma condição suspensiva de eficácia da sentença, que só poderá operar seus efeitos após a apreciação da questão pelo Tribunal.
Tal instituto é próprio das decisões proferidas em desfavor da Fazenda Pública, e tem o claro objetivo de preservar o Erário, conferindo-lhe uma instância revisora obrigatória, de modo a garantir maior segurança quando da execução dos efeitos da sentença contra o Estado, ainda que o ente federativo, ou suas autarquias e fundações, se quedem inertes diante da decisão que lhes seja desfavorável. Nesses casos, em suma, há uma vedação legal ao trânsito em julgado da decisão em primeiro grau de jurisdição.
Todavia, tal condição suspensiva não opera efeitos quando a referida sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou súmula dessa Corte. Vê-se, portanto, que mesmo antes do ingresso da súmula vinculante no nosso Ordenamento Jurídico, as decisões plenárias do Supremo Tribunal Federal detinham, ainda que de forma mitigada, o poder de vincular as inferiores instâncias, uma vez que uma sentença proferida em consonância com o entendimento do STF, proclamado em plenário, não necessitaria ser submetida ao duplo grau de jurisdição obrigatório, podendo surtir desde já seus efeitos, caso a Administração não manejasse o competente recurso de apelação.
O art. 481, por sua vez, encontra-se inserido no Livro I – Do Processo de Conhecimento, Título IX – Do Processo nos Tribunais, Capítulo II – Da declaração de Inconstitucionalidade. Nesse Capítulo o Código de Ritos descreve o procedimento que deve pautar a declaração de inconstitucionalidade das normas nos Tribunais Pátrios. Dispõe que a turma ou a câmara, caso acolha a declaração de inconstitucionalidade incidentalmente aduzida nos autos – o incidente de inconstitucionalidade pode ser suscitado por qualquer membro do órgão fracionário –, deverá suspender o julgamento da demanda e submetê-la ao Plenário ou Órgão Especial do respectivo Tribunal, para análise exclusiva da inconstitucionalidade ou não da norma indigitada.
Tal dispositivo se alicerça no art. 97 da Constituição, que normatiza: "Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público."
Assim, no que pertine à alteração legislativo operada no art. 481, parágrafo único acima transcrito, vê-se que os órgãos fracionários dos Tribunais não mais deverão submeter a questão acerca da inconstitucionalidade de determinada norma ao Plenário ou Órgão Especial da respectiva Corte, caso o Plenário do Supremo Tribunal Federal já tenha se pronunciado sobre do tema.
Tanto Theotônio Negrão e José Roberto F. Golvêa [02] quanto Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery [03] vêem nesse dispositivo, processualmente falando, uma clara medida de economia processual.
Neste sentido, é de se firmar que tal posicionamento/entendimento, normatizado pelo legislador reformador do Código de Processo Civil, já era adotado, ainda que por maioria, no STF mesmo antes da edição da Lei nº 9.756/98, como se vê pelo trecho do volto do Min. Ilmar Galvão abaixo reproduzido (grifos nossos):
De acordo com o art. 97 da Constituição Federal, "somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público."
A razão de ser da norma, di-lo MARCLEO CAETANO, no trecho que se acha transcrito no voto do eminente Relator:
"a exigência de maioria qualificada para a declaração da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo justifica-se pela preocupação de só permitir ao Poder Judiciário tal declaração quando o vício seja manifesto e, portanto, salte aos olhos de um grande número de julgadores experientes caso o órgão seja colegiado. Sendo atingida a majestade da lei a qual, em princípio, se beneficia da presunção de estar de acordo com a Constituição, é necessário que o julgamento resulte de um consenso apreciável e não brote de qualquer escassa maioria (...).
Essa exigência, por outro lado, acautela contra uma futura variação de jurisprudência no mesmo Tribunal."
Sendo assim, é fora de dúvida que, declarada a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinada lei, pela maioria absoluta dos membros de certo Tribunal, soaria como verdadeiro despropósito, notadamente nos tempos atuais, quando se verifica, de maneira inusitada, a repetência desmesurada de causas versantes da mesma questão jurídica, vinculadas à interpretação da mesma norma, que, se exigisse, em cada recurso apreciado, a renovação da instância incidental da argüição de inconstitucionalidade, levando as sessões da Corte a uma monótona e interminável repetição de julgados da mesma natureza.
A prática, na verdade, se adotada, ainda teria a grave conseqüência de expor o Tribunal, sempre sujeito à variabilidade episódica ou definitiva de sua composição, a eventuais pronunciamentos contraditórios sobre a mesma lei, o que seria comprometedor para a segurança jurídica e desastroso para a imagem da Justiça.
Por isso mesmo é que jamais se teve por violador da norma do art. 97 da Constituição o fato de uma Turma invocar, no julgamento de uma apelação, a decisão tomada pela Corte em incidente de argüição de inconstitucionalidade processado em recurso análogo, dispensando-se, por essa forma, de suscitar novo incidente de inconstitucionalidade.
A difusão pacífica dessa rotina constitui demonstração de que a norma sob exame não deve ser interpretada de modo literal, não se podendo perder de vista, ao revés, que sendo ela corolário do princípio da presunção de constitucionalidade das leis, visa primordialmente a evitar que seja ele afetado por decisões que não traduzam a convicção do Tribunal, formada pela maioria expressiva de seus membros.
Se assim ocorre relativamente à declaração de inconstitucionalidade emanada do próprio Tribunal de origem, por maior razão não se poderá vislumbrar violação ao referido art. 97 da CF no fato de o órgão fracionário tomar, para suporte direto de seu julgamento, acórdão do Supremo Tribunal Federal que, apreciando recurso contra decisão plenária da Corte recorrida, em incidente de argüição de inconstitucionalidade, houver reformado esta.
Essa nova e salutar rotina que, aos poucos vai tomando corpo – de par com aquela anteriormente assinalada, fundamentada na esteira da orientação consagrada no art. 101 do RI/STF, onde está prescrito que "a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, pronunciada por maioria qualificada, aplica-se aos novos feitos submetidos às Turmas ou a Plenário" – além de, por igual, não merecer a censura perfeita de ser afrontosa ao princípio insculpido no art. 97, da CF, está em perfeita consonância não apenas com o princípio da economia processual, mas também com o da segurança jurídica, merecendo, por isso, todo encômio, como procedimento que vem ao encontro da tão desejada racionalização orgânica da instituição judiciária brasileira.
Tudo, portanto, está a indicar que se está diante de norma que não deve ser apreciada com rigor literal, mas, ao revés, tendo-se em mira a finalidade objetivada, o que permite a elasticidade do seu ajustamento às variações da realidade circunstancial [04].
Observe-se a Ementa do julgado acima transcrito:
ART. 97 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ACÓRDÃO DE ÓRGÃO FRACIONÁRIO QUE, INVOCANDO DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, MODIFICATIVA DE PRECEDENTE DO PLENÁRIO DA CORTE DE ORIGEM SOBRE A MATÉRIA CONSTITUCIONAL EM CAUSA, JULGOU DE LOGO A APELAÇÃO, SEM RENOVAR A INSTÂNCIA INCIDENTAL DA ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE.
Procedimento que, na esteira da orientação estabelecida no art. 101 do RI/STF, não pode ser tido por ofensivo ao art. 97 da Constituição Federal, posto que, além de prestigiar o princípio da presunção da constitucionalidade das leis, nele consagrado, está em perfeita harmonia, não apenas com o princípio da economia processual, mas também com o da segurança jurídica, concorrendo, ademais, para a racionalização orgânica da instituição judiciária brasileira.
Recurso não conhecido.
Tal entendimento não discrepa do posicionamento também firmado pela Segunda Turma do STF, no julgamento do AgRg 168.149, da Relatoria do Min. Marco Aurélio, cuja ementa foi assim lavrada (grifos nossos):
INCONSTITUCIONALIDADE – INCIDENTE – DESLOCAMENTO DO PROCESSO PARA O ÓRGÃO ESPECIAL OU PARA O PLENO – DESNECESSIDADE. Versando a controvérsia sobre ato normativo já declarado inconstitucional pelo guardião maior da Carta Política da República – o Supremo Tribunal Federal – descabe o deslocamento previsto no artigo 97 do referido Diploma maior. O julgamento de plano pelo órgão fracionado homenageia não só a racionalidade, como também implica interpretação teleológica do artigo 97 em comento, evitando a burocratização dos atos judiciais no que nefasta ao princípio da economia e da celeridade. A razão de ser do preceito está na necessidade de evitar-se que órgãos fracionados apreciem, pela vez primeira, a pecha de inconstitucionalidade argüida em relação a um certo ato normativo. [05]
Contudo, não se pode resumir referida alteração tão-somente como sendo uma medida de economia processual, embora também o seja.
Com efeito, a nova redação do art. 481, parágrafo único denota um movimento, de certo modo já consolidado, na busca pela objetivação do controle de constitucionalidade difuso ou incidental.
Ora, se uma decisão plenária do Supremo Tribunal Federal acerca da (in)constitucionalidade de determinada lei, em sede de Recurso Extraordinário, é apta a vincular as decisões dos demais Tribunais Pátrios a ponto de tornar desnecessário o encaminhamento da questão ao seu respectivo Plenário ou Órgão Especial, sem que isso implique em ofensa ao art. 97 da atual Constituição, não se pode chegar a conclusão diversa daquela que aponta para a consubstanciação de caráter objetivo a processo anteriormente meramente subjetivo.
Por fim, o art. 557, § 1º-A situa-se no mesmo Livro I – Do Processo de Conhecimento, mas no Título X – Dos Recursos, Capítulo VII – Da Ordem dos Processos no Tribunal do Código de Ritos. Este dispositivo, tal qual a norma anteriormente analisada, confere efeito vinculante às decisões plenárias ou súmulas do Supremo Tribunal Federal, ainda que não tratem de declaração de inconstitucionalidade. Assim, ampliam-se os limites do art. 481, parágrafo único, anteriormente comentado. Neste sentido, mister reproduzir-se lição dos Professores Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco [06], verbis:
No que se refere aos recursos especial e extraordinário, a Lei n. 8.038, de 1990, havia concedido ao relator a faculdade de negar seguimento a recurso manifestamente intempestivo, incabível, improcedente ou prejudicado, ou, ainda, que contrariasse súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça. O Código de Processo Civil, por sua vez, em caráter ampliativo, incorporou disposição que autoriza o relator a dar provimento ao recurso se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com a jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior (art. 557, § 1º-A, acrescentado pela Lei n. 9.756/98).
Tem-se, pois, que, com o advento dessa nova fórmula, passou-se a admitir não só a negativa de seguimento de recurso extraordinário, nas hipóteses referidas, mas também o provimento do aludido recurso nos casos de manifesto confronto com a jurisprudência do Supremo Tribunal, mediante decisão unipessoal do relator. Também aqui parece evidente que o legislador entendeu possível estender de forma geral os efeitos da decisão adotada pelo Tribunal, tanto nas hipóteses de declaração de inconstitucionalidade incidental de determinada lei federal, estadual ou municipal – hipótese que estaria submetida à intervenção do Senado –, quanto aos casos de fixação de uma dada interpretação constitucional pelo Tribunal.
Ainda que a questão pudesse comportar outras leituras, é certo que o legislador ordinário, com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, considerou legítima a atribuição de efeitos ampliados à decisão proferida pelo Tribunal, até mesmo em sede de controle de constitucionalidade incidental. Nas hipóteses de declaração de inconstitucionalidade de leis municipais, o Supremo Tribunal Federal tem adotado uma postura significativamente ousada, conferindo efeito vinculante não só à parte dispositiva da decisão de inconstitucionalidade, mas também aos próprios fundamentos determinantes. É que são numericamente expressivos os casos em que o Supremo Tribunal tem estendido, com base no art. 557, caput, e § 1º-A, do Código de Processo Civil, a decisão do plenário que declara a inconstitucionalidade de norma municipal a outras situações idênticas, oriundas de municípios diversos. Em suma, tem-se considerado dispensável, no caso de modelos legais idênticos, a submissão da questão ao Plenário." [07]
Destarte, incontestável a mudança de padrão que vem sofrendo o controle de constitucionalidade em sede de Recurso Extraordinário, eis que passa a externar características próprias e particulares do controle concentrado/abstrato.
Registre-se, por oportuno, que dita objetivação não se restringe aos RREE, absolutamente. Ao contrário, alcança todos os remédios jurídicos aptos a, concreta e incidentalmente, declarar a inconstitucionalidade de determinada norma.
Nesta esteira, importante precedente se encontra no julgamento do habeas corpus 82.959-7/SP [08], que tratou da questão da progressão de regime nos casos de presos condenados por cometimento de crimes hediondos, na forma da Lei 8.072/90. Sua ementa foi assim redigida:
PENA – REGIME DE CUMPRIMENTO – PROGRESSÃO – RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convivo social.
PENA – CRIMES HEDIONDOS – REGIME DE CUMPRIMENTO – PROGRESSÃO – ÓBICE – ARTIGO 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/90 – INCONSTITUCIONALIDADE – EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da pena – artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal – a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90.
No caso em tela, o efeito vinculante e a eficácia erga omnes do julgamento do STF foram postos em dúvida por ato do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco, Estado do Acre, que fez afixar no átrio do fórum a seguinte decisão:
Comunico aos senhores reeducandos, familiares, advogados e comunidade em geral que a recente decisão Plenária do Supremo Tribunal Federal proferida nos autos do ‘Habeas Corpus’ n. 82.959, a qual declarou a inconstitucionalidade do dispositivo da Lei dos Crimes Hediondos que vedava a progressão de regime prisional (art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90), somente terá eficácia a favor de todos os condenados por crimes hediondos ou a eles equiparados que estejam cumprindo pena, a partir da expedição, pelo Senado Federal, de Resolução suspendendo a eficácia do dispositivo de lei declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 52, inciso X, Constituição Federal.
Contra essa decisão (aviso afixado nas dependências do Fórum) a Defensoria Pública da União ajuizou Reclamação, que recebeu o nº 4.335, ante o descumprimento do acórdão do Supremo Tribunal Federal proferido no habeas corpus acima referido. Tal medida ainda se encontra pendente de julgamento, todavia alguns votos já foram proferidos, consoante se observa dos Informativos do Supremo Tribunal Federal nº 454, de 1º e 2 de fevereiro de 2007 e nº 463 [09], de 25 desse mesmo ano, in verbis (grifos nossos):
Informativo nº 454:
O Tribunal iniciou julgamento de reclamação ajuizada contra decisões do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco-AC, pelas quais indeferira pedido de progressão de regime em favor de condenados a penas de reclusão em regime integralmente fechado em decorrência da prática de crimes hediondos. Alega-se, na espécie, ofensa à autoridade da decisão da Corte no HC 82959/SP (DJU de 1º.9.2006), em que declarada a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que vedava a progressão de regime a condenados pela prática de crimes hediondos. O Min. Gilmar Mendes, relator, julgou procedente a reclamação, para cassar as decisões impugnadas, assentando que caberá ao juízo reclamado proferir nova decisão para avaliar se, no caso concreto, os interessados atendem ou não os requisitos para gozar do referido benefício, podendo determinar, para esse fim, e desde que de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.
Preliminarmente, quanto ao cabimento da reclamação, o relator afastou a alegação de inexistência de decisão do STF cuja autoridade deva ser preservada. No ponto, afirmou, inicialmente, que a jurisprudência do STF evoluiu relativamente à utilização da reclamação em sede de controle concentrado de normas, tendo concluído pelo cabimento da reclamação para todos os que comprovarem prejuízo resultante de decisões contrárias às suas teses, em reconhecimento à eficácia vinculante erga omnes das decisões de mérito proferidas em sede de controle concentrado. Em seguida, entendeu ser necessário, para análise do tema, verificar se o instrumento da reclamação fora usado de acordo com sua destinação constitucional: garantir a autoridade das decisões do STF; e, depois, superada essa questão, examinar o argumento do juízo reclamado no sentido de que a eficácia erga omnes da decisão no HC 82959/SP dependeria da expedição da resolução do Senado suspendendo a execução da lei (CF, art. 52, X). Para apreciar a dimensão constitucional do tema, discorreu sobre o papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade.
Aduziu que, de acordo com a doutrina tradicional, a suspensão da execução pelo Senado do ato declarado inconstitucional pelo STF seria ato político que empresta eficácia erga omnes às decisões definitivas sobre inconstitucionalidade proferidas em caso concreto. Asseverou, no entanto, que a amplitude conferida ao controle abstrato de normas e a possibilidade de se suspender, liminarmente, a eficácia de leis ou atos normativos, com eficácia geral, no contexto da CF/88, concorreram para infirmar a crença na própria justificativa do instituto da suspensão da execução do ato pelo Senado, inspirado numa concepção de separação de poderes que hoje estaria ultrapassada. Ressaltou, ademais, que ao alargar, de forma significativa, o rol de entes e órgãos legitimados a provocar o STF, no processo de controle abstrato de normas, o constituinte restringiu a amplitude do controle difuso de constitucionalidade.
Considerou o relator que, em razão disso, bem como da multiplicação de decisões dotadas de eficácia geral e do advento da Lei 9.882/99, alterou-se de forma radical a concepção que dominava sobre a divisão de poderes, tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral, que era excepcional sob a EC 16/65 e a CF 67/69. Salientou serem inevitáveis, portanto, as reinterpretações dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade, notadamente o da exigência da maioria absoluta para declaração de inconstitucionalidade e o da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal. Reputou ser legítimo entender que, atualmente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado há de ter simples efeito de publicidade, ou seja, se o STF, em sede de controle incidental, declarar, definitivamente, que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa para que publique a decisão no Diário do Congresso. Concluiu, assim, que as decisões proferidas pelo juízo reclamado desrespeitaram a eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão do STF no HC 82959/SP. Após, pediu vista o Min. Eros Grau.
Informativo nº 463:
O Tribunal retomou julgamento de reclamação ajuizada contra decisões do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco-AC, pelas quais indeferira pedido de progressão de regime em favor de condenados a penas de reclusão em regime integralmente fechado em decorrência da prática de crimes hediondos. Alega-se, na espécie, ofensa à autoridade da decisão da Corte no HC 82959/SP (DJU de 1º.9.2006), em que declarada a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que veda a progressão de regime a condenados pela prática de crimes hediondos - v. Informativo 454. O Min. Eros Grau, em voto-vista, julgou procedente a reclamação, acompanhando o voto do relator, no sentido de que, pelo art. 52, X, da CF, ao Senado Federal, no quadro de uma verdadeira mutação constitucional, está atribuída competência apenas para dar publicidade à suspensão da execução de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, haja vista que essa decisão contém força normativa bastante para suspender a execução da lei.
Em divergência, o Min. Sepúlveda Pertence julgou improcedente a reclamação, mas concedeu habeas corpus de ofício para que o juiz examine os demais requisitos para deferimento da progressão. Reportando-se aos fundamentos de seu voto no RE 191896/PR (DJU de 29.8.97), em que se declarou dispensável a reserva de plenário nos outros tribunais quando já houvesse declaração de inconstitucionalidade de determinada norma legal pelo Supremo, ainda que na via do controle incidente, asseverou que não se poderia, a partir daí, reduzir-se o papel do Senado, que quase todos os textos constitucionais subseqüentes a 1934 mantiveram. Ressaltou ser evidente que a convivência paralela, desde a EC 16/65, dos dois sistemas de controle tem levado a uma prevalência do controle concentrado, e que o mecanismo, no controle difuso, de outorga ao Senado da competência para a suspensão da execução da lei tem se tornado cada vez mais obsoleto, mas afirmou que combatê-lo, por meio do que chamou de "projeto de decreto de mutação constitucional", já não seria mais necessário. Aduziu, no ponto, que a EC 45/2004 dotou o Supremo de um poder que, praticamente, sem reduzir o Senado a um órgão de publicidade de suas decisões, dispensaria essa intervenção, qual seja, o instituto da súmula vinculante (CF, art. 103-A).
Por sua vez, o Min. Joaquim Barbosa não conheceu da reclamação, mas conheceu do pedido como habeas corpus e também o concedeu de ofício. Considerou que, apesar das razões expostas pelo relator, a suspensão da execução da lei pelo Senado não representaria obstáculo à ampla efetividade das decisões do Supremo, mas complemento. Aduziu, de início, que as próprias circunstâncias do caso seriam esclarecedoras, pois o que suscitaria o interesse da reclamante não seria a omissão do Senado em dar ampla eficácia à decisão do STF, mas a insistência de um juiz em divergir da orientação da Corte enquanto não suspenso o ato pelo Senado. Em razão disso, afirmou que resolveria a questão o habeas corpus concedido liminarmente pelo relator. Afirmou, também, na linha do que exposto pelo Min. Sepúlveda Pertence, a possibilidade de edição de súmula vinculante. Dessa forma, haveria de ser mantida a leitura tradicional do art. 52, X, da CF, que trata de uma autorização ao Senado de determinar a suspensão de execução do dispositivo tido por inconstitucional e não de uma faculdade de cercear a autoridade do STF. Afastou, ainda, a ocorrência da alegada mutação constitucional. Asseverou que, com a proposta do relator, ocorreria, pela via interpretativa, tão-somente a mudança no sentido da norma constitucional em questão, e, que, ainda que se aceitasse a tese da mutação, seriam necessários dois fatores adicionais não presentes: o decurso de um espaço de tempo maior para verificação da mutação e o conseqüente e definitivo desuso do dispositivo. Por fim, enfatizou que essa proposta, além de estar impedida pela literalidade do art. 52, X, da CF, iria na contramão das conhecidas regras de auto-restrição. Após, pediu vista dos autos o Min. Ricardo Lewandowski.
Vê-se, portanto, que muito embora hajam divergido quanto à natureza do art. 52, X da Constituição, os quatro Ministros que já se pronunciaram a respeito da matéria ou julgaram procedente a Reclamação, ou concederam de ofício a ordem de habeas corpus, demonstrando insofismavelmente que decisões tomadas pelo Plenário do STF, ao analisar abstratamente uma questão de controle de constitucionalidade, ainda que em um processo eminentemente subjetivo, como é o habeas corpus, vinculam as inferiores instâncias, de modo que, mesmo que não haja ocorrido a suspensão da norma pelo Senado, a referida decisão ultrapassará os limites subjetivos da causa, para alcançar a todos os que estejam em situação idêntica.
Aponte-se que o entendimento dos Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa mantém os precedentes da Corte quanto à desnecessidade da observância da cláusula de reserva de plenário (art. 97 da Constituição), quando o Supremo Tribunal Federal já houver se pronunciado sobre o tema da (in)constitucionalidade da matéria em plenário. Orientação esta que, como dito, foi seguida pela Lei nº 9.756/98, que acrescentou o parágrafo único ao art. 481, do Código de Processo Civil.
Feitos esses registros, impende tecer alguns comentários no que concerne à Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004.