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Reflexões sobre a "Lei da Mordaça"

Agenda 01/12/2000 às 00:00

O propósito do presente artigo é o de tecer considerações críticas acerca do Projeto de Lei Nº 65, de 1999, vulgarmente conhecido como a "Lei da Mordaça", em iminente aprovação pelo Congresso Nacional, que altera dispositivos da Lei Nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965, com a redação dada pelas Leis Nºs 6.657, de 1979, e 7.960, de 1989; da Lei Nº 8.429, de 1992, e da Lei Nº 7.347 de 1985.

Preliminarmente, examine-se o teor de parte do Projeto em questão, verbis:

"Art. 3º Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

(...)

l) à liberdade de manifestação do pensamento;

m) à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem;

n) ao direito de não- discriminação;

o) ao direito de ampla defesa, e ao contraditório;

p) à proibição da escravidão e da servidão;

q) aos direitos e garantias constitucionais e legais assegurados aos acusados."

"Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:

(...)

j) revelar o magistrado, o membro do Ministério Público, o membro do Tribunal de Contas, a autoridade policial ou administrativa, ou permitir, indevidamente, que cheguem ao conhecimento de terceiro ou aos meios de comunicação fatos ou informações de que tenha ciência em razão do cargo e que violem o sigilo legal, a intimidade, a vida privada, a imagem e a honra das pessoas; (...)"


Em verdade, o cerne da polêmica reside na adição de duas ("l" e "m"), das cinco novas alíneas acrescentadas ao artigo 3º, e de uma ("j") das duas novas alíneas no artigo 4º, da Lei 4.898, que regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa civil e penal, nos casos de abuso de autoridade.

Antes de entrarmos diretamente no mérito da proposta, interessante tecer algumas considerações conceituais acerca das construções legais que ela pretende alterar.

Contraditória e paradoxalmente, as disposições do artigo 220 da Constituição Federal de 1988 e seu parágrafo primeiro, pois neles se chocam dois conceitos completamente distintos e, nos mostram os fatos, inconciliáveis, mas que, a nosso juízo, por deficiência empírica, são considerados pela doutrina como complementares, quais sejam, a) a não-restrição da manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo e b) a liberdade plena de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social. A observação e experiência diárias também nos têm feito entender ser impossível a coexistência pacífica dos incisos IX e X do artigo 5º da Carta Magna.

Apelamos à recordação do leitor para trazer à sua memória a imensa e repudiosa quantidade de absurdos, atentatórios à honra e à vida privada dos indivíduos, praticada pela imprensa sob o permissivo signo do infeliz – forçoso reconhecer – dispositivo constitucional do §1º do artigo 220 da CF/88, que estabelece a total e irrestrita liberdade de imprensa em nosso país.

Após breve exegese do texto legal, logo percebe-se e repudia-se as nuanças que deixam transparecer a repressão à liberdade de imprensa, coisa ainda muito fresca e ressentida na memória da nação, por força das arbitrariedades cometidas durante o período totalitário da ditadura militar, onde imperaram a intolerância e o radicalismo.

De volta aos dias atuais, e havendo hoje a situação da imprensa antes oprimida mudado diametralmente, reflita o leitor, detidamente, sobre as conseqüências penosas daqueles que, sem terem provadas através de sentenças nos competentes processos judiciais as alegações contra si dirigidas, conforme preceitua a mesma Constituição, no inciso LVII, de seu artigo 5º, têm publicamente execradas sua intimidade e sua vida profissional e privada, vendo-se prematuramente condenados pela ingênua opinião pública, habilmente conduzida pela inescrupulosa imprensa, sempre ansiosa por aumentar seu faturamento.

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Ademais, não se tem notícia de que uma, só uma vez, tenha a imprensa respeitado os limites impostos à sua liberdade, fazendo mesmo crer que, inobstante constitucionalmente estabelecidos nos incisos V e X do artigo 5º, não têm, na prática, a menor sombra de vigência. Bom lembrar que, via de regra, esses abusos sempre acabam em processos judiciais, que lotam os juízos de todo o país, e lá se arrastam por anos. Mais sério ainda é saber que, previamente, nos custos da tiragem, os editores dos jornais caluniosos embutem o valor presumido das indenizações que terão de pagar pelos crimes cometidos à honra das vítimas. Recorde-se, também, os altos índices de audiência que os programas televisivos sensacionalistas rendem aos concessionários desses meios de comunicação. Já em 1957, refletia Carnelutti sobre esse incível espetáculo promovido pela imprensa: "...Não tanto o público que enche os tribunais ao inverossímil, mas a invasão da imprensa, que precede e persegue o processo com imprudente indiscrição e não de raro descaramento, aos quais ninguém ousa reagir, tem destruído qualquer possibilidade de juntar-se com aqueles aos quais incumbe o tremendo dever de acusar, de defender, de julgar. As togas dos magistrados e dos advogados, assim, se perdem na multidão. Sempre mais raros são os juízes que têm a severidade necessária para reprimir esta desordem."

Vê-se, pois, que o delito é, além de doloso, altamente lucrativo, bem como ofensivo a todo senso de justiça que deveria inspirar a feitura de qualquer lei. Em tempo, essa triste espécie de espetáculo que nos chega todos os dias aos olhos e ouvidos parece fazer-nos recordar da política de panis et circensis da decadente Roma Antiga.

Com propriedade ensina o pensador argentino Carlos Bernardo González Pecotche, criador da Ciência Logosófica, que "a liberdade, que é fundamento essencial da vida, forma o vértice do triângulo cuja base descansa no dever e no direito. Frente a este ternário que plasma a síntese da responsabilidade humana, haverá que alçar a consciência dos homens e fazer que ela se manifeste em todo seu esplendor e máxima potência." E acrescenta que a livre exposição das idéias é sinal inconfundível de progresso e civilização, mas ressalva que isso ocorre somente "quando elas tendam para o bem e constituam um sustentáculo para a solução dos problemas ou para o aperfeiçoamento das leis e das normas vigentes na sociedade..."

Então, indaga-se: que liberdade é essa, que se pode exercer sem consciência, e com claros intuitos comerciais e difamatórios? Deveria ela estar amparada por mandamento legal, e – o que é mais grave – constitucional?

Não se pode legar liberdade a quem não demonstra ter a consciência e responsabilidade para exercê-la sem tergiversá-la. Esse ilustre pensador e humanista lança ainda uma reflexão, que, pensamos ser ora muito oportuna: "A rigorosidade das leis é, em muitos casos, contraproducente e ocasiona maiores transtornos e inconveniências à sociedade que os que tinha antes de que elas existissem. Tudo isso é porque não se contempla, antes de sancionada a lei, quais são os males que corrige e quais os que aparecem com ela."

Impossível, portanto, a coexistência pacífica das alíneas "l" e "m", do artigo 3º, da Lei 4.898, uma vez que, no plano moral, perde o direito à liberdade aquele que dela faz uso irresponsavelmente. Que liberdade se pode legar a quem demonstra não ter responsabilidade e consciência?

Assim, cabe salientar dois prejuízos advindos da inclusão da alínea "j" no artigo 4º da "Lei da Mordaça".

Em primeiro lugar, pode-se ver, ao fundo, na intenção das casas legislativas, cuja maioria dos membros é assídua infratora da legislação que produz, o pensamento de coibir ou intimidar o magistrado, fazendo calar e tramitar a portas e ouvidos cerrados os processos (a que eventualmente são sujeitos), legítimos instrumentos públicos de apuração da verdade e, também, de satisfação aos cidadãos do exercício que se tem feito da justiça. Estando o magistrado obrigado, por lei, a manter sigilo das informações a que tenha acesso em razão do cargo que ocupa, seriam-lhe abertos os flancos a atentados contra a sua autonomia, enquanto julgador, por autoridades de maior hierarquia que, sabe-se, por vezes têm interesse em que uma ou outra causa tenham determinado desfecho, atendendo a favores, fins pessoais, políticos ou favores.

Dir-se-ia mais, ainda: sob este ângulo, a "Lei da Mordaça" constitui verdadeiro atentado ao princípio da publicidade dos atos processuais, internacionalmente consagrado entre os institutos do processo.

Em segundo lugar, relevante é refletir sobre a tão pretendida exclusão dos membros do Ministério Público dessa mordaça legal, eis que, por reiteradas vezes, no afã, talvez, de exercer os seus misteres, têm se valido da luz dos refletores para conseguir a condenação extraprocessual de investigandos ou denunciados que, a final, foram judicialmente inocentados de qualquer ocorrência.

Impossível negar que os arautos da preocupação de hoje são os mesmos que, em passado não muito distante, compactuaram com a censura e agora visam obstar principalmente a atuação do Ministério Público que atualmente vem desempenhando função social destacada, denunciando Deputados, Senadores, Procuradores, membros do Poder Judiciário e administradores públicos ímprobos.

Mas, é evidente, vários membros dessa prestigiosa classe de operadores do Direito têm feito um mau uso dos meios de imprensa, mormente nos processos sujeitos à competência de Tribunais do Júri, em cujo Conselho de Sentença funcionam juízes leigos, cidadãos que representam o povo, e que, por certo, não estão proibidos de ler ou assistir em suas casas os espetáculos de escárnio público promovidos contra os acusados dos crimes que, depois, deverão julgar. Não se estaria tecendo tal crítica se, acaso, não usufruíssem os promotores de justiça das cores fortes que a mídia proporciona com o intuito fazer prevalecer, a qualquer custo, as teses de seu jus accusationis, olvidando-se do seu dever de custos legis. Assim, é notório, conseguem a condenação do réu muito antes de se ter sequer iniciado seu julgamento. Essa conduta de muitos membros do Ministério Público constitui-se em verdadeira lesão aos princípios do due process of law, do in dubio pro reu e de seu corolário, que é a presunção de sua inocência até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; e também constitui ofensa ao contraditório e ao sagrado direito de defesa.

Ora, o Ministério Público não deveria, enquanto titular da ação penal, porque não o tem feito com justiça, usar dos meios de comunicação como tem usado. Temos que, para quem extrapola os meios dos autos processuais, influindo de maneira tendenciosa na decisão de um corpo de jurados, ou pressiona publicamente um juiz, não pode ser estendido o uso da imprensa.

Dessarte, para conciliar os dispositivos e choque, sugere-se que seja proposta a imposição de proibição às autoridades de manifestarem-se opinativamente, com parcialidade ou esboço de impressões sobre as informações ou fatos de que tenham notícia em função de seus ofícios, mas não a manifestarem-se de forma reta, imparcial e profissional. É imperioso que, em respeito aos princípios constitucionais e, mais que isso, humanos, seja garantido aos cidadãos o direito à informação precisa, verdadeira e imparcial, e não à informação manipulada e tendenciosa que manifestam, por vezes, os agentes públicos que têm acesso aos meios de comunicação. Assim, pensamos, garantir-se-ia, além do direito à inviolabilidade dos réus em processos judiciais, a lisura de seus procedimentos, postos a público dentro dos limites do direito à informação, e não com vistas ao espetáculo.

Frente a tão flagrante hostilização dos direitos individuais, e olhando para as causas disso tudo, oportuno seria até indagar se a mordaça não estaria mais bem colocada na grande boca da imprensa que na dos operadores do direito.


Bibliografia

PECOTCHE, Carlos Bernardo González. Colección de la Revista Logosofia, Tomo III, p. 199. Ed. Logosófica : São Paulo, 1982;

CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal, p.20. Tradução: José Antonio Cardinalli. Conan : São Paulo, 1997.

Sobre o autor
João Frederico Wirth Chaibub

acadêmico de Direito na Universidade Federal de Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAIBUB, João Frederico Wirth. Reflexões sobre a "Lei da Mordaça". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 48, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/156. Acesso em: 23 dez. 2024.

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