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As eleições 2000 e o sistema representativo

Agenda 01/09/2000 às 00:00

A humanidade distanciou-se do barbarismo político quando concebeu a idéia de que "todo o poder emana do povo". Era o alvorecer da democracia. Mais tarde, essa idéia magnífica foi aperfeiçoada quando se assentiu que o poder que emana do povo "em seu nome será exercido". Nascia, então, a representação política, mecanismo pelo qual se permite o exercício do poder pelos "representantes" do povo, por este escolhidos.

Não é preciso voltar aos tempos de Thomas Hare e suas obras O Mecanismo da Representação (1857) e Tratado das Eleições dos Representantes (1859), para compreender que a verdade é singela como a rosa e límpida como a água da fonte: nenhum representante do povo detém o poder em seu próprio nome; todo o poder é dos representados.

Jean-Jacques Rousseau, no seu Do Contrato Social, dizia que o poder soberano do povo é intransferível e que só pode ser exercido diretamente pelo próprio povo. Não se quer chegar a tanto, mas é preciso, com urgência, passar a limpo a representação política, para que volte a ser o que era e nunca deveria ter deixado de ser: o exercício do poder do povo, pelo povo e para o povo, como dizia Lincoln. De tanto desvirtuada, a "democracia representativa" ombreia-se, hoje, com a onda de violência que aniquila o país: ninguém suporta mais. É preciso, pois, fazer a sua depuração.


Tudo tem que ter um começo. E as eleições municipais são boa oportunidade para começar a depuração do sistema representativo. A maioria dos prefeitos, sem precisar se afastar do cargo, disputará a reeleição. É fato inédito na história política do país. A experiência da reeleição para presidente e governadores foi um desastre. A mídia calou e o povo não soube da situação caótica do país, que desaguou na crise cambial de janeiro de 1999. Hoje, os governos (re)eleitos há dois anos patinam na impopularidade. Em que pese tamanho fracasso, estamos condenados a ver de novo, em escala municipal, o desfile das mazelas que já vimos nas eleições gerais de 1998. Depois, choraremos o leite derramado, porque é sempre assim – mas, por que tem que ser sempre assim?

Muitos prefeitos são réus nos Tribunais, ou estão sendo investigados pelo Ministério Público ou pelos Tribunais de Contas porque embolsaram as verbas da educação, comeram a merenda escolar, não pagaram o funcionalismo e não se dignaram sequer a prestar contas. A reeleição lhes garante persistir nesse estropício contra o erário e praticar toda sorte de abusos na campanha eleitoral, à custa dos contribuintes.

O tema principal destas eleições serão as denúncias de improbidade administrativa, que não surge do acaso, mas deriva de um outro mal, ainda pior e que a antecede: a corrupção eleitoral, que se apresenta de várias formas, sob múltiplos disfarces, em várias esferas e ao mesmo tempo.

A "compra de votos", que a CNBB, ao som das trombetas de Gideão, promete combater com o maior estardalhaço, é uma delas. Mas não é a única. Nem a mais importante. É apenas a ponta de um extenso processo anterior, altamente corrosivo. O truque do barulho das cornetas levou Gideão, com apenas trezentos homens, a iludir e vencer os adversários midianitas, muito mais numerosos, mas a zoada de hoje não garante a vitória sobre a corrupção eleitoral. Não me vá a lei da CNBB capturar apenas a arraia miúda, os bagrinhos, os ditos "cabos eleitorais", reles assalariados; sabido que os tubarões, isto é, os candidatos e seus financiadores, são espertos demais para cair nas frágeis malhas dessa lei, por sinal tecnicamente mal feita. De qualquer modo, vale a intenção. É sempre um começo.

A raiz da corrupção eleitoral no Brasil está firmemente enterrada no sistema de financiamento das campanhas. Nesse campo, impera a desordem absoluta, que o sistema legal se mostra incapaz de controlar ou punir. O financiamento "privado" das candidaturas é uma caixa preta ao contrário, imune a qualquer investigação. A exigência legal de abertura de conta bancária especial para a movimentação financeira da campanha não garante a transparência da contabilidade eleitoral até porque não vem sendo cumprida à risca. Neste ponto, por incompetência ou frouxidão, a Justiça Eleitoral tem sido muito leniente para com os infratores.

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Já foram desmascarados alguns tesoureiros de campanhas, como o PC Farias. Mas nunca ninguém quis saber quem são os banqueiros, os que financiam os candidatos, os que atuam por trás das cortinas, os que puxam os cordéis das marionetes. As campanhas eleitorais movimentam bilhões de reais de dois em dois anos. Ou no intervalo das eleições. Por que não obrigar o partido ou candidato a divulgar, durante a campanha, todas as contribuições que recebem? O eleitor tem o direito de saber quem está escorando financeiramente o candidato em quem deseja votar, para avaliar se ele será o "seu" mandatário, o "seu" representante, ou se, ao contrário, ele será tão-somente um testa de ferro dos poderosos que bancam a sua eleição.

Há quem seja contra o financiamento público das campanhas eleitorais. Sob argumento de que o dinheiro sairá dos cofres públicos. Podem até ter razão. Mas, pelo menos, saberíamos, de antemão, o tamanho do rombo, que ninguém sabe a quanto monta no financiamento privado das campanhas. O que se sabe é que nenhum banqueiro, nenhum empreiteiro, nenhum empresário, nenhum candidato coloca nas campanhas dinheiro do próprio bolso a fundo perdido. Eles fazem um investimento, um empréstimo, que depois tem que ser pago. E quem é que paga? A "viúva", lógico. Como? Por meio das isenções fiscais. Da sonegação. Das licitações dirigidas. Do superfaturamento das obras públicas. De muitos mecanismos que nós, pobres mortais, nem ousamos imaginar, mas que qualquer cacciola sabe muito bem como operar.

A publicidade oficial é vitamina pura para a corrupção eleitoral. A TV mostra todo dia, impunemente, programas de governantes que usam e abusam de recursos propagandísticos expressamente vedados pela Constituição, com fins nitidamente eleitoreiros. E nisso se igualam todos os agentes públicos, de qualquer sigla ou coloração. No aniversário da cidade espalharam outdoors em que o retratinho do povo anônimo formava o grande rosto do prefeito; na estação recém-inaugurada entronizaram gigantesco pôster envidraçado do seu criador, com a foto do artista quando jovem, esbelto, de cabelos pretos, em pose de dândi, um novo Landi. Este e aquele foram antecipadamente imortalizados, sem esperar pelo reconhecimento da posteridade, talvez por não acreditarem que o tempo é o senhor da razão. Nem Joseph Goebbels, o marqueteiro de Hitler, imaginaria tamanho culto à personalidade. O que se gasta com propaganda oficial inútil é uma fábula. Se aplicassem a gorda verba publicitária institucional nos programas de segurança pública, a sociedade sairia ganhando, com certeza.

A corrupção eleitoral deriva ainda da abulia dos partidos, que não impõem rigor no recrutamento de filiados ou na seleção de candidatos. Por que emprestar suas legendas, a troco de donativos, a notórios integrantes do narcotráfico e do crime organizado, como o deputado acreano, cujo hobby era passar a motosserra nos adversários; ou o deputado maranhense, cuja fortuna vinha de assaltos a carretas de carga, ou os ronivons que confessaram ter votado com o governo a troco de R$ 200 mil? Esses são os ladrões ricos, que o Padre Vieira, nos Sermões, chamou de ladrões triunfantes – os que, "já com manha, já com força, roubam e despojam os povos". "Os outros ladrões, pregava o padre, roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam." Inspirado nos "belos" exemplos do Norte, um pobre coitado lá do Sul maravilha, candidato a vereador, já saiu permutando votos por trouxinhas de maconha... Num e noutro caso, partido que deixa que isso aconteça merece ter o registro sumariamente cassado. Sem apelação. Nem direito de defesa. Porque não há defesa possível para tamanho crime contra a representação política. E evitaria a gastança posterior com as CPIs.

A reforma eleitoral empacada no Congresso Nacional, como tantas outras por lá engavetadas, perde-se em questiúnculas sem importância, como a data da posse dos eleitos. O que é preciso, porém, é reformular, em profundidade, o sistema partidário e o sistema eleitoral; estabelecer a coincidência de todos os mandatos, reduzindo à metade os custos das eleições; barrar os partidos inexpressivos ou legendas de aluguel; reduzir o número de candidatos e de opções de nomes pelos quais possam ser registrados (liberalidade, aliás, inútil em face ao voto eletrônico que se dá somente no número do candidato); repensar o financiamento das campanhas e o marketing político ilusionista; possibilitar, a qualquer tempo, a ampla investigação e a punição dos abusos do poder econômico, do poder político ou de autoridade, que só vêm à tona, quase sempre, muito depois de expirados os exíguos prazos eleitorais, e, principalmente, reformular e modernizar o sistema judiciário eleitoral, que necessita de um choque de vontade, de eficiência e de eficácia, para combater, sem evasivas, todas as formas de corrupção – quer a eleitoral, antes e durante; quer a administrativa, antes, durante e depois das eleições.

Em suma, como disse o poeta mineiro Dantas Motta, na sua Primeira Epístola de Tiradentes aos Ladrões Ricos, citando verso de Guimarães Rosa: "Aroeira de mato virgem não se alisa." De fato, ou se corta pela raiz, ou se agüenta as conseqüências por um bocado de tempo.

Sobre o autor
Luiz Ismaelino Valente

procurador de Justiça no Pará, professor de Direito Eleitoral da ESM/PA e da FESMP/PA, sócio emérito do IBRADE (Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALENTE, Luiz Ismaelino. As eleições 2000 e o sistema representativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1505. Acesso em: 22 nov. 2024.

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Texto publicado em O Liberal.

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