RESUMO: Partindo da relação entre modelo de Estado e direito penal, o presente texto tem por escopo analisar como a globalização – enquanto novo momento de poder planetário – lança novos desafios ao direito penal, com tendências expansionistas, em detrimento do direito penal liberal garantista inspirado nos ideais trazidos pelo Iluminismo. Entretanto, apesar de identificar algumas tendências expansionistas, o texto focará a análise em uma delas, qual seja: a tendência de impingir ao direito penal um papel político e seletivo de controle da massa de excluídos produzida pelo próprio sistema capitalista global.
Palavras-chave: globalização; criminalidade; controle social; contemporaneidade.
I. INTRODUÇÃO
O direito penal liberal encontra-se umbilicalmente ligado à ideia do Estado-nação – Estado soberano com um território e um povo. Seus princípios foram construídos dentro dessa ótica social e política do direito positivo vinculado a um Estado soberano. Seu âmbito de eficácia se deve cingir positiva e negativamente ao chamado território nacional pertencente ao Estado-nação – tendo como norte os princípios da legalidade e da territorialidade e, a partir do Iluminismo, uma série de princípios e garantias, tais como: segurança jurídica, igualdade formal e proporcionalidade, forjados com base na dignidade da pessoa humana. Tais princípios hoje se encontram assegurados nas Constituições dos Estados ocidentais e são caracterizadores do Estado social e democrático de Direito – maior herança histórica do Iluminismo e fundamento do Estado-nação moderno construído a partir de então.
O Estado moderno não admitia no seu seio qualquer utopia, no seu exacto sentido semântico, enquanto lugar do não-lugar. Dentro do seu território aceitava-se inequivocamente, como axioma inderrogável, que os criminosos seriam punidos e os inocentes absolvidos. Porque tudo tinha lugar, tudo se passava, no território que era o ‘lugar’ da realização de todos os lugares. E assim o real do território se confundia com o racional do Estado e a racionalidade deste cabia por inteiro e sem resto na realidade daquele. Eis, em termos pobre e simples, a completude mais extrema e acabada que se operava pela força do pensamento de HEGEL quando o Estado era visto como a expressão última da concreção histórica do Espírito. [01]
Mas, eis que este "então" já não mais pode ser usado como centro das referências e construções sociopolíticas atuais. "O nosso viver despacializou-se [sic!]. O nosso interagir subjectivo perdeu as referências clássicas do espaço. As culturas, os gestos, os gostos, os saberes, as informações, tudo está em qualquer lugar, em qualquer espaço." [02] Desde os anos 60/70 vivenciamos o quarto grande ciclo do monismo jurídico, no qual o capitalismo monopolista vem sendo substituído pelo capitalismo avançado, pela globalização do capital. Presenciamos o enfraquecimento produtivo do Welfare State (crise fiscal e ingovernabilidade do Estado de Bem-estar).
A espinha dorsal do Estado moderno vem sendo desestruturada pelo fenômeno da globalização: os centros de decisões (sejam elas relacionadas à moeda, à pesquisa, ao desenvolvimento tecnológico, à produção industrial ou à comercialização de mercadorias) já não se circunscrevem ao Estado-nação; o dinheiro concentra-se nas relações financeiras – tão especulativas quanto voláteis – e, não mais, nas relações de produção; ou seja, há uma total perversão dos valores, pois o poder econômico gradativamente se sobrepôs ao poder político e as arenas decisórias foram sendo progressivamente fragmentadas, multiplicando-se em distintos níveis e lugares.
Com isso, elas acabaram (a) comprometendo a ‘centralidade’ e a ‘exclusividade’ do direito positivo, (b) criando grandes obstáculos para a efetividade dos controles democráticos tradicionais, (c) conduzindo à proliferação de centros decisórios com distintos graus de poder coercitivo, (d) abrindo caminho, por conseqüência, para uma explosão de instâncias geradoras de normatividade, (e) produzindo regras jurídicas com as feições antes das de um contrato negocial do que das de um estatuto imperativo (...). [03]
Com esta nítida inversão de valores – sobreposição do econômico sobre o político – enfraquecimento regulatório do Estado-nação – este perde sua característica de Estado-providência e passa a cumprir função eminentemente de contenção dos eventuais dissensos sociais que possam surgir diante deste contexto "explosivo" – desenha-se no horizonte um "Estado de prevenção ou de segurança". Uma vez o Estado ausente na função de prover as estruturas mínimas para o desenvolvimento harmônico da sociedade, esta clama por uma maior proteção. O terreno é fértil para o surgimento de toda sorte de clamor social por uma maior intervenção estatal na área de segurança, terreno suficientemente adubado para o florescimento de um cenário repressor, utilizando-se, primordialmente, do direito penal como resposta.
Estamos diante de um mundo que é possível descrever, mas não explicar. Ninguém pode suportar um espetáculo em que todos os valores – incluindo o da própria vida humana – se convertem em valores de mercado, sem que se possa explicá-lo, sem categorias do pensamento que, de forma segura, lhe permitam orientar-se e operar sobre essa realidade para superá-la ou transformá-la. Ainda mais insuportável se transforma o espetáculo quando versa sobre o tema do direito penal, porque ainda mais disparatado.
Vemos a criminalidade de mercado à escala macroeconômica sem nenhuma contenção e seus juros em refúgios fiscais conhecidos, consentidos e seguros. As proibições estatais só servem para aumentar a renda dos mil tráficos proibidos. O mundo parece sem leme: cada personagem, por poderoso que se imagine ou manifeste sê-lo, aparece como um microchip descartável em um enorme maquinário eletrônico: não pode deixar de fazer o que faz sob pena de imediata substituição. [04]
A ciência do direito penal, tal qual a concebemos, foi erigida sob a concepção moderna do Estado-nação. Cada um dos modelos de Estado já vivenciados – desde o Estado liberal, passando pelo Estado intervencionista/social e pelo Estado social e democrático de Direito (representando, em boa medida, uma fusão dos dois tipos anteriores), até a fase atual pela qual passa o Estado, intitulada de neoliberal – erigiram uma peculiar fundamentação do direito penal e, como consequência, determinadas possibilidades de conceber a função da pena. A função do direito penal e da pena, portanto, depende da função que se atribui ao Estado. Como já dizia Justiniano: "a conservação do Estado é o fundamento da punição". Com o fenômeno da globalização, propulsando a crise do Estado-providência e sua substituição pelo Estado neoliberal, é provável que o direito penal, bem como a pena, tenham suas funções reavaliadas.
No atual momento histórico vivenciamos dois novos fenômenos que ainda por muito tempo trarão inquietações para a ciência jurídico-penal, bem como para a seara da política criminal, que implicarão uma reestruturação na forma de distribuição do poder: 1) aprofundamento considerável das desigualdades sociais, inclusive, gerando um crescente setor de excluídos da economia global; 2) produção de uma nova forma de criminalidade, eminentemente difusa, com autoria muito mais coletiva que individual e, inclusive, transnacional. Diante de tal cenário inquietante paira uma certeza: a globalização dará lugar a discursos jurídico-penais igualmente díspares e convergentes, dando margem a uma política criminal de cunho notadamente expansivo.
Uma série de fatores converge e propugna a expansão do direito penal como resposta aos conflitos sociais contemporâneos. Expansão esta que se dá em duas frentes: na linha do "movimento da lei e da ordem" propagado inicialmente pelos Estados Unidos, com intenção voltada ao controle das camadas excluídas do sistema capitalista de produção, numa contenção direta da criminalidade de massas, ou seja, da criminalidade das ruas e, noutra frente de ação, vem surgindo um novo consenso dentre as camadas sociais que impõe ao direito penal um papel cada vez mais repressor no combate aos conflitos insurgentes na sociedade contemporânea globalizada.
Analisando as bases que fundamentam esse consenso, percebemos um ponto de contato com a crise do modelo do Estado de bem-estar (nos países ocidentais centrais, bem como pela não implementação deste, realidade vivida pelos países periféricos), intrinsecamente ligada ao modelo de produção contemporâneo, que acaba por acirrar os níveis de desigualdade social. Estes fatores, aliados à revolução tecnológica, propugnando o surgimento de novos bens jurídicos, novos interesses a reivindicar a proteção jurídico-penal - tais como: movimentações financeiras, comércio internacional, internet e a revolução das comunicações, engenharia genética, meio ambiente - desenham uma sociedade contemporânea onde novos riscos são diuturnamente criados e reforçados, riscos advindos do próprio modelo de produção, onde a distribuição, bem como a tomada de consciência destes novos riscos ganham uma conotação eminentemente política que os manipulam generalizando uma sensação de insegurança que permeia todas as relações sociais contemporâneas.
Um consenso social que clama por uma maior intervenção do direito penal, a despeito de uma real eficácia deste instrumento de coerção estatal, forjado por ideais eminentemente políticos, vai ganhando cada vez mais espaço dentro da política criminal contemporânea. Este consenso apresenta um pano de fundo político muito forte, vez que a desestabilização do Estado-providência deixa o cidadão acostumado à dependência estatal em completo desalento, reforçando uma identificação com o papel da vítima, que o faz clamar por proteção penal não só contra a criminalidade perpetrada pelos excluídos do sistema social, mas também, e, sobretudo, pela criminalidade perpetrada pelos poderosos. [05]
A política criminal atual, através da disseminação de suas ideias criminalizadoras pela mídia, acaba por utilizar os novos centros de conflitos surgidos com a sociedade contemporânea como justificação para as transformações atuais do direito penal, fazendo a população acreditar na eficácia do uso irrestrito do direito penal para solução de todos os conflitos sociais, quando, na verdade, esta eficácia esgota-se num mero simbolismo. Dessa forma, o direito penal passa de uma visão clássica na qual representava o instrumento de defesa do cidadão diante da intervenção coativa do Estado, entendida como Carta Magna do delinquente, na clássica caracterização de Liszt, a uma concepção da lei penal como Carta Magna da vítima. [06]
A sensação de anomia [07] alastra-se na medida em que o direito penal enfrenta uma crise de legitimidade e de eficácia em relação a tais fenômenos. Crise esta que pode ser sentida tanto no que se refere a sua atual (in)capacidade frente à criminalidade clássica (criminalidade de massas, que se circunscreve aos limites do território nacional), quanto ao desafio de elaborar respostas coerentes frente à criminalidade intitulada "moderna" (criminalidade dos poderosos, criminalidade transnacional).
O presente texto tem por escopo analisar como a globalização – enquanto novo momento de poder planetário – lança novos desafios ao direito penal, com tendências expansionistas, em detrimento do direito penal liberal garantista inspirado nos ideais trazidos pelo Iluminismo. Entretanto, o texto focará a análise em uma das tendências expansionistas evocadas, qual seja: a tendência de impingir ao direito penal um papel político e seletivo de controle da massa de excluídos produzida pelo próprio sistema capitalista global.
II. PAPEL DO DIREITO PENAL NO CONTROLE DOS EXCLUÍDOS
A sociedade contemporânea é marcada pela concentração de riqueza, pela exclusão social e pelo consequente esgarçamento das relações sociais e dos laços de controle sociais informais. A globalização econômica hegemônica tem não só aumentado consideravelmente a concentração de riqueza, mesmo nos países centrais [08], mas também gerado um novo nível de "miséria".
A política neoliberal, no que se refere às flexibilizações no mercado de trabalho, exige que os países criem condições favoráveis à confiança dos investidores, sob pena de "fuga" do volátil capital global. Nesse sentido, os diretores do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, no seu encontro anual realizado em setembro de 1997,
(...) criticaram severamente os métodos alemães e franceses para trazer mais gente de volta ao mercado de trabalho. Achavam que esses esforços iam contra a natureza ‘flexível do mercado de trabalho’. O que este requer, disseram, é a revogação de leis ‘favoráveis demais’ à proteção do emprego e do salário, a eliminação de todas as ‘distorções’ que se colocam no caminho da autêntica competição e a quebra da resistência da mão-de-obra a desistir de seus ‘privilégios’ adquiridos – isto é, de tudo que se relacione à estabilidade do emprego e à proteção do trabalho e sua remuneração. [09]
Para além da intensificação da desigualdade social, este fenômeno acaba por gerar um setor de excluídos da economia – pessoas que não conseguem se inserir no sistema, que sequer adquirem cidadania, vez que a noção de cidadão passa a ser substituída pela de consumidor e adota a solvência como critério de inclusão social. Essa é a principal consequência social desta nova forma de poder planetário imposta pela globalização.
A figura do excluído adquire um novo status social, pois não corresponde à figura do explorado, surgida com a revolução industrial. Nesta época, as massas exploradas eram eliminadas pela emigração e a exploração exaustiva de sua mão-de-obra barata tornavam-nas necessárias ao sistema, mas, no momento atual, não há possibilidade de emigração massiva a nenhum lugar do planeta. Sob essa perspectiva, o excluído torna-se descartável. [10] Aí surge uma nova ótica de controle social.
O problema da superpopulação carcerária se acentuou quando já não havia outra maneira de neutralizar aqueles que não se adequavam ao sistema econômico, ou seja, quando já não havia para onde enviá-los. Esse é o cenário que predomina nos tempos atuais. O encarceramento tem aumentado de forma generalizada em todo o mundo, independente do tipo de ideologia ou do nível sociocultural de cada país. Apesar de os Estados Unidos liderarem essa tendência, apresentando o maior índice de encarceramento do mundo [11] – fator que já não causa espanto, uma vez que são o ícone do modelo capitalista globalizado – essa é uma tendência universal. Tendência presente tanto em países periféricos, como o caso do Brasil [12] e de outros países da América Latina, quanto nos países europeus [13], que costumavam ter um nível de encarceramento mais moderado. Dessa forma, as causas desse crescimento se vinculam mais a questões de política que não se restringem aos Estados, ou seja, global, que a questões culturais internas dos Estados-nação.
Gráfico 1
Taxas de encarceramento nos Estados Unidos
IV. CONCLUSÃO
Hoje, na sociedade globalizada altamente informacional em que vivemos - onde a mídia exerce um papel central e bipolar para a democracia, posto que manipula e maquia o processo político, ao mesmo tempo em que proporciona uma tomada de consciência por parte das minorias, ao colocá-las em contato e fazê-las conscientes das suas realidades e dos direitos que lhes são negados - assistimos ao sistema penal perder legitimidade por não conseguir conciliar os anseios políticos que o utilizam como retórica para solução de todos os males com suas reais possibilidades jurídicas, muito aquém do papel político que lhe é impingido. Nesse contexto, o sistema penal busca um novo discurso que o legitime perante a população, para que ele possa seguir realizando seu papel de distribuição de poder, tornando-se cada vez mais repressor, contrariando cada vez mais as garantias que o embasam desde sua humanização nos idos do Iluminismo.
Essas novas tendências político-criminais que vivenciamos são o reflexo cristalino de uma sociedade que se encontra num impasse por não saber como resolver os conflitos insurgentes de seu próprio sistema de produção, de seus valores cultuados há tanto tempo e dos quais não consegue abrir mão, embora cada vez mais se conscientize da necessidade de uma mudança de rumo. Enquanto não se foca o olhar numa mudança estrutural de distribuição de poder e de riquezas, vai-se utilizando o sistema penal como forma de conter os desvios que o próprio sistema socioeconômico fomenta. Como a população encontra-se mais esclarecida, a burguesia de hoje encontra-se num impasse: como legitimar a desestruturação de um sistema de poder através do qual ela fundamentou todo o alicerce teórico do seu modo de governar? Como voltar a um direito penal ilimitado e não garantista e, ao mesmo tempo, torná-lo legítimo aos olhos da maioria? Assim, vai-se forjando uma série de clamores para justificar a desconstrução do sistema de garantias que embasa o sistema penal desde o Estado liberal. Como já não dá para simplesmente apagar tais garantias do sistema legal, vai-se criando necessidades sociais para, aos poucos, irem retirando-as das leis, fazendo parecer que se trata de um retrocesso necessário, verdadeiro progresso, portanto.
O novo viés legitimador do sistema penal, bem como do retrocesso que hoje vivenciamos, centra-se na necessidade de uma maior intervenção penal para dar resposta aos novos conflitos insurgentes com a globalização dos capitais e a sociedade tecnológica e informacional atual, ou seja, uma maior intervenção nos centros de poder do sistema capitalista global de produção, portanto, que atinja eminentemente a criminalidade perpetrada pelos poderosos. O temor é que tal discurso legitimador não passe de retórica e acabe por construir um sistema penal antigarantista indiscriminado que, por conseguinte, acabe servindo para reprimir os excluídos de sempre. Em tempos de globalização econômica, nos quais vivenciamos uma redefinição do papel do próprio Estado-nação, o temor é que se legitime um sistema penal antigarantista (que, longe de atingir os poderosos, sirva tão somente para recrudescer a repressão aos excluídos), disfuncional e completamente contrário ao que se sonhou com o advento do Iluminismo, a ascensão da burguesia e a instituição do Estado-nação.
Um uso racional do direito penal, ao menos, um uso que mereça defesa por parte da ciência do direito penal, não pode se confundir com os anseios políticos que lhe são impingidos. Para tanto, um primeiro passo está em diferenciar o sistema penal (sistema posto e manipulado pelo poder político) da ciência do direito penal. Esta não deve ter como função justificar o sistema posto, mas, sim, estudá-lo e encontrar meios, através da dogmática jurídico-penal, de limitá-lo.
É imprescindível que a ciência não se deixe confundir com a política e comece a desempenhar um papel questionador em relação aos fins do sistema penal – sistema extremamente seletivo e simbólico que, muito longe de prevenir conflitos ou proteger bens jurídicos, efetiva-se como um mero sistema de distribuição de poder, mantenedor do status quo. [26] A ciência do direito penal deve ter em foco que o sistema penal jamais conseguiu solucionar os conflitos sociais. [27] Nos dias de hoje esse seria um fim ainda mais difícil de se atingir, haja vista a complexidade social do mundo globalizado em que vivemos. Dessa forma, os discursos por um direito penal ainda mais repressivo e antigarantista, sob a escusa de pacificação dos conflitos sociais, não podem ser encampados no seio da ciência do direito penal. Esta, ao contrário, deve atuar na esfera jurídica como limite aos anseios da esfera política, salvaguardando a legalidade e as garantias que devem basear o processo penal no seio de uma sociedade democrática.