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A imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro: absoluta ou relativa?

Agenda 01/10/1999 às 00:00

Na origem das relações entre os povos estrangeiros, a imunidade de jurisdição tinha efeito inquestionavelmente pleno. Há registros de que comerciantes viajantes do Século V possuíam seus próprios magistrados no exterior. Com o fim do período medieval e a partir da instauração do Estado fortemente assentado em bases territoriais, ensina-nos GUIDO SOARES1, a imunidade absoluta era explicada pelo princípio da extraterritorialidade, pelo qual criou-se a ficção de que o lugar em que se situa uma embaixada ou órgão representativo do Estado estrangeiro é considerado território de seu país, em situação de absoluta não submissão à lei local. Remonta aos idos de 1815 a notícia da edição do primeiro tratado multilateral relativo aos direitos e prerrogativas dos entes de direito público externo em território alienígena.

De toda sorte, qual seja o tratamento conferido pelos diversos povos aos entes estrangeiros que em seus territórios adentram, o certo é que a problemática da imunidade do Estado estrangeiro nunca foi pacífica nem teve tratamento equânime. Desde sempre o direito diplomático permanece em constante debate para fixar um norte definitivo acerca do conteúdo e alcance da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro. Entre nós, o tema ganha contornos especiais no hodierno, haja vista a existência de uma forte tendência interna, até mesmo de órgãos governamentais brasileiros, para impor a tais entes as imposições normativas de nosso país.

As grandes mudanças de nosso século foram determinantes para a alteração da mentalidade da independência total das representações do Estado em solo estrangeiro. Após a Segunda Guerra Mundial e o posterior incremento das relações comerciais e do intercâmbio globalizado, surgiu-se a necessidade de os Estados criarem diretrizes para o tratamento das questões diplomáticas. Em 18 de abril 1961, 81 países soberanos fizeram-se representados em Viena, ocasião em que, visando difundir normas que assegurassem o eficaz desempenho das missões diplomáticas, aprovaram o texto da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas, a qual restou incorporada ao direito positivo brasileiro pelo Decreto nº 56.435/65. Já em 24 de abril de 1963, foi aprovada a Convenção de Viena sobre as Relações Consulares, promulgada no Brasil com o Decreto nº 61.078/67 e cuja finalidade também era "assegurar o eficaz desempenho das repartições consulares, em nome de seus respectivos estados...".

Ambas as Convenções asseguram amplo rol de garantias aos agentes de missões diplomáticas e repartições consulares. No âmbito das missões, seus membros são fisicamente invioláveis e gozam de ampla imunidade de jurisdição penal, civil e tributária. Por muito tempo, acreditou-se que as regras estatuídas pelas Convenções em apreço teriam o condão de conferir aos Estados estrangeiros imunidade total em face da jurisdição do país em que situam suas missões diplomáticas. Sob essa ótica e nas palavras de J. F. REZEK2, ainda prevalecia a "noção da costumeira regra sintetizada no aforismo par in parem non habet judicium ", ou seja, "nenhum Estado soberano pode ser submetido, contra sua vontade, à condição de parte perante o foro doméstico de outro Estado."

Todavia, a teoria clássica da imunidade absoluta do Estado estrangeiro já não mais se sustenta com o mesmo vigor do passado, tendo sofrido consideráveis modificações com o passar dos anos. De fato, a crescente globalização e o avanço das relações e atividades comerciais entre os Estados determinaram uma atenuação à figura da imunidade total da jurisdição estrangeira. Assim, na medida em que se tornou corriqueira a prática de atos tipicamente particulares por parte dos Estados estrangeiros, passou-se a se atentar para a disparidade e injustiça de tratamento para com os jurisdicionados nacionais, admitindo-se a submissão do Estado aos órgãos judiciais locais, em casos excepcionais.

Destarte, a superação da teoria da imunidade absoluta tem como pilar o entendimento de que os privilégios de pessoas e locais diplomáticos são concedidos em virtude da função que exercem ou da sua representatividade, mas não tem a plenitude de abranger os atos praticados pelo Estado estrangeiro quando os realiza como se particular fosse. Com efeito, tornou-se assente na doutrina e na jurisprudência a relativização da imunidade de jurisdição, não em relação aos agentes e missões diplomáticas, mas sim, em relação ao próprio Estado estrangeiro.

Nesse particular, assume relevância ímpar a separação da imunidade diplomática e consular, confiada a determinados entes físicos que prestam serviços nas organizações internacionais, daquela imunidade pretendida pelo próprio Estado estrangeiro. Não restam dúvidas que as pessoas físicas permanecem abrangidas pelos privilégios e imunidades diplomáticas concedidas pelas Convenções de Viena de 1961 (servidor diplomático) e 1963 (serviço consular), regalias essas devidamente incorporadas ao direito positivo doméstico, pelos Decretos nºs 56.435/65 e 61.078/67. Os beneficiários da imunidade são os agentes diplomáticos, membros da estrutura administrativa, técnica e doméstica. O agente diplomático, por possuir relação jurídica com o próprio Estado de origem, goza do benefício da imunidade de jurisdição penal, cível, tributária e trabalhista. A existência da imunidade absoluta nesses casos é inquestionável, estando a sujeição do agente diplomático à legislação pátria jungida à prévia e expressa renúncia.

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Do outro lado, contudo, resta a combatida existência de uma imunidade supra legem do próprio Estado estrangeiro que, na ausência de norma internacional específica, foi originada em sede jurisprudencial, especialmente em foro trabalhista. As decisões do Supremo Tribunal Federal eram no sentido de reconhecer a imunidade do Estado, apesar de não prevista nos Tratados e Convenções, com base em uma antiga regra consuetudinária. Essa tese, entretanto, foi revista, a partir de decisão proferida por aquela Corte no famigerado caso "Genny"3, onde foi proferido o clássico voto vista do então Ministro FRANCISCO REZEK, que determinou um novo norte de orientação para o assunto, afastando a imunidade da República da Alemanha e sujeitando-a ao polo passivo de reclamatória trabalhista.

Neste julgado, o então Ministro REZEK, traçou uma clara evolução do instituto da imunidade de jurisdição para concluir pela inexistência da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro em relações trabalhistas, com arrimo no pensamento de que não há mais subsídios para estatuir sobre a imunidade como antes se vinha fazendo, eis que a partir de 1972, com a edição da Convenção Européia da Basiléia 4 sobre as imunidades do Estado, reafirmada por leis dos Estados Unidos da América 5 e do Reino Unido 6, restaram introduzidos no campo jurídico internacional flexibilizações na teoria da imunidade absoluta do Estado estrangeiro.

Com efeito, entendeu-se pela inexistência de suporte para a exclusão dos entes de direito público à jurisdição doméstica em casos que envolvam os atos de pura gestão, abandonados que são das normas das Convenções Internacionais, na medida em que afastados da rotina puramente diplomática e/ou consular (os chamados atos de impérios que ainda se vêm protegidos pela imunidade). Aliás, quanto a esse ponto, é válida uma breve mas imprescindível incursão na distinção entre os atos iure imperi e iure gestionis, pela qual se determinaria a sujeição ou não do Estado estrangeiro à jurisdição local.

A doutrina internacionalista clássica define aqueles primeiros como sendo todo ato praticado em nome da soberania do Estado estrangeiro, fazendo valer sua posição de agente diplomático, bem como aqueles decorrentes de contrato firmado em nome do próprio Estado. Vale dizer, é o ato com o qual o agente diplomático desempenha o ofício que lhe foi confiado, interligado à rotina puramente diplomática-consular, a fim de estreitar e manter as relações com o país acreditado.

Por seu turno, os atos de gestão seriam aqueles onde o Estado age como particular, desenvolvendo atividades estranhas ou desligadas ao fiel desempenho das respectivas funções diplomáticas. MELLO BOLSON 7 ensina que "quando um estado exerce atividade que, por natureza, se acha aberta a todos, coloca-se ele fora de sua função, não sendo possível admitir-se que interesses unilaterais de um Estado sirvam-se da norma internacional". Em virtude de tal, nesses casos, o Estado se equipara, perante a ordem jurídica nacional, ao próprio Estado nacional e seus indivíduos.

A grande finalidade desta distinção nos dia de hoje é justamente para efeitos de fixação ou não da jurisdição pátria. Isso porque, existe uma forte tendência, impulsionada pelo julgado do Supremo Tribunal Federal, de se restringir a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro tão somente para aqueles litígios que envolvam ou decorram dos chamados atos de império, devendo-se resolver as questões de atos de gestão em conformidade com as normas internas.

De certo, com bem ressalta GUIDO SOARES 8, o voto do então Ministro REZEK motivou a primeira decisão do Supremo Tribunal Federal em que se rejeitaram as alegações de imunidade de jurisdição, lançando as bases para que a jurisprudência brasileira se coloque de acordo com a tendência universal de restringir, o quanto se possa, as imunidades de jurisdição, de maneira muito particular nas relações decorrentes dos atos ato de gestão, a fim de evitar-se eventual denegação de justiça, especialmente se considerarmos a situação de hipossuficiência do jurisdicionado em face ao ente público externo.

O primeiro grande reflexo do entendimento do Supremo Tribunal Federal foi recentemente trazido à baila pelo Superior Tribunal de Justiça 9, no julgamento de recurso em ação de execução fiscal movida pelo Município do Rio de Janeiro contra o Japão, visando receber créditos relativos a IPTU e taxas de limpeza e iluminação pública. Em erudito e bem fundamentado voto, o em. Ministro GARCIA VIEIRA reiterou o entendimento de que "modernamente se tem reconhecido a imunidade ao Estado Estrangeiro nos atos de império, submetendo-se à jurisdição estrangeira quando pratica atos de gestão".

Ao assim se posicionar, o Superior Tribunal de Justiça consagrou a posição de que o Poder Judiciário Brasileiro é competente e deve julgar litígio instaurado contra Estado estrangeiro por força da prática de atos de pura gestão, bastando que a ação seja originária de fato ocorrido ou ato praticado em solo pátrio. A novidade em relação ao julgado do Supremo Tribunal Federal é que o voto acima citado se deu em lide tributária e não trabalhista, o que revela a tendência de abertura da via judicial para uma grande vala de processos envolvendo os Estados estrangeiros, decorrente do atos iuris gestionis.

Vale dizer, resta superado perante a jurisprudência brasileira o dogma da imunidade absoluta do Estado estrangeiro. Dessa forma, pode-se afirmar que o Estado estrangeiro, sem embargo de sua soberania, pode ser sujeito passivo nas lides oriundas de controvérsias que envolvam os chamados atos de gestão, ocasião em que ser-lhe-á aplicado o direito positivo interno, haja vista que não lhe é mais conferida a imunidade absoluta. Tal relativização da teoria da imunidade, é importante que se diga, em nada modifica a situação da imunidade diplomática e consular prevista nas Convenções de Viena de 1961 e 1963, regularmente incorporadas ao direito positivo brasileiro.


NOTAS

1 "Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional" – Jan/Mar 1992

2 "Curso Elementar de Direito Internacional Público", Editora Saraiva, 5º Edição, pág. 176

3 Apelação Cível nº 9.696/SP, RTJ 133/159

4 European Convention on State Immunity, 16 de maio de 1972

5 Foreign Sovereign Immunities Act, 21 de outubro de 1976

6 State Immunity Act,, 25 de abril de 1978

7 "A imunidade de Jurisdição do Estado", Revista LTR nº 35, pg. 600

8 op.loc. cit

9 publicado no DJU 10.5.1999

Sobre o autor
Luiz Paulo Romano

advogado em Brasília, especializado em Direito Internacional Privado pela Academia de Direito Internacional de Haia (Holanda)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Luiz Paulo. A imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro: absoluta ou relativa?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. -1370, 1 out. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1638. Acesso em: 2 nov. 2024.

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