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Sobre a impossibilidade de utilização do salão do tribunal do júri para realização de cultos ecumênicos

Agenda 13/05/2010 às 00:00

Situação interessante ocorreu-me dias atrás, no exercício da titularidade de Vara Criminal do interior de Minas Gerais. A Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de Minas Gerais – por uma de suas Subseções, solicitou àquele juízo autorização para cessão do salão do Tribunal do Júri do fórum local para a realização de culto ecumênico.

Nunca vi situação parecida e tive de me valer de meus parcos conhecimentos de Direito Constitucional e de Direito Administrativo, colhidos ao longo da vida, da experiência no magistério e de meu passado como Procurador Público, para buscar uma solução à questão.

Então.

Prescreve o art. 5.º, VI, da Constituição Federal de 1988 ser "inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma de lei, a proteção dos locais de culto e sua liturgias".

Como o requerimento autárquico refere-se à realização de "culto" ecumênico, mister, antes, saber o que vem a ser culto.

Pontes de Miranda, em comentários ao art. 150, §5.º, da Constituição de 1967, ensina que culto "é a forma exterior da religião: religião + relação com os outros homens + ação. Muitos pensam que religião e culta são uma mesma coisa. Chegam até a postular que é impossível religião sem culto. O êrro [sic] é evidente, no terreno lógico e no terreno da empiria", haja vista que "há religião sem culto, como também culto sem religião". [01]

Adiante em suas palavras, disserta o respeitado jurista que "a liberdade de cultos é limitada por medidas de ordem pública, com o mesmo critério que preside às outras limitações". [02]

Gize-se que a liberdade de culto é decorrência ou uma das facetas da liberdade religiosa [03] e pode ser compreendida como "a liberdade de exteriorizar a fé religiosa, mediante atos e cerimônias, como procissões, adorações, cantos sagrados, missas, sacrifícios entre outros". [04]

Decorre disso, então, não ser absoluta a liberdade de culto. Aliás, nenhuma liberdade é absoluta. Neste sentido, Alexandre de Moraes, para quem, "assim como as demais liberdades, também a liberdade religiosa não atinge grau absoluto, não sendo, pois, permitido a qualquer religião ou culto atos atentatórios à lei". [05]

O culto cuja autorização é pedida é adjetivado de "ecumênico".

Palavra de etimologia grega (oikouménikós), significa "o que é geral, universal. Caracteriza, pois, o que tem cunho de generalidade, de universalidade. Emprega-se particularmente para indicar o concílio, cujas deliberações, em matéria eclesiástica, ganham reconhecimento da Igreja Universal". [06]

É adjetivo para o substantivo ecumenismo que, no léxico, significa o "movimento que busca promover a unificação entre as igrejas cristãs (católica, protestante, ortodoxa; prática de promover cooperação ou melhor entendimento entre diferentes crenças religiosas". [07]

Dessarte, a Constituição garante tanto a liberdade de se ter uma religião e a de se poder celebrá-la (liberdade de culto). Isso ocorre, porque "o reconhecimento da liberdade religiosa decerto que contribui para prevenir tensões sociais, na medida em que, por elas, o pluralismo se instala e se neutralizam rancores e desavenças decorrentes do veto oficial a crenças quaisquer". [08]Nota-se, pois, que o pluralismo – a propósito, um dos vetores contidos no Preâmbulo da Constituição Federal de 1988 – é a fonte da liberdade, qualquer que seja ela, incluindo a religiosa (e de culto), donde redunda que também deve ser garantida liberdade de não se ter religião (ateísmo ou agnosticismo).

Esse último ponto é de importância crucial, porque, "se por um lado deve haver tolerância do poder político para com as Igrejas, por outro lado, deve haver por parte delas respeito à laicidade, a qual, se recusada, levaria o Estado democrático a lutar por sua própria existência. E esse conflito só se explicaria pelo simples fato de que, tanto o poder político quanto o religioso têm por finalidade manipular certas forças, simbólicas, no caso da religião, para a obtenção de determinados ou efeitos". [09]

Por isso, como já anotado linhas atrás – e merece reforço – "a liberdade de convicção religiosa abrange inclusive o direito de não acreditar ou professar nenhum ato de fé, devendo o Estado respeito ao ateísmo". [10]

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Daí a laicidade do Estado brasileiro, o qual, embora não tenha relegado a proteção divina, conforme se vê do preâmbulo da Constituição da República, tem o "dever de neutralidade (...) que não só deve possuir caráter laico, como também não pode favorecer, financiar ou embaraçar o exercício de qualquer religião". [11]

Deparamo-nos, aqui, com a expressa vedação inserida no art. 19, I, da CF, pela qual não podem os Entes Federativos "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança". O sentido destas prescrições nucleadas em tal tipo constitucional, segundo José Afonso da Silva, arrimado nas lições de Pontes de Miranda, é amplo, sendo que o verbo "estabelecer" também o é, de modo que abrange "criar religiões ou seitas, ou fazer igrejas ou quaisquer postos de prática religiosa." [12]

Sim, continua o mestre paulistano, "é evidente que não é a lei que vai definir os locais de culto e suas liturgias. Isso é parte da liberdade do exercício dos cultos, que não está sujeita a condicionamento. É claro que há locais – praças, por exemplo – que não são propriamente locais de culto. Neles se realizam cultos mais no exercício da liberdade de reunião do que no da liberdade religiosa". [13] Vale gizar que as praças aí mencionadas têm natureza de bem de uso comum do povo, isto é, "abertos à livre utilização", isto é, encharcados de uma "indiscriminada utilização que lhes é característica qualificadora". [14] A situação é diferente quanto ao uso de prédios públicos, porque são bens de uso especial, dentre os quais "os prédios do Executivo, Legislativo e Judiciário". [15] Nestes, porque "estão instaladas repartições públicas, compreende-se que, como regra, o uso que as pessoas podem deles fazer é o que corresponda às condições de prestação do serviço ali sediado" [16], de sorte que não cabe desvirtuamento de sua finalidade, específica como razão de ser.

Conclui-se, então, pela total impossibilidade de ceder o salão do Júri para qualquer culto ecumênico ou para qualquer cerimônia de cunho religioso. Enquanto espaço destinado a um desiderato específico, não pode ser desvirtuado para escopos outros que não estatais, mormente se a própria Constituição Federal de 1988 veda, de maneira ampla, dito desvio de fim. Quem o fizer, estará em franca violação à Lei Maior e corre o risco de se ver responsabilizado. A experiência passada já nos disse que a aproximação entre Estado e Religião não trouxe bons e isentos frutos. Que seja, pois, respeitada a Constituição Federal.


Notas

  1. Comentários à Constituição de 1967 (Arts. 150, §2.º - 156). SP: RT, 1968, T. V, pp. 127 e 128.
  2. Idem, p. 128.
  3. Neste sentido: SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 2 ed. SP: Malheiros, 2006, p. 93.
  4. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 11 ed. BH: Del Rey, 2005, p. 433.
  5. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. SP: Atlas, 2002, p. 216.
  6. Enciclopédia Saraiva do Direito. SP: Saraiva, 1977, V. 30, p. 52.
  7. SACCONI, Luiz Antonio. Pequeno Dicionário Sacconi da Língua Portuguesa. SP: Nova Geração, 2009, p. 253.
  8. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocênio. Curso de Direito Constitucional. SP; Saraiva, 2007, p. 409.
  9. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Ob. Cit., pp. 434 e 435.
  10. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19 ed. SP: Atlas, 2006, p. 41.
  11. ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JR., Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 9 ed. SP Saraiva, 2005, p. 131.
  12. Obra citada, p. 251, nota n. 3.
  13. Idem, p. 94.
  14. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 11 ed. SP: Malheiros, 1999, p. 621.
  15. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 12 ed. RJ: Lumen Juris, 2005, p. 999.
  16. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Obra citada, p. 625.
Sobre o autor
Augusto Vinícius Fonseca e Silva

Juiz de Direito em Minas Gerais. Pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela UNESA-RJ. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC). Ex-professor de Direito Constitucional na faculdade de Direito da Universidade Estácio de Sá, campus Juiz de Fora. Ex-professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil da graduação em Direito da Faculdade Pitágoras, campus Ipatinga/MG. Professor de Teoria Geral do Processo, Processo e Constituição e de Tópicos Avançados de Direito Processual Civil no curso de pós-graduação em Direito da Faculdade Pitágoras, campus Ipatinga-MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Augusto Vinícius Fonseca. Sobre a impossibilidade de utilização do salão do tribunal do júri para realização de cultos ecumênicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2507, 13 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14842. Acesso em: 22 dez. 2024.

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