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A lei divina e a lei humana na política e no direito medieval

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Agenda 02/07/2010 às 04:00

resumo

Ao longo da Idade Média construiu-se, com base principalmente na concepção agostiniana de que o espiritual é superior ao temporal, a teoria de que os papas poderiam exercer a plenitude do poder na sociedade, em face ao poder do Imperador. Em meio a muitos teóricos que surgiram para defender um e outro lado da controvérsia, Marsílio de Pádua se põe do lado do Império, criando uma teoria que contém o germe da idéia de soberania popular do Estado Moderno. No que concerne à distinção entre Lei divina e lei humana, este artigo tem o objetivo de expor quais os momentos mais importantes no desenvolvimento histórico daquela teoria e quais os aspectos mais importantes da refutação de Marsílio em sua obra O Defensor da paz.

palavras chave: 1. Poder; 2. Igreja; 3. Idade Média; 4. Teoria Marsiliana

abstract

During the Medieval Age it was constructed (in the ground of the Augustinian conception that spiritual power has superiority related with secular power) the theory that the Popes could exert the fullness of power in the society before the power of Emperor. In way to many thinkers who had appeared to defend every side of the controversy, Marsilius of Padua puts himself in the side of the Empire, creating a theory which contained the embryo of popular sovereignty idea in the Modern State. This article has the objective to show the moments most important in the historical development of that theory and the aspects most important in the refutation of Marsilius in his work the Defender of peace, concerning to distinction between God’s Law and human law.

key-words: 1. Power; 2. Church; 3. Middle Ages; 4. Marsilius’ theory


Introdução

Durante a Idade Media, a teocracia pontifícia esteve no centro das idéias políticas da Europa. De modo lento e significativo, o poder do papado alcançou um status de plenitude (plenitudo potestatis), sendo posto acima de todos os demais poderes na sociedade, tanto o poder dos clérigos como o poder do Imperador. Sem ter um início histórico determinado especificamente, sabe-se que tal tendência se encontra já no século V, com o papa Leão I (440-461). Gelásio I (492-496), tomando como referência a idéia agostiniana da superioridade do espiritual sobre o temporal, defendeu fortemente a primazia do sacerdote em uma carta conhecida como carta gelasiana, anotando que nada no mundo pode estar acima do homem que Deus constituiu para ser líder do seu povo.

Na esteira do pensamento de Gelásio, encontra-se Gregório I (590-604), que coloca o poder real como um ministério entre tantos da Igreja devendo ele ajudar na cristianização do mundo. Essa posição também será seguida pelo teólogo do século VII Isidoro de Sevilha, mas com um detalhe, este coloca o Imperador acima do próprio papa, mas apenas enquanto evangelista dos povos. A idéia que prevalecia era até então a de que o poder, seja ele temporal ou espiritual, vem do alto, diretamente de Deus ou através da Igreja.

No ano de 800, Carlos magno foi coroado pelo papa Leão III, que o consagrou como Imperador do Ocidente. Com isso mostrava-se que "o imperador recebia tal poder, não diretamente de Deus, mas através da Igreja" [01], que o recebera diretamente de Deus. Naquela época tinha muita importância um suposto documento no qual Constantino doou o poder ao papa Silvestre (donatio constantini). No ano de 840 os arcebispos de Lyon e Reims depuseram Luís, o piedoso, alegando que ele era indigno do cargo. Passo a passo, a idéia da plenitude do poder do pontífice consolidava-se, fundada na concepção de que o espiritual é superior ao temporal e na idéia de que tudo na sociedade deve estar voltado para a salvação eterna do homem, assumindo uma função teológica. O papa Nicolau II (1059-61) reforçou a idéia da plenitude do poder do pontífice, colocando-o acima de todas as demais esferas de exercício do poder, tanto dentro como fora da Igreja.

Nos fins do século X, os imperadores germânicos Oto I, Oto II e Oto III mostraram uma tendência de reação contra o imperialismo dos papas, tentando, ainda que timidamente, restaurar o Império Carolíngio. Na Inglaterra surgiam os folhetos de York, que afirmavam a superioridade do imperador ante o papa, por ocasião da questão das investiduras entre Henrique I e o Papa Anselmo, contendo a semente do que Marsílio de Pádua iria desenvolver adiante.

Mas tal esboço de reação durou pouco, sendo aplacada por "um dos mais famosos papas da igreja, Gregório VII (1073-85), que implementaria a famosa reforma gregoriana, que iria colocar em ordem as relações entre a Igreja e o poder secular" [02]. Alguns historiadores consideram esse pontífice o fundador da teocracia pontifícia [03]. No século XII, Hugo de São Vitor viria para reforçar ainda mais a plenitude do poder papal, alegando que o espiritual pode julgar tudo, mas não pode ser julgado por ninguém; e Bernardo de Claraval viria também no século XII, retomando as teses de Gelásio I, para reafirmar que a Igreja possui as duas espadas, a temporal e a espiritual. O papa Inocêncio III, no século XIII, reivindicou para si o título de sucessor direto de Cristo no domínio da Igreja, contribuindo fortemente para o reforço da teoria hierocrática. Vale lembrar que a pretensão dos papas a plenitude do poder "não consiste em suprimir o poder temporal dos príncipes, mas em subordiná-lo a realeza do vigário terrestre de Cristo rei" [04].

Percebe-se assim que desde o século V a teoria da plenitude do poder papal foi consolidada nas atitudes dos papas, que sucessivamente, colocavam a serviço do reino de Deus os instrumentos seculares, firmados na idéia de que tudo deve estar voltado para o fim eterno do homem, a salvação.

Essa concepção de sociedade foi legada por Agostinho, na medida em que transmitiu "a idéia de uma sociedade de essência sobrenatural, composta por todos os que um dia desfrutarão da vista de Deus e que já se dirigem a esse fim, a luz da fé e sob a conduta da Igreja" [05]. Desse modo, a "unidade absoluta da sabedoria na revelação se traduz socialmente na da República dos fiéis, unidos sob a autoridade do papa, depositário da revelação" [06].

Com a chegada dos séculos XIII e XIV, dois eventos influenciarão decisivamente no rumo da controvérsia entre o papado e o Império, motivando a produção de obras contra ou em favor da plenitude do poder papal: 1) o debate entre Felipe IV da França e o papa Bonifácio VIII sobre um território; 2) o confronto entre Ludovico IV e o papa João XXII. Este segundo evento será o motor para a produção do defensor da paz de Marsílio, como veremos adiante. Naqueles séculos, a filosofia agostiniana dava lugar ao aristotelismo tomista que, de certo modo, confirmava a plenitude de poder, mas "influenciaria também as teorias anti-papistas defensoras dos estados nacionais independentes e autônomos em relação à Igreja" [07].

E ainda é com base nessa teoria "que Felipe IV, rei na França, afirma os seus direitos dentro do seu território e, contra toda a teologia vigente, sustenta que esse direito lhe foi dado pelo próprio Deus" [08]. Em reação as afirmações de Felipe IV, o papa Bonifácio VIII escreve a bula Unam Sanctam, expressão máxima e direta do ideal curialista da plenitude do poder, querendo colocar como condição de salvação para o Imperador a sua submissão ao Papa. Essa controvérsia faria surgir teóricos como Egidio Romano e Tiago de Viterbo, estando estes ao lado do Papa e João Quidort, representando uma posição moderada, precursora das idéias de Marsílio, e inserindo na discussão uma teoria conciliar baseada na representatividade. Desse modo, o confronto entre Bonifácio VIII e Felipe IV "teve grande importância para o desenvolvimento da teoria política e para o surgimento do conceito de soberania estatal na medida em que reduziu a pretensão papal de um poder único" [09]. Mostrava-se já na Idade Média a raiz do que seria mais tarde a base para toda a formulação conceitual da soberania no que se passou a chamar Estado Moderno.

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1. Marsílio de Pádua e o direito laico

No final da Idade Média entra em cena no campo filosófico o aristotelismo averroísta capitaneado por Tomás de Aquino, o qual "traçou uma linha peremptória de separação entre razão e revelação. Essa separação tem seu melhor exemplo em Marsílio de Pádua desempenhando um papal decisivo na criação de uma teoria puramente secular do estado" [10]. A partir de então, ganha força a idéia de que a sociedade é resultado das decisões e impulsos humanos. Este momento foi decisivo para um extenso exame das pretensões do poder papal, uma crítica que pudesse determinar os seus limites, mostrando que o pontífice não poderia estender os seus poderes indefinidamente. É esse exame que Marsílio assume.

Percebe-se que, entre o século XIII e o XV, o poder laico aumenta e surgem fileiras de teóricos defendendo a soberania do Império frente à Igreja. Mas essa reação não se fez ouvir de modo instantâneo e imediato. Pelo contrário, ela faz parte de um longo processo de laicização, no qual se encontra inserido o pensamento de Marsílio de Pádua. Idéias formuladas ao longo daquele período, que mostramos acima, iriam se consolidar dentro da política, influenciando decisivamente nas formulações do Paduano.

Marsílio nasceu entre 1285 e 1290 (provavelmente), em Pádua. Pertencia a uma família tradicional, cujo pai fora funcionário da universidade local, o que leva a crer que desde cedo teve contato com o ambiente intelectual de sua época, tendo presente também o fato de que parece ter estudado Direito, ou em sua cidade natal ou em Bolonha.

A sua obra mais conhecida é o Defensor da paz, na qual apresenta todo o seu pensamento político e eclesiológico. Sua teoria sobre o Estado e a Igreja defende uma separação entre os poderes e funções dos dois e coloca que o poder da Santa Sé de modo algum pode interferir nos assuntos relacionados ao Império. Na esteira do pensamento hierocrático medieval, ele é uma voz dissonante, que clama por um Governo que possa tomar decisões independentes da Igreja; ainda que essa separação não seja um rompimento total, como veremos adiante. Essa característica de radicalidade de sua obra faz do Paduano o precursor do que na modernidade ficou conhecido pelo Estado laico, totalmente separado das decisões da Igreja, tendo soberania sobre ela e representativo da vontade do povo.

Marsílio não é (como todos os pensadores dessa época) propriamente um moderno, no sentido amplo do termo, mas é ainda afeito à tradição religiosa, ainda que de modo crítico, buscando soluções para os graves problemas que tanto a Igreja como o Império enfrentavam em sua época. Como todo modo de pensar um dia se esgota e exige que o homem encontre novos rumos para si mesmo, para reconstruir sua própria história, a teocracia pontifícia havia se esgotado; e Marsílio será uma das mentes atentas para ouvir o que os novos ventos traziam, em meio a tantos que ainda estavam apegados ao barulho do vento que passava.

A disputa entre o império e o papado que já vinha se desenrolando há tanto tempo teve para Marsílio o seu auge, motivando-o a escrever o seu Defensor da paz, na controvérsia entre Ludovico IV e o papa João XXII, que apontamos anteriormente, quando, em 1314 houve as eleições imperiais. Eram então candidatos ao trono Ludovico IV e Frederico. Por uma casualidade ambos foram coroados. Nessa época era eleito o papa João XXII. Foi então solicitado a João XXII que escolhesse um dos dois imperadores. E o papa terminou não escolhendo nenhum dos dois, mas por recurso a um estatuto da época que registrava que em situações desse tipo o papa poderia assumir o poder, ele acabou assumindo em lugar de um imperador.

Antes dessa decisão do papa a disputa armada já havia começado e, agravando-se esta e tendo Ludovico prevalecido em batalha contra os aliados do Papa, foi advertido pela Santa Sé e excomungado no ano de 1324. Ludovico então acusou o papa de arbitrariedade já que ele (Ludovico) havia ganhado por maioria de votos as eleições de 1314. Nesse ínterim, Marsílio aconselha Ludovico a manifestar-se contra o papa. Baseado nas idéias do Paduano, Ludovico avança e consegue tomar o poder em Roma em 1328. Segundo o que propõe o Defensor da paz, ele escolhe um novo pontífice, Nicolau V. Marsílio é nomeado arcebispo de Milão. Mas esta situação logo se inverteu. Ludovico abandonou Roma, e Marsílio foi refugiar-se em Munique, onde se encontrou com Guilherme Ockham, com o qual travou uma disputa de opinião em relação à mesma questão, sobre os poderes imperiais e papais.

Tendo em mente esses detalhes da vida e da experiência política de Marsílio, é possível entender a sua intenção ao escrever sua obra prima, bem como por que ele usa tanta ironia, sendo até repetitivo em seus argumentos. Ele estava exatamente tentando encontrar um meio salutar para resolver aquela gigantesca disputa de poderes, a qual parecia insolúvel até então. E sua posição diante do problema não é a de um mero espectador.

O Defensor da paz foi escrito em 1324 e solenemente condenado pelo papa João XXII. A obra está dividida em três partes, e tem o objetivo geral de mostrar que em assuntos políticos o papa não pode legislar. A primeira parte da obra trata da teoria política de Marsílio. A segunda trata de suas concepções eclesiológicas. A terceira mostra as principais conclusões a que o pensador chegou.

Os temas principais da primeira parte são: a origem e a finalidade da cidade; a teoria da lei como fundamento do Estado; e a teoria das partes da cidade, entre as quais se encontra o sacerdócio, mas sem ocupar um lugar especial. O conflito que é especialmente elucidado aí diz respeito à pretensão papal a plenitude de poder, totalmente negada pelo Paduano.

Os temas da segunda parte fazem uma crítica ao pensamento político eclesiástico (expresso pela teoria hierocrática), em consonância com os anseios políticos do Império. Marsílio analisa a pretensão dos pontífices de exercer a plenitude de poder que, segundo eles, fora conferido na pessoa de S. Pedro.

Para o Paduano essa é uma interpretação distorcida das escrituras. E esse pseudodireito tem conseqüências funestas na sociedade dos crentes. Ele afirma que a plenitude de poder papal é uma causa oculta destruidora da paz social, geradora dos conflitos entre o Papa e o Imperador, pela qual o papa aspira dirigir todas as comunidades políticas organizadas e destruir a própria base do poder civil.

Segundo Marcos Costa, "a plenitude de poder, ou pensamento hierocrático é aquela teoria que colocava a autoridade do papa em primeiro lugar na sociedade cristã, fazendo derivar dela todas as outras relações sociais" [11], como já apontamos no início deste artigo. Vimos como tal teoria se desenvolveu ao longo do tempo.

O Paduano coloca que a sociedade como um todo é transcendente em relação as suas partes (como a Igreja, por exemplo). E esse será o seu argumento central (o todo é maior do que a parte). Daí resulta que quem deve legislar é o povo, que é chamado por ele de "Legislador Humano". Esse legislador pode ser a sociedade em geral ou um grupo seleto, sua melhor parte, representada por um conselho eleito. Esse conselho teria a autoridade de escolher representantes para um Concílio Geral que tem poderes para legislar ou decidir em assuntos que até então eram de competência exclusiva da Igreja ou do Imperador.

Para Marsílio deve haver um único poder, que não contrarie a lei divina nem a lei natural, organizado com o intuito de guiar a sociedade. E a sociedade civil surgiu primeiro que a Igreja, por isso não pode estar subordinada a esta. Essa é uma tese que já havia sido usada, mas invertida, para defender a primazia do sacerdócio, colocando-se que este surgiu antes do Estado e por isso tem direito ao poder.

Para Marsílio, entretanto, o papado é o alvo das críticas e nesse sentido não há como se dizer que ele tem precedência histórica. Como pensa o Paduano, para que haja paz na sociedade é preciso uma autoridade a quem os demais grupos obedeçam, mas essa autoridade não pode agir injustamente nem com arbitrariedade. Essa arbitrariedade também é um fator de desordem social, por isso o Paduano reconhece o direito que o povo tem de se rebelar. O alvo de suas críticas não é apenas a plenitude do poder papal, mas qualquer tipo de totalitarismo, o que faz de Marsílio um possível teórico da soberania popular.

Nesse sentido, a política de Marsílio baseia-se no princípio da exclusividade da coerção. É necessário para o estabelecimento de uma sociedade saudável que o poder coercitivo seja exercido apenas pela parte governante. Não pode o poder ser dividido entre Igreja e Estado. A autoridade legítima é caracterizada pela unicidade. A classe governante tem a exclusividade da coerção. Mas o príncipe não exerce essa autoridade única. Ele não tem sozinho o poder de reger o povo, pois isso resultaria em arbitrariedade.

A exclusividade da coerção é delegada, pelo legislador humano, a universalidade dos cidadãos, ou a sua parte preponderante. A força de criar as instituições reside nele. É ele que aprova, ratifica a lei humana. Somente a universalidade dos cidadãos ou sua parte mais valiosa (valentior pars) pode exprimir em forma de lei o que é justo e conforme o bem comum. É ela que coloca o príncipe como seu delegado. E se o príncipe abusar de seu poder, a comunidade pode puni-lo e até retirá-lo do poder.

Assim, percebe-se que o Paduano, mais do que colocar nas mãos do povo ou parte deste a autoridade coercitiva, retira da Igreja toda e qualquer pretensão ao exercício da coerção. A Igreja deverá exercer suas funções propriamente espirituais, mas não pode jamais impor sanções na sociedade, ela não tem o direito de usar a força para obrigar o povo ou o imperador a fazer a sua vontade. Essa atribuição é dada exclusivamente ao Legislador Humano, a universalidade dos cidadãos ou a melhor parte deles. É importante ressaltar que não há no Paduano um ideal democrático aos moldes modernos, pois, apesar de a sua teoria colocar em destaque a soberania popular, o elemento que fala da "melhor parte destes" (valentior pars) não se refere à maioria e difere do igualitarismo moderno.


2. A teoria eclesiástica na obra de Marsílio

A teoria eclesiástica do paduano, por seu turno, é uma total refutação da tese hierocrática predominante. Para ele, a Igreja em seu verdadeiro sentido não é uma organização hierárquica. Ele aplica o termo ao conjunto dos fiéis, pois esse era o sentido que se tinha na igreja primitiva, devendo tanto os sacerdotes como os não-sacerdotes ser conhecidos como homens de Deus.

A Igreja não é uma sociedade distinta da comunidade civil. Tanto o conjunto dos crentes, como o conjunto dos cidadãos pode ser a comunidade perfeita. Daí resulta que o legislador humano também é o legislador humano cristão. E é assim que se chega à conclusão de que a Igreja não poderia comportar uma autoridade civil. O sacerdócio não pode ser autoridade exatamente porque somente uma seria concebível, a do legislador humano exercida pelo Príncipe.

Para o Paduano "não há propriamente poder espiritual se por poder entendemos uma autoridade coercitiva munida de uma jurisdição de mesma natureza" [12]. Os sacerdotes não possuem nenhuma autoridade dessa espécie. Eles são apenas doutores da lei divina, são ministros do sagrado, sua tarefa resume-se em ensinar aos homens o caminho certo para a salvação na vida eterna, não podem decidir no âmbito político.

Não pode haver coerção para que alguém obedeça aos preceitos da lei de Deus, o homem que o fizer deverá ter nisso livre e espontânea vontade, não há por esse motivo como dar ao papado um caráter coercitivo, já que toda sua autoridade se reserva apenas para a tentativa de ensinar aos homens qual seria o caminho certo para se seguir. A Igreja não tem a capacidade, a atribuição de forçar os homens a fazer o que Cristo quer que eles façam, pois seria até incoerente imaginar Deus tentando, pela força, obrigar os homens a trilhar o seu caminho (contraria o maior princípio cristão, o livre arbítrio).

Somente o Imperador pode, com a autoridade dada pelo legislador humano fiel, exercer o poder em todos os tipos de matéria, tanto as civis quanto qualquer outra. Ele sim poderá obrigar, e usar a força para que seja cumprida a lei vigente. Mas essa coerção não poderá ferir a própria vontade da universalidade dos cidadãos, o legislador humano. E até as coisas que na Igreja são organizadas por meio de normas será de competência do poder do príncipe. Pois o príncipe assume uma tarefa de cunho espiritual quando está lidando com assuntos eclesiásticos, fundamentando-se no princípio de que a lei divina necessita ser promulgada pela lei humana. Isso ocorre porque em certos aspectos ela adquire um caráter coercitivo.

O clero está então reduzido a funções rituais. Caberá a ele a cerimônia, as celebrações dos ofícios, a pregação, a advertência dos pecadores, e poderá ser consultado pelo príncipe quando estiver em jogo a saúde espiritual do povo. Segundo Marsílio, "o príncipe agindo conforme a lei, a força e a autoridade que lhe foi confiada deve precisar os demais grupos sociais ou ofícios da cidade, a partir da matéria conveniente, quer dizer, as pessoas dotadas com essas ou aquelas aptidões ou hábitos específicos para exercê-los" [13].

O resultado do sistema proposto pelo paduano seria a subordinação da Igreja ao Estado. Mas não há aí uma separação total entre os dois. Ao contrário, estado e igreja estão intimamente unidos: os cidadãos são os fiéis, e os fiéis são os cidadãos. Só há separação entre as funções próprias de cada instituição. Uma é responsável pelo domínio coercitivo, e outra está encarregada apenas de realização de funções rituais, as quais, mesmo não comportando o mesmo caráter das leis estabelecidas pelo legislador humano, são indispensáveis para que a sociedade possa conviver em paz, para a vida espiritual.

Essa é uma das fortes razões que têm levado os estudiosos a afirmar que, apesar de se ver em Marsílio um precursor dos ideais do Estado Moderno, não se pode estudá-lo como se fosse um "Moderno" propriamente dito, pois, como coloca Marcos Costa, devemos lembrar que nos pensadores dessa época ainda não há um desejo de rompimento com os ideais religiosos, mas há uma tentativa de colocação dos ideais da Igreja ao lado dos ideais do Estado, ainda que subordinando a primeira ao segundo.

O Papa não poderia intervir no Império e o príncipe está assim totalmente livre da ameaça de excomunhão por parte do Papa. A legitimidade do poder daquele que deve governar e mesmo a autoridade daquele que deve interceder pelas almas está agora nas mãos da universalidade dos cidadãos, o legislador humano fiel. Nas palavras de Chevallier, "um monismo laico substituiu incontestavelmente o monismo teocrático" [14].

Marsílio postula ainda a necessidade de existência de um Concílio geral. Tal concílio seria o órgão delegado da universalidade dos cidadãos, o qual pode lançar luz sobre o sentido duvidoso das Escrituras guiado pelo Espírito Santo. A convocação do Concílio geral exige uma autoridade que seja universal e não conheça superior hierárquico. E somente uma autoridade preenche tal exigência, apenas o legislador supremo poderá convocá-lo, representado na pessoa do príncipe. A confiança dada por Marsílio ao Concílio (povo) era tal que chegou a dizer que possuía o Espírito Santo.

O príncipe ou aquele a quem delegou tal poder poderá convocar o Concílio. A ele caberá dar a ordem coercitiva para que se cumpram as decisões tomadas, para que as leis estabelecidas para a sociedade sejam devidamente cumpridas por todas as classes sociais. Ele também deve fixar a maneira de escolher o pontífice, podendo, em caso de necessidade, depor o mesmo. Segundo Marcos Costa, "o que há na sociedade idealizada pelo pensador paduano é o predomínio da lei, do direito e do bem comum. O governo é instituído pelo conjunto dos cidadãos, ao que chama legislador humano supremo, mas exercido pelo príncipe" [15].

Mas nota-se que o Paduano coloca o poder do príncipe quase que acima do poder do legislador humano quando lhe atribui o poder de vetar certas decisões do Concílio geral, o que torna o poder do príncipe de certo modo absoluto. Mas o príncipe também pode ser julgado pelo povo, podendo até ser deposto pelo mesmo.

Podemos perceber que Marsílio entendia que a causa principal do poder é o povo. Deus é apenas causa remota que serve para justificar tal poder. Mas essa justificação não vem através da Igreja, mas por meio dos cidadãos, o contrário do que vinha ocorrendo até então. É o que ocorre com o papado o qual tendo sido colocado por Deus como sacerdote, foi colocado pelo povo como administrador dos assuntos eclesiásticos humanos, da Igreja enquanto instituição que está submetida às decisões do Concílio geral.

A Igreja deve ter como chefe um príncipe cristão, que é o papa, o qual age por delegação do legislador humano. O povo cristão deve, reunido, escolher o papa, determinar os seus poderes no Concílio, e se necessário destituí-lo. Atrelado a esse postulado está aquele que refuta a doutrina hierocrática, segundo o qual nenhum sacerdote é maior do que outro. Todos eles, inclusive o papa, estão subordinados ao poder dos fiéis.

O papado não é mais uma instituição divina. Mas uma instituição humana regida pela vontade geral do povo o qual detém de modo efetivo a capacidade de legislar, tanto no que respeita ao clero, quanto no que se refere ao príncipe, o qual deve ser pelo povo ou sua melhor parte escolhido em seu cargo e investido de seus poderes fundamentais.

O Paduano rejeita a hierarquia na Igreja. "Para ele todos os sacerdotes cristãos são iguais em todos os aspectos, no tocante ao direito divino. Ele também nega que qualquer sacerdote tenha no mundo o direito de exercer poderes como: ordenar ou obrigar; decidir se deve se exercer coação contra apostatas e hereges; decidir quanto ao que é ou não ortodoxo" [16].

Sobre o autor
Jair Lima dos Santos

Acadêmico do curso de Direito da UNICAP - Universidade Católica de Pernambuco; Bolsista do PIBIC-CNPq; Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia Antiga e Medieval -GEPFAM/CNPq

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Jair Lima. A lei divina e a lei humana na política e no direito medieval. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2557, 2 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15116. Acesso em: 23 nov. 2024.

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