Tema complexo é a possibilidade ou não de se desenvolverem atividades de mineração no interior das unidades de conservação (UCs) integrantes do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) criado pela Lei n. 9.985/2000. Sobre essa questão há, inclusive, sérias divergências doutrinárias, jurisprudenciais e mesmo institucionais. E tais divergências têm gerado considerável insegurança jurídica, que é prejudicial aos dois bens em discussão (meio ambiente e mineração).
A questão referente à possibilidade de mineração em UCs é fruto de diferentes e inconciliáveis interpretações dadas a alguns dispositivos da Lei n. 9.985/2000.
Com a pretensão de resolver tais controvérsias e dar lugar à segurança jurídica no trato do tema, foi apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) n. 5.722, em agosto de 2009, pelo Deputado Antônio Feijão (PSDB/AP), que em seu texto original previa a expressa permissão da atividade minerária no interior das unidades de uso sustentável 1. O referido projeto, que foi aprovado com pequena emenda apenas de redação na Comissão de Minas e Energia da Câmara, previa a inclusão de um parágrafo terceiro ao art. 7º da Lei n. 9.985/2000, com o seguinte teor:
"Art. 1º O art. 7º da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, passa a vigorar acrescido do seguinte § 3º:
‘Art. 7º (...)
§ 3º Nas unidades de uso sustentável, são admitidas, especialmente em florestas nacionais e estaduais, as atividades de pesquisa e lavra de recursos minerais, desde que atendido o disposto no art. 10. da Lei nº 6.938, de 21 de agosto de 1981.’ (NR)"
Após a aprovação na Comissão de Minas e Energia, o referido PL, que tramita em caráter terminativo2, foi encaminhado à Comissão de Meio Ambiente, na qual recebeu substitutivo da relatora3, que restringiu a proposta inicial. Por esse substitutivo, apenas seria permitida a mineração em duas categorias de UCs do Sistema Nacional: Área de Proteção Ambiental (APA) e Floresta Nacional (Flona). E mesmo assim, nesta última apenas nos casos em que a exploração, operada com licença ambiental, preceder à criação da unidade. Eis o teor do substitutivo:
"Art. 1º O art. 15. da Lei nº 9.985, de 12 de julho de 2000, passa a vigorar acrescido do seguinte § 6º:
‘Art. 15. (...)
§ 6º É permitida a exploração de recursos minerais, desde que:
I – não implique a supressão ou degradação da vegetação nativa ou de outro elemento do patrimônio natural que tenha motivado a criação da Área de Proteção Ambiental;
II – esteja prevista no plano de manejo e em conformidade com o zoneamento;
III – seja aprovada pelo Conselho; e
IV – seja submetida a licenciamento ambiental, nos termos da legislação vigente.’
Art. 2º O art. 17. da Lei nº 9.985, de 12 de julho de 2000, passa a vigorar acrescido do seguinte § 7º:
‘Art. 17. (...)
§ 7º É permitida a exploração de recursos minerais apenas nos casos em que a concessão do título minerário preceder a criação da Floresta Nacional, e desde que:
I – não implique a supressão ou degradação da vegetação nativa ou de outro elemento do patrimônio natural que tenha motivado a criação da Floresta Nacional;
II – esteja prevista no plano de manejo e em conformidade com o zoneamento;
III – seja aprovada pelo Conselho Consultivo; e
IV – seja submetida a licenciamento ambiental, nos termos da legislação vigente.’"
Assim, verifica-se que o parlamento, órgão político mais representativo da complexidade e pluralidade social, e portanto com maior legitimidade democrática, está encaminhando as discussões para a tomada de decisão política sobre a questão. Isso é muito importante e significativo, pois se trata de temática sensível à sociedade, cuja decisão não deve ficar adstrita aos gabinetes dos órgãos públicos (minerários ou ambientais), mas ser tomada através de procedimento legislativo que culmine com a edição de lei formal pelo parlamento.
Todavia, enquanto não aprovado o PL citado, resta sim aos juristas e aos aplicadores do direito, nas suas diversas esferas de atuação, enfrentar a questão através da interpretação jurídica. Essa, entretanto, pela própria complexidade do tema, não pode resultar em um reducionismo hermenêutico, como muitas vezes parece se pretender. Assim, entende-se que é demasiado simplória a classificação segundo a qual a mineração é proibida nas unidades de proteção integral e permitida nas unidades de uso sustentável (com a exceção, neste último caso, para as Reservas Extrativistas - Resex, por existência de vedação expressa na Lei n. 9.985/20004).
Essa divisão apenas é válida no que toca às unidades de proteção integral, pois, ao proibir o uso direto dos recursos naturais nesse grupo de unidades5, a Lei n. 9.985/2000 restou por proibir também a exploração de recursos minerais, que é espécie de recurso natural. Quanto às unidades de uso sustentável, entretanto, a questão é mais tormentosa, pelo que deve ser analisada a compatibilidade da exploração de recursos minerais com o regime jurídico de cada uma das categorias de unidade desse grupo.
Por isso, nas unidades de uso sustentável, para responder se é possível o desenvolvimento de atividade minerária no seu interior, é preciso analisar se tal atividade se adéqua à descrição e aos objetivos/finalidades de cada categoria e ao plano de manejo da unidade, tendo sempre em conta o que dizem o art. 225, parágrafo primeiro, inciso III, in fine, da Constituição Federal e o art.
"Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção ;"
"Art. 28. São proibidas, nas unidades de conservação, quaisquer alterações, atividades ou modalidades de utilização em desacordo com os seus objetivos, o seu Plano de Manejo e seus regulamentos. "
Passa-se, destarte, a analisar a possibilidade ou não da exploração de recursos minerais em cada uma das 07 (sete) categorias de unidades de uso sustentável6, a começar pela Área de Proteção Ambiental (APA).
A APA, justamente por ser a categoria de unidade de conservação menos restritiva com relação ao uso dos recursos naturais localizados no seu interior não proíbe, em tese, a extração mineral. Tendo em vista a descrição dessa categoria de unidade, bem como os seus objetivos, não é de se vedar, em princípio, o desenvolvimento de qualquer atividade/empreendimento, incluída aí a mineração. Todavia, as condições para as atividades de mineração (assim como todas as demais) nas APAs deverão observar o zoneamento estabelecido no seu plano de manejo7.
Nas Áreas de Relevante Interesse Ecológico (ARIEs), por seu turno, a resposta é menos simples, pois, se por um lado a Lei do SNUC fala em "uso admissível dessas áreas" (art. 16, caput) e permite que essa categoria de unidade seja constituída por terras particulares (art. 16, § 2º), o que parece indicar a possibilidade de quaisquer atividades no seu interior, por outro lado afirma que o referido uso admissível deverá ser compatibilizado "com os objetivos de conservação da natureza" (art. 16, caput). Assim, entende-se que essa compatibilidade, possível em tese de existir, não veda, a priori, a atividade de mineração nas ARIEs, devendo a compatibilidade ou incompatibilidade do desempenho dessa atividade com a conservação da natureza ser analisada de forma mais geral no zoneamento estabelecido no plano de manejo da unidade e de forma específica em cada licenciamento ambiental.
Quanto à Reserva Extrativista (Resex), a questão foi expressamente enfrentada e resolvida pela Lei n. 9.985/2000, com a proibição expressa da "exploração de recursos minerais" (art. 18, § 6º). Essa vedação expressa exclusiva para as Resex é utilizada, em interpretação a contrario sensu, pelos defensores da possibilidade de exploração dos recursos minerais nas demais categorias de unidades de uso sustentável. Entretanto, como já mencionado, o que deve guiar a interpretação sobre essa temática é a compatibilidade ou não da referida atividade com o regime jurídico8 de cada uma dessas categorias.
Nessa linha, não é de ser admitida a mineração na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), porque esta é uma categoria de uso sustentável sui generis, que não permite efetivamente o uso direto dos seus recursos naturais, ou seja, não permite justamente o uso sustentável. Isso ocorre em virtude do veto presidencial ao art. 21, § 2º, III, da Lei do SNUC, que previa e autorizava a extração de recursos minerais nas RPPNs. O referido veto, na verdade, operou a migração da RPPN para o grupo das unidades de proteção integral, nas quais se permite apenas o uso indireto. Assim, aplicam-se às RPPNs as vedações das unidades de proteção integral, razão pela qual é vedada a atividade minerária dentro do seu perímetro.
Por sua vez, a Reserva do Desenvolvimento Sustentável (RDS) é categoria de unidade voltada ao atendimento de dois objetivos, a preservação ambiental e o desenvolvimento das populações tradicionais, através da garantia de condições e dos "meios necessários para a reprodução e a melhoria dos modos e da qualidade de vida e exploração dos recursos naturais das populações tradicionais" (Lei do SNUC, art. 20, § 1º). Essas são as razões pelas quais devem ser criadas as RDS e que devem guiar a interpretação a respeito das atividades permitidas e vedadas dentro dessa categoria de unidade. Sob tal ótica, a exploração de recursos minerais (espécie de recurso natural) nas RDS não pode ser realizada nem mesmo pelas próprias populações tradicionais, pois a mineração não é um modo de produção tradicional que desempenha "um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica" (Lei do SNUC, art. 20).
A Reserva de Fauna (RF) talvez seja a categoria de UC prevista na Lei n. 9.985/2000 da forma mais lacônica. No caput do art. 19. da referida lei se constata a fusão entre a descrição e os objetivos da unidade: "área natural com populações animais de espécies nativas, terrestres ou aquáticas, residentes ou migratórias, adequadas para estudos técnico-científicos sobre o manejo econômico sustentável de recursos faunísticos". Por isso, defende-se aqui a possibilidade de qualquer atividade econômica nas RFs, incluída a mineração, desde que tais atividades não prejudiquem ou inviabilizem a utilidade da área para do desenvolvimento dos estudos-técnicos científicos citados.
A categoria, todavia, na qual a questão tem se apresentado mais controversa é a Floresta Nacional (Flona), especialmente por dois motivos: o regime jurídico anterior permitia9 e, na prática, justamente em virtude dessa permissividade anterior, ainda é recorrente a mineração nessa categoria de unidade. Entretanto, o regime jurídico instituído para as Flonas pela Lei do SNUC não deixa margem para outra leitura que não a de que é vedada a atividade minerária no interior de tais unidades. Isso porque o objetivo das Flonas é "o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas nativas" (art. 17, caput). Note-se: a lei fala na espécie recursos florestais e não no gênero recursos naturais (este, que inclui os recursos minerais). E como a própria Constituição afirma que é "vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção" (art. 225, § 1º, III), não há lugar para exploração de recursos minerais em Flona, sob pena de comprometimento dos recursos florestais, que devem motivar a instituição dessa categoria de unidade.
Esta é uma análise sobre o direito posto. O tema certamente é polêmico e os debates, que adentraram ao parlamento com o PL 5.722/2009, estão apenas começando. Espera-se que o legislador desta vez seja mais preciso do que quando da edição da Lei n. 9.985/2000, para que as dúvidas de hoje dêem lugar à preservação ambiental plena e ao pleno desenvolvimento econômico, pois esses dois vetores têm o mesmo pressuposto: a segurança jurídica.
Notas
A Lei n. 9.985/2000 (art. 7º) divide as unidades de conservação integrantes do Sistema Nacional em unidades de proteção integral e de uso sustentável. Nas de proteção integral, é permitido apenas o uso indireto dos recursos naturais, enquanto que nas de uso sustentável se permite o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais.
Ou seja, se for aprovado em todas as Comissões, segue direto para o Senado, sem necessidade de passar pelo plenário da Câmara.
Deputada Marina Maggessi (PPS/RJ).
Art. 18, parágrafo 6º.
Art. 7º, parágrafo 1º.
De acordo com a Lei n. 9.985/2000:
-
"Art. 14. Constituem o Grupo das Unidades de Uso Sustentável as seguintes categorias de unidade de conservação:
I - Área de Proteção Ambiental;
II - Área de Relevante Interesse Ecológico;
III - Floresta Nacional;
IV - Reserva Extrativista;
V - Reserva de Fauna;
VI – Reserva de Desenvolvimento Sustentável; e
VII - Reserva Particular do Patrimônio Natural."
Conforme a Lei n. 9.985/2000:
-
"Art. 2º
XVII - plano de manejo: documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade."
Entendido como a descrição, os objetivos e o plano de manejo da unidade.
Decreto n. 1.298/1994, art. 5º.