1. INTRODUÇÃO
Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional, aprovado na Câmara dos Deputados e aguardando pronunciamento do Senado Federal, um projeto de lei com a finalidade de estabelecer sanções àqueles encarregados de investigação, inquérito e processo por divulgação de informação produzida no âmbito de suas respectivas funções.
O projeto traz no seu artigo 1º a alteração dos arts. 3º, 4º, 7º e 11 da Lei 4.898, de 9 de dezembro de 1965, a chamada lei do abuso de autoridade. No art. 2º propõe a alteração do art. 17 da Lei 8.429, de 2 de junho de 1992. E no art. 3º a alteração de dispositivos da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, a denominada lei da ação civil pública.
Este trabalho deter-se-á apenas em analisar a alteração dos dispositivos da Lei 4.898/65, em que pese a gravidade, também, das alterações dos dispositivos da Lei 8.429/92 e da Lei 7.347/85, a primeira pretendendo dar foro privilegiado em ações por improbidade administrativa àqueles detentores de foro criminal por prerrogativa de função e a segunda propondo restringir, formalmente, a utilização do inquérito civil público pelos membros do Ministério Público.
Pela proposta de alteração da Lei 4.898/65, de impedir o fornecimento de informações, o projeto foi batizado de lei da mordaça. Esse codinome é bastante sugestivo ao indicar o conteúdo da pretensão: impedir a livre manifestação do pensamento e o acesso do público à informação.
Na forma como está concebido, o projeto fere de morte um dos principais direitos inerentes à pessoa do homem: a liberdade
2. O DIREITO À LIBERDADE
Nas sociedades hodiernas o Direito à liberdade é ponto comum a todas as Constituições. A consagração desse Direito foi conquistada.
O destino do homem é ser livre. Ele sempre lutou pela liberdade. Assim fez Espartaco nos anos 70 antes de Cristo, ao amotinar-se contra a escravidão promovida pelo império romano. Os franceses rebelaram-se contra a tirania dos monarcas. O brasileiro enfrentou Portugal para tornar o Brasil livre, veja-se o exemplo de Tiradentes. O americano guerreou para ser livre da Inglaterra. O negro insurgiu-se, aqui e além-mar, para deixar de ser escravo.
Esse direito à liberdade, no dizer de Paulo Bonavides corresponde aos chamados direitos da primeira geração. Veja-se:
Os direitos da primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.
Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, logo após o desastre da II Guerra, está dito: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos."
A mesma declaração no art. 4º define liberdade como sendo o direito de poder fazer tudo o que não prejudique aos outros. Depois Kant disse: minha liberdade se estende até o ponto de compatibilidade com a liberdade dos outros.
3. A LIBERDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Dessarte, o conceito de liberdade passou a ser algo extremamente difícil, porque o homem livre deveria respeitar a liberdade do seu semelhante.
A liberdade, desse modo entendida, somente pode ser exercida em toda a sua plenitude se não atingir a liberdade de outrem. Quando ocorre o choque entre a liberdade de um com a liberdade do outro, ter-se-á a possibilidade da colisão de direitos ditos fundamentais.
O eminente Edilsom Farias, mestre pela UNB, assim define direito fundamental:
Uma das espécies representativa de positivação dos direitos é a constitucionalização dos mesmos. Deixam, então, eles de ser apenas reivindicações políticas para se transformarem em normas jurídicas. Para destacar essa mudança, a doutrina contemporânea vem dando preferência ao uso da locução direitos fundamentais, quando deseja fazer alusão àqueles direitos positivados numa constituição de um determinado Estado. A expressão direitos humanos tem sido geralmente reservada para ser adotada em documentos internacionais.
4. A COLISÃO DE DIREITOS
Esses direitos ditos fundamentais podem colidir. O conhecido constitucionalista português J.J. Canotilho expõe que haverá colisão entre os próprios direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte de um titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular.
Norberto Bobbio em seu livro Era dos Direitos também fala sobre a colisão de direitos fundamentais:
Quando digo que os direitos do homem constituem uma categoria heterogênea, refiro-me ao fato de que - desde quando passaram a ser considerados como direitos do homem, além dos direitos de liberdade, também os direitos sociais - a categoria em seu conjunto passou a conter direitos entre si incompatíveis, ou seja, direitos cuja proteção não pode ser concedida sem que seja restringida ou suspensa a proteção de outros.
Tudo isso dito para adentrar-se no assunto específico da chamada Lei da Mordaça. Porque, para os defensores do projeto de lei, estar-se-ia diante de uma norma garantidora da imagem, da honra, da vida privada e da intimidade das pessoas e para aqueles que são a ele contrários, estar-se-ia diante de uma norma impeditiva da liberdade de informação.
5. A COLISÃO DE DIREITOS NO PROJETO DE LEI
Como explanou-se, o projeto aparentemente traz uma perspectiva de colisão de direitos fundamentais, mas, como demonstrar-se-á, sequer há colisão de direitos. A proposta em si é inconstitucional.
Não poderia haver nome mais bem dado a essa lei: Lei da Mordaça. Porque ela não pretende proteger a honra e a intimidade de ninguém. Na verdade o que ela visa é impedir o acesso da população à informação.
Essa lei pretende, dentre outras coisas, impor sanções por:
"revelar o magistrado, o membro do Ministério Público, o membro do Tribunal de Contas, a autoridade policial ou a autoridade administrativa, ou permitir, indevidamente, que cheguem ao conhecimento de terceiro ou aos meios de comunicação fatos ou informações de que tenha ciência em razão do cargo e que violem o sigilo legal, a intimidade, a vida privada, a imagem e a honra das pessoas."
Tal dispositivo é redundante e desnecessário porque a honra, a intimidade, a vida privada, a imagem e o sigilo das investigações se encontram protegidos pela legislação existente.
6. A DESNECESSIDADE DE NOVA REGULAÇÃO
A honra e a intimidade estão protegidas pelos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal, os quais tratam dos crimes de calúnia, injúria e difamação, respectivamente. Em caso de a ofensa se dar por meio da imprensa aplicar-se-á a Lei 5.250, de 9 de fevereiro de 1967.
O sigilo profissional é o bem jurídico tutelado pelo artigo 325 do Código Penal que diz: "Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação". Estipulando uma pena de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
Assim também está devidamente resguardado o sigilo do Inquérito Policial pelo art. 20 do Código de Processo Penal que determina: A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.
Se alguém for caluniado, difamado ou injuriado, que se processe o ofensor pelas regras do Código Penal ou da Lei de Imprensa, atualmente existentes.
Mas, o projeto de lei não quer isso. Ele quer calar aqueles que detém a informação e em via transversa impedir o acesso do público a ela.
No caso, estando o Juiz, o Promotor e o Delegado impedidos de manifestarem opinião sobre o andamento de autos sob as suas responsabilidades, a rigor a imprensa não tomará conhecimento dos fatos e não os repassará ao público por meio dos jornais, das estações de rádio e da televisão.
Para exemplificar: caso a lei seja aprovada e sancionada, um promotor de justiça que esteja apurando desvio de verbas praticado por um administrador municipal ou estadual e comprove que realmente houve o desvio dos recursos, não poderá repassar a informação para a imprensa, porque, de acordo com o projeto o Promotor será apenado de seis meses a dois anos de detenção e multa; além do que ainda poderá perder o cargo e ficar inabilitado para o exercício de qualquer outra função pública pelo prazo de três anos.
Essa proposta atinge em cheio a todos os membros do Judiciário, do Ministério Público e da carreira policial porque correm o risco de perder o cargo público e ainda ficarem impedidos, pelo prazo de três anos, de exercer outra função pública. É a instalação do terror legal.
Por essa proposta, o investigado poderá ter desviado todo o dinheiro da Prefeitura, mas ninguém saberá. Porque o Promotor que oferece a denúncia não dará a informação. O juiz que instrui a ação penal também não poderá fazê-lo. E o advogado não divulgará porque não é de seu interesse dar notícia das acusações sofridas por seu constituinte.
7. A INCONSTITUCIONALIDADE DO PROJETO DE LEI
Estando protegida a honra e a intimidade pela legislação vigente a tentativa de amordaçar os juízes, membros do Ministério Público e delegados, afronta o direito constitucional à informação.
É verdade que também é constitucional a honra e a privacidade, mas tratam de direitos destinados ao cidadão enquanto particular, o que não pode se sobrepor ao interesse maior de toda uma comunidade de ser informada.
O citado Edilsom Farias, dá a sua opinião da seguinte forma:
A colisão de direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à imagem versus a liberdade de expressão e informação significa que as opiniões e fatos relacionados com o âmbito de proteção constitucional desses direitos não podem ser divulgados ao público indiscriminadamente. Por outro lado, conforme exposto, a liberdade de expressão e informação, estimada como um direito fundamental que transcende a dimensão de garantia individual por contribuir para a formação da opinião pública pluralista, instituição considerada essencial para o funcionamento da sociedade democrática, não deve ser restringida por direitos ou bens constitucionais, de modo que resulte totalmente desnaturalizada.
Se há excessos, o que se admite, devem ser coibidos na forma da lei atual, impondo ao transgressor as sanções nela previstas. Cercear, pura e simplesmente, a liberdade de informação é afrontar a Constituição Federal e a consciência de todos os brasileiros.
8. CONCLUSÕES
Novamente se vê o ataque por meio da censura à liberdade de informar. Nos chamados anos de chumbo, nas décadas de 60 e 70, os censores a fizeram muito bem, apoiados nos atos institucionais.
As proposições do projeto de lei não se revelam destinadas a defender a honra e a intimidade das pessoas, mas a encobrir delitos, protegendo criminosos. É possível que a população eleja um mal versador do dinheiro público porque a lei impedirá o acesso dos cidadãos à informação.
Dessa forma não se está diante de uma norma que garanta a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem do ser humano, mas sim diante de uma norma claramente inconstitucional porque impede o direito fundamental do homem à informação. A proposta conforme concebida é uma maneira legal de censura, sem apoio na Constituição.
Resistir é o quanto basta, não se deixar curvar diante das vicissitudes. Impedir o retrocesso que se pretende impor aos brasileiros. Deve-se sempre ter em mente as palavras de Fernando Pessoa: A liberdade vale a pena mesmo que o pão seja pequeno.
BIBLIOGRAFIA
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 4ª ed., 1993.
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2ª ed., 2000.
KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. São Paulo: Ícone Editora, 1993.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 6ª ed., 1993.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992.