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"A PM vai morar na favela"

Agenda 01/09/2000 às 00:00

A frase acima é o título da matéria da Seção Brasil - Perfil, p. 46/8, edição n.º 92, ano II, da conceituada revista semanal "Época", da lavra do senhor LUIS EDUARDO SOARES, que nada mais é do que o hipermegasuperpoderoso Coordenador de Segurança, Justiça, Defesa Civil e Cidadania do governo de Anthony Garotinho do Estado do Rio de Janeiro.

As idéias do perleúdo antropólogo se nos antolham desprovidas de lógica ou ao menos demonstram uma verídica ignorância sobre à realidade das PM do Brasil e, principalmente, da PM do Rio, com a devida e maxime venias.


Ora, jamais havia visto tamanho absurdo, luminar idéia ou panacéia da segurança pública, ou seria uma brilhante saída para um problema sem aparente solução, pois que o perolífero antropologista pretende criar batalhões de PM nas mais de seiscentas favelas dos morros do Rio de Janeiro ou onde quer que seja, "visando dar segurança aos favelados em virtude haver mais de 6000 cargos vagos naquele Estado (...) vez que não seria exigido o 2.º grau de escolaridade na seleção de pessoal, (...) eles se conhecem uns aos outros pois já moram lá... e se contentariam com um salário-mínimo(...)", etc. e tal. ???

É a mais pura militarização institucional dos grupos para-militares lá existentes, senão a própria institucionalização dos soldados do tráfico. Com efeito, ter-se-á uma milícia em cada morro e em cada favela contra às polícias do Estado, a despeito de já existir, de fato, mas agora será de fato e de direito. E, segundo ele, será um contigente eficiente e eficaz, mormente por não se lhe exigir a escolaridade mínima. Logo, já se pode supor o grau de legalidade, hierarquia, disciplina, civilidade e de respeito aos direitos e à lei, que eles tão bem conhecem face à deontologia que recebem, diuturnamente, nas favelas e morros do Rio de Janeiro.

Se a idéia vinga, imagine-se os demais excluídos do Brasil (graças ao sociólogo FHC) com suas respetivas milícias (os sem-teto, sem-terra, sem-salário, sem-educação e sem-emprego) A juridicidade alternativa existente e a lei do silêncio dos morros serão substituídas pela legítima, legal e positiva. Seria hilário se não fosse estarrecedor.

Entende ele que seja possível um cidadão viver honesta e dignamente com míseros R$ 136,00. Ora, o jovem favelado que é recrutado e compõe o exército de traficantes da favela, não ganha um salário mínimo para ser soldado, avião ou mula do tráfico. Assim como os outros, que não foram recrutados, silenciam, nada sabem, nada ouvem e nada vêem, para se manterem vivos, apenas, até que uma bala perdida dê cabo de suas vidas.

Se há mais de 6000 cargos vagos naquele estado, como assevera ele, que sejam criados empregos de agentes comunitários de saúde, de educação, assistentes sociais e de lazer e se invista também no campo de saneamento básico nessas favelas e morros, para dar-lhes um pouco de cidadania e de dignidade. Ou então, como há recursos de sobra que dariam para suportar até mais de 4 300 salários mínimos, que se invista na melhoria dos vencimentos e salários das polícias militar e civil, condignamente, bem como em reciclagem, treinamento e cursos de pessoal e aquisição de viaturas e armamentos modernos.

Ademais, se a Military Police de Boston copiou-lhe a idéia e Clinton está difundindo-a pelos States, é preciso lembrar que um Patrulheiro de lá (= PM daqui) aufere em média U$ 3.500,00 dólares; enquanto o nosso PM recebe R$ 350,00 reais, em média. Com efeito, com um salário desses o PM já está morando na favela e o distinto senhor coordenador não sabe ou finge não saber. É uma idéia inóxia, inerme e inane, para não dizer infantil e/ou de um garotinho, apenas.

O favelado não precisa de polícia para ser feliz ou tornar-se cidadão, coisa que ele não conhece devido à exclusão social a que fora submetido e que lhe impuseram certos desgovernos. O favelado necessita de cidadania sim, é bem verdade. Mas também e principalmente de emprego digno e trabalho honesto, para não se deixar seduzir pela grana alta e fácil do tráfico de drogas e contrabando de armas. Precisa mais ainda de habitação e moradia dotadas de saneamento básico, de educação, de saúde, de assistência médica, hospitalar e social e de lazer, para que possa buscar a segurança de ser reconhecido como cidadão, de ser cidadão e ter cidadania e não subespécie da raça humana.

E, para isso, não é a polícia apenas a única responsável. Essa não é e nem pode ser sua missão, não com os parcos, míseros e irrisórios vencimentos, verdadeiros salários de fome à mercê dos corruptos e corruptores, com equipamentos, petrechos, aprestos, viaturas e armamentos obsoletos, enquanto os soldados do tráfico não sofrem desse obsoletismo. É uma luta cruel e desigual, para o sofrido PM.

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Resta claro que, para esses doutos senhores defensores da mirabolante idéia, o PM não passa de lixo descartável (nem reciclável é) e de vida barata, para ser ceifado pelos soldados do tráfico de drogas, entorpecentes e de armas, que também são descartáveis para os seus senhores barões e comandantes do tráfico, que nem moram e nem estão nas favelas. E estes senhores sequer sabem onde eles estão, ou saberiam? Não há planos e nem operações de combate e/ou ações que visem coibir aos barões do tráfico e aos comandantes desses jovens soldados das favelas e dos morros.

De lembrar, por fim, que os favelados(só alguns poucos, é claro) não consomem a droga, posto faltar-lhes grana para esse fim: usuário de drogas. E aqueles que mantêm esse comércio recrudescente e altamente rentável não moram e nem vivem nessas favelas, assim como seus barões e comandantes. Estes recrutam os jovens da favela (que a polícia poderá, a qualquer momento matá-los - são descartáveis, lembram?)que à saciedade saciam a sede dos filhinhos de papai das classes média, média-alta e alta, os mesmos que o Sistema e as elites consideram dependentes de drogas, portanto, débeis, dementes e doentes (coitadinhos!). Mas a culpa está na favela, que não produz, não fabrica, não refina, mas comercia e vende aos coitadinhos.

Assim como as armas que matam – mas o Sistema e as Elites não as proíbem. Pelo contrário, legalizam seu porte, seu uso, sua fabricação e seu comércio. Assim como os excessos de velocidade e de álcool vão continuar ceifando mais e mais vidas – os carros, por sua vez, são cada vez mais potentes, ainda que a velocidade máxima permitida seja de até 120Km/h. Então, o tráfico de drogas, que ainda é exógeno, vai muito bem obrigado! Os portos, aeroportos e fronteiras estão livres para abastecerem ao grande mercado livre: as favelas e morros das grandes urbes. Eles são os chamados shopping center´s das drogas e das armas de fogo. E quem tem condições de freqüentá-los senão os coitadinhos das elites.!!?? A quem interessa esse mercado de lucro fácil e recrudescente?

Até quando se vai tentar solucionar aos problemas apenas buscando-se lenitivos para os efeitos e nunca atacando-se suas causas!? Quando a vida humana terá realmente seu valor, axiologicamente falando?

Sobre o autor
Joilson Gouveia

Bacharel em Direito pela UFAL & Coronel e Transferido para Reserva Remunerada da PMAL.Participou de cursos de Direitos Humanos ministrados pelo Center of Human Rights da ONU e pelo Americas Watch, comendador da Ordem do Mérito Municipalista pela Câmara Municipal de São Paulo. Autor, editor e moderador do Blog D'Artagnan Juris

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOUVEIA, Joilson. "A PM vai morar na favela". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1589. Acesso em: 22 nov. 2024.

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