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Propaganda eleitoral extemporânea: o caso dos calendários

Agenda 01/08/2000 às 00:00

I - DA QUESTÃO POSTA "SUB JUDICE" E DA SENTENÇA PROFERIDA

Iniciado o período eleitoral, muitas decisões têm sido proferidas por Magistrados no sentido de reconhecer a desvalia jurídica de condutas de pré-candidatos, acolhendo representações do Ministério Público, aplicando multas pesadas (de 20.000 a 30.000 Ufir´s), por se considerar, por exemplo, que "não há como duvidar que promove eleitoralmente a representada, possibilitando a clara captação de votos em seu favor, a distribuição de cartazes -- ainda que para serem usados também como calendários -- contendo uma mensagem impressa vinculando os sonhos de futuro do eleitorado ao nome da virtual candidata, seguida dos dizeres ´vereadora 2000´, que representam o cargo para o qual ela pretende se reeleger e o ano das eleições municipais que se avizinham".

Convém analisar se procede esse tipo de punição.

Parece-nos, "data venia", especialmente no caso enfocado acima, que não restou nem minimamente violado o art. 36 da Lei 9.504/97, que trata do tema da propaganda eleitoral, tal como será demonstrado.


II - DA INCONSTITUCIONALIDADE DA MULTA ELEITORAL ABUSIVA E DESARRAZOADA

O tema em destaque possibilita enfrentar matéria prejudicial do mérito, consistente na absoluta desvalia jurídica do § 3º do art. 36 da Lei 9.504/97, em razão de a multa ali estipulada ser ABUSIVA e DESARRAZOADA. Em representação eleitoral que tratou do tema, rejeitou-se esta alegação porque se considerou que "a sanção prevista no aludido dispositivo legal não é de modo algum despropositada, mas, ao contrário, destinada a coibir a prática de grave irregularidade na propaganda eleitoral". Não parece ser este o entendimento correto.

Com efeito, estipular, como estipulou o legislador, multa por propaganda eleitoral supostamente irregular, no montante indicado naquele dispositivo, significa violar a Constituição e desatender a noções jurídicas das mais valiosas do regime jurídico pátrio.

Fazendo-se um paralelo com o que ocorre em questões tributárias, não se olvide que "uma multa excessiva ultrapassando o razoável para dissuadir ações ilícitas e para punir os transgressores (caracteres punitivo e preventivo da penalidade) caracteriza, de fato, uma maneira indireta de burlar o dispositivo constitucional que proíbe o confisco" (SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO, "Teoria e Prática das Multas Tributárias", Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1993, 2ª ed., p. 67).

Fato é que a multa estipulada pelo legislador tem condições de agredir significativamente o patrimônio daqueles que estão submetidos à legislação eleitoral, residindo aí sua natureza confiscatória, algo que é vedado e repudiado pelo sistema constitucional em vigor.

Multa como a que se combate é desarrazoada e confiscatória, especialmente num momento em que o próprio Governo Federal reduz o percentual das multas para atender à nova realidade da economia nacional.

Extrai-se da doutrina especializada a noção de que o PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO DA RAZOABILIDADE deve servir de barreira limitativa à discricionariedade da Administração Pública e do próprio Legislador, especialmente diante de casos em que ocorre a aplicação de "sanções desproporcionais ou inadequadas em relação às infrações praticadas", algo que "ocorre no caso de penas pecuniárias, que devem ser fixadas em limites razoáveis, de modo a não assumir caráter confiscatório. Nem onerar excessivamente a atividade profissional exercida licitamente" (MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, "Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988", Ed. Atlas, 1991, p. 148).

Daí porque não se vislumbra nenhuma razão de ordem jurídica, razoável e proporcional, que leve à convalidação da multa eleitoral questionada. O princípio da razoabilidade, como se vê, serve de abrigo ao que se sustenta, até porque, ainda segundo a bem urdida lição do notável CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO ("O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil", Ed. Forense, 1989, p. 160), referida previsão jurídica visa justamente impedir "o abuso do poder normativo governamental, isto em todas as suas exteriorizações, de maneira a repelir os males da ‘irrazoabilidade’ e da ‘irracionalidade’, ou seja, do destempero das instituições governativas, de que não está livre a atividade de criação ou de concreção das regras jurídicas nas gigantescas burocracias contemporâneas".

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Por isto que se afirma que multa em valor desarrazoado e confiscatório é inconstitucional, devendo ser invalidada pela autoridade competente, como forma de observar as prescrições superiores da Carta Magna.

Inexistem impedimentos à concessão do que se pleiteia, haja vista que se está a questionar a validade constitucional de parte de lei federal na via do controle difuso, concreto ou incidental de constitucionalidade das leis, reconhecido pela doutrina como modalidade de fiscalização da validade de atos normativos exercido por qualquer órgão judicial, no curso de processo de sua competência e cuja decisão tem o condão, apenas, de afastar a incidência da norma viciada (cf. GILMAR FERREIRA MENDES, "Controle de Constitucionalidade", Ed. Saraiva, 1990, p. 202).

Tenha-se presente que o STF já veiculou precedente no sentido de que o Judiciário detém competência para reduzir o valor de multas consideradas abusivas (RTJ 73/550), tudo, pois, a demonstrar que também cabe esta mesma competência a este E. Tribunal.

Por tais motivos, como matéria prejudicial à análise do mérito, correto será considerar INCONSTITUCIONAL a previsão jurídica contida no § 3º do art. 36 da Lei 9.504/97.


III - DA EFETIVA INEXISTÊNCIA DE PROPAGANDA
ELEITORAL - DA JURISPRUDÊNCIA DO TSE E DOS TRE´s

Caso não se entenda correta a matéria prejudicial do mérito retro-elencada, o que não se espera, cabe revelar que NÃO RESTOU CONFIGURADA A ALEGADA "PROPAGANDA ELEITORAL EXTEMPORÂNEA".

Aduz-se no "decisum" que "a propaganda eleitoral, como visto, não se consubstancia apenas com a expressa solicitação de sufrágio. Não é preciso que o pretenso candidato diga ´vote em mim´. É suficiente, especialmente em ano eleitoral, que veicule mensagem que promova sua candidatura perante o eleitorado, ainda que de maneira subliminar, pois, do contrário, a fraude ao espírito da lei se tornaria moeda fácil nas mãos dos não poucos candidatos inescrupulosos".

O erro da sentença parece residir na desconsideração de que a consulente, agindo exatamente da mesma forma como agiu desde o primeiro ano de sua eleição como agente política, passou a fornecer CALENDÁRIOS a seus parentes, amigos e conhecidos, prática absolutamente comum, usual e corriqueira em cidades do interior. Isto, a bem da verdade, não pode ser configurado como "propaganda eleitoral".

Referidos calendários (relativos aos anos de 1998, 1999 e 2000) não trazem mensagens eleitorais ou eleitoreiras, identificando-se apenas a pessoa responsável pela divulgação, citando-se sempre o ano do material, com a expressão "vereadora" inscrita em letras pequenas.

Como não se analisou CORRETAMENTE esta questão, produziu-se sentença que está a merecer reforma integral, pois o "decisum" se afastou da melhor e mais correta interpretação da legislação vigente e desconsiderou amplamente a situação fática que está contida nos autos.

Todos que atuam na área jurídica sabem que O DIREITO DEVE SER INTERPRETADO INTELIGENTEMENTE, "não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo" (CARLOS MAXIMILIANO, "Hermenêutica e Aplicação do Direito, Ed. Forense, 1979, p. 166). Por que o rigor excessivo e a interpretação que não se coaduna com a razoabilidade e com aquilo que está revelado nos autos ? Por que não se analisou a questão dos calendários de maneira global ?

Considerar que a atuação da consulente -- ao distribuir simples e inofensivos calendários, que sempre agiu assim desde o primeiro ano de sua eleição -- é configuradora de propaganda eleitoral irregular é desconhecer a lição do mestre acima citado. Não se pode forçar tanto a exegese da legislação vigente, como que a criar uma normatividade paralela, para atender ao desejo do Ministério Público. Numa situação como esta, que certamente não irá prevalecer, o princípio da legalidade (art. 5º, II, da CF/88) fica seriamente comprometido, causando insegurança jurídica e perplexidade.

Fato é que não se está diante de ato ou conduta configuradora de "propaganda eleitoral" ou de "propaganda eleitoral viciada e subliminar", porquanto a consulente é apenas exercente de cargo político, não tendo sua candidatura à reeleição sequer sido analisada pelo Partido ou pela necessária e inarredável Convenção. Como, então, que se pode caracterizar a simples distribuição dos calendários como "propaganda eleitoral" ?

A consulente, ao distribuir os calendários, não estava e nunca esteve "pleiteando cargo político" (até porque já é detentora dele), nem estava buscando a reeleição, dado que isto ainda não restou definido. Isto, aliás, é reconhecido até pelo representante, quando se afirmou na inicial que "NÃO HÁ NENHUMA REFERÊNCIA A UMA CANDIDATURA, NEM MESMO À FUTURA ELEIÇÃO". Por que razão então se pediu a condenação da consulente ? Como que se pode manter a condenação se não está configurada a tal "propaganda eleitoral" ? O bom senso está a impedir que se mantenha o resultado inicialmente alcançado pelo representante.

Quanto ao que se aduz, a literatura especializada revela ocasião em que o TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, no recentíssimo acórdão nº 15.317, de 27.04.1999, "esclareceu que mensagem de possível candidato, publicada em jornal, parabenizando as mães pela passagem de seu dia não caracterizava propaganda vedada, POR SER VEICULADA ANTES DA ESCOLHA DOS CANDIDATOS EM CONVENÇÃO E NÃO CONTER ALUSÃO ALGUMA À CANDIDATURA, DETECTANDO-SE ALI MERO ATO DE PROMOÇÃO PESSOAL SEM TIPIFICAÇÃO DE CONDUTA ILÍCITA. SEM CONVENÇÃO REALIZADA E SEM ALUSÃO À CANDIDATURA, PORTANTO, À LUZ DESSE JULGADO, NÃO SE TEM COMO CONFIGURADA A PROPAGANDA ELEITORAL" (DJALMA PINTO, "Direito Eleitoral - Anotações e Temas Polêmicos", Ed. Forense, 2ª ed., 2000, p. 219/220).

Eis aí um parâmetro seguro para apreciar a conduta da consulente, que efetivamente não realizou propaganda eleitoral, tendo apenas seguido algo que já se tornou tradição em sua vida de comunicadora e de vereadora. Ao distribuir os calendários, não se estava e nunca se esteve realizando propaganda eleitoral, visando convencer o eleitor a sufragar o nome da consulente nas eleições municipais que se avizinham, até porque não existiu ainda convenção e não existe registro de candidatura.

Os calendários, repita-se a bem da verdade, NÃO CONTÉM NENHUMA MENSAGEM ELEITORAL, aludindo-se apenas ao nome da consulente e ao ano da circulação do material, TAL COMO SE FEZ EM ANOS ANTERIORES, sem absolutamente nenhuma alusão a candidatura e sem absolutamente nenhuma referência à captação de votos.

Entender, como entendeu o ilustre Julgador de 1º grau, que se está diante de "publicidade indireta" ou "subliminar" (f. 42) é querer incluir na legislação algo que nela não existe, em séria desatenção ao PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. Nem se poderia requerer ao Magistrado o que efetivamente foi requerido na inicial, dado caber àquela autoridade seguir a orientação da jurisprudência dos Tribunais pátrios, que é toda no sentido de revelar que "mitigue o juiz o rigor da lei, aplique-a com eqüidade e equanimidade, MAS NÃO A SUBSTITUA PELO SEU CRITÉRIO" (STF-RBDP 50/159 e Amagis 8/363).

Para revelar, ainda outra vez, a premente necessidade de ser reformada aquela r. sentença, eis o posicionamento recente do TSE:

          "RECURSO ESPECIAL. PROPAGANDA ELEITORAL ANTERIOR A 05 DE JULHO. ART. 36 DA LEI Nº 9.504/97. DISTRIBUIÇÃO POR PARLAMENTAR, QUE VEIO A DISPUTAR REELEIÇÃO, DE CALENDÁRIO COM FOTO E SEU NOME E MENÇÃO AO CARGO POR ELE EXERCIDO. DISTRIBUIÇÃO SEMELHANTE EM ANOS ANTERIORES. NÃO CONFIGURAÇÃO DE PROPAGANDA ELEITORAL IRREGULAR. NÃO EXCEDIDOS OS LIMITES DO PERMITIDO PELA SUA ATUAÇÃO PARLAMENTAR" (REsp. nº 15.301, Rel. Min. Eduardo Alckmin, votação unânime, DJU 09.04.99, cópia em anexo).

Este acórdão, da mais alta Corte Eleitoral do Brasil, revela o desacerto da representação e da r. sentença, especialmente por se referir a situação exatamente idêntica à que está revelada nos autos, tudo a demonstrar que outra deliberação não será possível a não ser o acolhimento do que será pleiteado, reformando-se aquele "decisum".

Não é só, porém. Veja-se este outro acórdão, que também trata do tema da distribuição de calendários:

"RECURSO ELEITORAL. PROPAGANDA ELEITORAL ANTECIPADA. DISTRIBUIÇÃO DE CALENDÁRIOS CONTENDO A FOTO DE POTENCIAL CANDIDATO. NÃO CARACTERIZAÇÃO DE PROPAGANDA ELEITORAL. PRECEDENTES DO TSE. CONHECIMENTO. NÃO PROVIMENTO. A PRÁTICA DE DISTRIBUIÇÃO DE CALENDÁRIOS NÃO PASSA DE FORMA PRÓPRIA DE MANIFESTAÇÃO DO PROCESSO POLÍTICO E DA DEMOCRACIA VIGENTES NO PAÍS, NÃO DE PROPAGANDA ELEITORAL, MESMO PORQUE OS CALENDÁRIOS NÃO CONTÉM QUALQUER INDICAÇÃO DE CARGO A QUE O CANDIDATO PRETENDIA CONCORRER. DESCONHECIMENTO DA DATA DE EFETIVA DISTRIBUIÇÃO DOS CANDIDATOS" (RE nº 2521, Rel. Jamil Gedeon Neto, TRE/MA, votação unânime).

Sempre no mesmo sentido, eis outro acórdão:

"RECURSO ELEITORAL. ALEGAÇÃO DE PROPAGANDA ELEITORAL EXTEMPORÂNEA. DISTRIBUIÇÃO DE CALENDÁRIOS TIPO FOLHINHAS DE FINAL DE ANO. SUPOSTA OFENSA AO ART. 36, ´CAPUT´, DA LEI Nº 9.504/97. INOCORRÊNCIA. NÃO CONFIGURA PROPAGANDA ELEITORAL A DISTRIBUIÇÃO DE CALENDÁRIOS, TIPO FOLHINHAS DE FINAL DE ANO, REALIZADA POR DEPUTADO ESTADUAL, CUJA CONDUTA, NESTE CASO, NÃO EXTRAPOLA OS LIMITES DE SUA AÇÃO PARLAMENTAR. RECURSO IMPROVIDO" (RE nº 117/98, TRE/MG, Rel. Alvimar de Ávila, votação unânime).

Espera-se, sincera e honestamente, por apego ao princípio da SEGURANÇA JURÍDICA, que se empreste o devido valor a tais precedentes, acompanhando-se-lhes em razão da evidentíssima identidade fática e jurídica.

Por último, não se deve deixar de considerar outra decisão do TSE, que reformou decisão do TRE/AP, que havia condenado o atual Senador JOSÉ SARNEY pela prática de propaganda irregular, porque este também havia distribuído CALENDÁRIOS. Por votação unânime, reformou-se aquele "decisum" condenatório, exatamente porque não se configurou a alegada propaganda eleitoral irregular, extemporânea, subliminar ou indireta. Como deixar de considerar e de acompanhar esta verdade clara e exatamente idêntica ao caso dos autos ?

A jurisprudência predominante, portanto, inclusive e especialmente do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, é toda no sentido de revelar o desacerto da r. sentença, que merece em razão disso ser integralmente reformada.

Convém que se lembre, por derradeiro, com respaldo na jurisprudência da mais alta Corte Federal do Brasil, que "a melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a injustiças" (RSTJ 4/1.554). Espera-se a observância desta noção jurídica essencial, absolvendo-se a consulente da injusta e incorreta condenação.


IV - CONCLUSÕES

Por tais razões, em nossa opinião a distribuição de calendários, tal como se fez em anos anteriores, por agente político, em ano eleitoral e fora do período em que é autorizada a propaganda eleitoral, não viola dispositivo algum da legislação eleitoral, não merecendo punição alguma, especialmente por não ficar caracterizada a propaganda eleitoral extemporânea.

Esta é, sem dúvida, uma das interpretações a serem admitidas para o caso enfocado.

Sobre o autor
André Luiz Borges Netto

advogado constitucionalista em Campo Grande (MS), professor universitário, mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES NETTO, André Luiz. Propaganda eleitoral extemporânea: o caso dos calendários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1529. Acesso em: 22 dez. 2024.

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