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Sobre o conceito de norma jurídica.

Um diálogo com Friedrich Müller para uma teoria estruturante do Direito

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Agenda 11/06/2010 às 00:00

3. A NORMA JURÍDICA NA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO

O positivismo tradicional concebe a norma jurídica como dado perfeito e acabado, posto pelo legislador à aplicação por parte de quem decide um caso concreto. A maior relativização dessa concepção se dá no âmbito da noção de interpretação, que para Kelsen, pode ser vista como um processo integrador do direito, mas apenas para o aplicador, que, enquanto autoridade, representa ainda a fonte geradora do direito.

A teoria estruturante do direito representa alternativa à concepção positivista de norma jurídica, procurando levar em consideração os elementos que efetivamente contribuem para a formulação da decisão. O idealizador da proposta, Friedrich Müler, apresenta-a em "Tipos da compreensão tradicional da norma" sob a forma de comentários às teorias de Hans Kelsen e Carl Schmitt.

Kelsen constrói sua teoria a partir do dualismo entre ser e dever-ser. Com vistas a uma metodologia jurídica "pura", livre de questionamentos de cunho sociológico ou ideológico, Kelsen toma a norma como pura prescrição de dever-ser, que não necessita manter qualquer relação com a realidade material (ser). O objeto da ciência jurídica deve ser o conhecimento da norma, que se realiza mediante a proposição de enunciados normativos a partir do imperativo normativo colocado pela autoridade. Nessa doutrina, a norma jurídica pode ostentar qualquer conteúdo axiológico, porquanto desvinculada da realidade ôntica.

Na visão kelseniana, a norma jurídica se desprende do ato de vontade que a coloca. O ato de vontade que põe a norma está no plano do ser, mas a norma em si não se identifica com o ato volitivo. A norma é o sentido objetivo do ato de vontade que a positiva, encontrando-se, portanto, no plano do dever-ser.

Müller critica o conceito de norma da teoria pura em pelo menos dois sentidos:

1.por não se sustentar segundo o modelo do estrito dever-ser, uma vez que, segundo o próprio Kelsen, a vigência da norma (dever-ser) tem como condição fundamental um mínimo de eficácia (ser), o que estabelece um embasamento da norma em elementos de ordem material;

2.por excluir do conceito de "norma" tudo o que é metajurídico, toda normatividade material passível de realização no caso concreto; em verdadeiro idealismo quanto às possibilidades de objetivação da norma jurídica.

Entendendo que a decisão volitiva tem como elementos aspectos da justiça, normas morais e juízos de valor social, o autor da teoria estruturante julga necessária uma concepção de norma diversa, capaz de integrar o que efetivamente influencia na realização concreta do direito. Como a teoria pura do direito não admite no conceito de norma nada que apresente caráter metajurídico, coloca Müller que Kelsen em nada contribui para uma teoria da interpretação jurídica. Ainda que diante da plurivocidade de sentidos, a teoria pura mantém a norma com o mesmo vazio de conteúdo. Como os critérios de aferição da decisão volitiva encontram-se cada vez mais na direção metajurídica, seu estudo foge ao escopo da teoria pura do direito, que silencia quanto ao modo de sua realização.

Carl Schmitt, por sua vez, representa o oposto do positivismo extremado da teoria pura. Sua postura decisionista coloca no centro da discussão sobre o direito a decisão jurídica, que para ele, mostra-se como a própria manifestação do direito formal. Diferentemente de Kelsen, Schmitt entende que a ciência jurídica deve preocupar-se com a problemática da correção do conteúdo, mas, por considerar a decisão a própria expressão do direito, seu conceito de norma jurídica, como em Kelsen, é indiferente ao conteúdo.

Coloca Müller que, por reduzir a noção de norma ao conceito de decisão, Schmitt conduz à completa superação da normatividade jurídica, em nível que se assemelha à limitação da normatividade imposta pela teoria pura de Kelsen.

Em ambos os casos, conteúdos materiais permanecem de fora do conceito de norma – o que, segundo Müller, acaba por não resolver a questão da metodologia para a construção de decisões controláveis racionalmente.

Müller sustenta, assim, a necessidade de criação de um conceito de norma jurídica que adentre a sua estrutura, levando em conta os elementos que efetivamente influenciam na formulação da decisão. A análise de "dados da linguagem", resultado da interpretação de dados linguísticos primaciais – "programa da norma" - associados a "dados reais", elementos metajurídicos conexos à norma, proporciona alcançar o "programa da norma", no dizer de Müller. Um perspectiva valorante do programa da norma torna capaz a definição do âmbito de aplicação da norma.

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Situada no contexto pós-positivista, a teoria estruturante de Müller favorece uma compreensão mais verossímil do fenômeno prático da aplicação do direito. Considera a norma não apenas um dever-ser, mas um fenômeno composto de linguagem e fatos, colocando o ser e o dever-ser como elementos complementares, cujas relações os limitam entre si, e não como elementos reciprocamente excludentes [29]. A afirmação de que não existe norma jurídica antes do caso concreto erige a teoria de Müller ao movimento pósmoderno. Tomando o direito, do ponto de vista cognitivo, como sistema alopoiético, vez que pressupõe a interação do ordenamento com o meio exterior, admite a evolução e reconstrução do direito na praxis cotidiana. O modelo que coloca, além de possibilitar uma análise mais acurada da efetiva dinâmica verificada no direito, possibilita o desenvolvimento de uma metodologia racional da construção jurídica – o que interessa ao desenvolvimento da ciência e à prudência do controle democrático da atuação da autoridade.


REFERÊNCIAS

CONTE, Christiany Pegorari. A aplicabilidade da teoria estruturante no direito contemporâneo face à crise do positivismo clássico. In: ANAIS DO XVII CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI. Brasília, nov. 2008. Disponível em:<http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/brasilia/03_197.pdf>

Acesso em: 08 mai. 2010, 07:22:35.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

FRIEDRICH MÜLLER. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Friedrich_M%C3%BCller_(jurista)> Acesso em: 02 mai. 2010, 07:50:02.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MASCARO, Alysson Leandro. Nos extremos do direito (Schmitt e Pachukanis). In: LUA NOVA - REVISTA DE CULTURA E POLÍTICA. São Paulo, n. 57, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-64452002000200007&

script=sci_arttext> Acesso em: 07 mai. 2010, 08:22:50.

MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.


Notas

  1. FRIEDRICH MÜLLER. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/
  2. wiki/Friedrich_M%C3%BCller_(jurista)> Acesso em: 02 mai. 2010, 07:50:02

  3. CONTE, Christiany Pegorari. A aplicabilidade da teoria estruturante no direito contemporâneo face à crise do positivismo clássico. In: ANAIS DO XVII CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI. Brasília, nov. 2008. Disponível em:<http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/brasilia/
  4. 03_197.pdf> Acesso em: 08 mai. 2010, 07:22:35

  5. MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p.25.
  6. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 50.
  7. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 126.
  8. KELSEN, Hans. Op. cit., p. 139.
  9. Idem, 1999, p. 4.
  10. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 25.
  11. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 25.
  12. KELSEN, Hans. Op. cit., p. 51.
  13. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 25.
  14. Idem, p. 26.
  15. KELSEN, Hans. Op. cit., p. 245.
  16. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 27.
  17. Idem, p. 27.
  18. KELSEN, Hans. Op. cit., p. 247.
  19. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 29.
  20. Idem, p. 29.
  21. Idem.
  22. MASCARO, Alysson Leandro. Nos extremos do direito (Schmitt e Pachukanis). In: LUA NOVA - REVISTA DE CULTURA E POLÍTICA. São Paulo, n. 57, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/
  23. scielo.php?pid=S0102-64452002000200007&script=sci_arttext> Acesso em: 07 mai. 2010, 08:22:50

  24. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 30.
  25. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 33.
  26. Idem.
  27. Idem, p. 35.
  28. CONTE, Christiany Pegorari. Op. cit., 2008.
  29. Idem.
  30. CONTE, Christiany Pegorari. Op. cit., 2008.
  31. Idem.
  32. CONTE, Christiany Pegorari. Op. cit., 2008.
Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Sobre o conceito de norma jurídica.: Um diálogo com Friedrich Müller para uma teoria estruturante do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2536, 11 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15013. Acesso em: 23 dez. 2024.

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