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Reforma agrária: titulação coletiva de populações tradicionais do Pará.

Elementos de experiência para um novo paradigma

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Agenda 01/10/2000 às 00:00

O Estado do Pará como é de conhecimento de todos é o Estado brasileiro onde existem um dos maiores índices de conflitos pela posse da terra, mas recentemente vem construindo uma história que merece registro, acordando para um processo histórico muito rico, que podemos vivenciar e construir muito de perto exercendo a função de Diretor do Departamento Jurídico do ITERPA- Instituto de Terras do Estado do Pará.

Este novo, pode ser destacado através da Titulação Coletiva de áreas de remanescentes de quilombos(1) e através da concessão de direito real de uso para populações caboclas. Que faremos um breve resumo dos procedimentos legais que norteiam os referidos processos legais de titulação destas comunidades. Apontando, ao final, a possibilidade de tais procedimentos poderem ser adotados como elementos para a construção de um novo paradigma para o equacionamento da questão ambiental com os problemas de democratização do acesso à terra na Amazônia.


REMANESCENTES DE QUILOMBOS

A nossa intervenção antes de tudo se dirige a divulgar uma política que vem dando certo, em que se compreende o processo de titulação das terras de remanescentes de quilombos além de um problema de resgate histórico, como um problema fundiário e de política agrária.

O Estado do Pará com a experiência de líder nacional no processo de titulação quilombola pode firmemente dizer que o caminho dos remanescentes antes de tudo deve ter o tratamento inicial como política de agricultura familiar, pois já temos diversas áreas demarcadas e tituladas em nome de comunidades remanescentes de quilombos, e esta titulação permite maior segurança e coesão de grupo, fortalecendo os processos de organização social e cultural.

Temos vinte e oito comunidades em todo o Estado, nos municípios de Oriximiná, Gurupá, Alenquer, Vizeu e Ananindeua que conquistaram o reconhecimento de seu direito à terra, com mais de 170.800,00 ha ( cento e setenta mil e oitocentos hectares) já titulados.

Com a parceria constante do Ministério da Política Agrária e Agricultura Familiar, através do INCRA foram contempladas as comunidades Boa Vista, 1.125 ha e beneficiou 112 famílias, no município de Oriximiná; Pacoval, tem 7.472 ha e beneficiou 115 famílias, município de Alenquer; Água Fria, 557 ha e beneficiou 115 famílias, no município de Oriximiná; Trombetas, reuniu os títulos expedidos pelo INCRA e ITERPA com 80.877,0941 ha beneficiando 138 famílias; Itamauarí, com 5.377,6020 ha para 33 famílias, município de viseu; Erepecuru, área de 57.584,8505 ha.

O Governo do Estado do Pará, através do ITERPA, outorgou o título de Domínio para a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos Bacabal, aracuan do Meio, Aracuan de Baixo, Serrinha, Terra Preta II e Jarauacá, no município de Oriximiná, com uma área de 57.027,6216 há; Comunidade de abacatal com área de 308 ha no município de Ananindeua; Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo de Gurupá, das comunidades: Gurupá Miri, Jocojó, Flexinha, Carrazedo, Camutá do Ipixuna, Bacá do ipixuna, Alto Ipixuna, Alto Pucurui, com 17.500 hectares, julho de 2000;

Todas estas titulações foram levadas a cabo pelas instituições de política fundiária da União e Estado, como podemos observar, deixando claro que se a questão quilombola avança é porque também o tratamento dado responde às expectativas das comunidades, que antes de tudo vivem sobretudo por meio de atividades agrárias, notadamente destacando-se em culturas agro-extrativas.

No campo legislativo e instrumental o Estado do Pará está em passos firmes consolidado, através do Decreto Estadual no. 3.572/99, de 22 de julho de 1999, publicado no DOE/Pa de 23 de julho de 1999, regulamentando a Lei n º 6.165, de 2 de dezembro de 1998, que dispõe sobre a Legitimação de terras dos Remanescentes das comunidades dos Quilombos e dá outras providências, e através da Instrução Normativa no. 2 da Presidência do ITERPA, publicada no dia 18 do novembro de 1999 no DOE/Pa, regulando o trâmite processual do pedido de titulação, percebendo tratar-se sobre tudo de questão fundiária, centralizou neste órgão as atribuições de titulação de terras quilombolas.

Devemos destacar que atualmente, existe por conta deste processo legislativo, em trâmite no ITERPA, um total de 26 requerimentos de Titulação Coletiva de remanescentes de quilombos, que representam um total de 62 comunidades, espalhadas 12 municípios paraenses, a saber : Comunidades Abuí, Paraná do Abuí, Tapagem, Sagrado Coração, Mãe Cué, município de Oriximiná; Guajará Miri, Itacuãn Miri e Santa Maria de Itancuã, município do Acará; Comunidades de Bailique Centro, Bailique Beira, Poção, São Bernardo, Igarapé Preto, Baixinha, Campelo, Pampelônia, Varzinha, Itaperuçu, Araquembaua, Baixinha, França, Cupu, Igarapezinho, Teófilo, Carará, Umarizal Centro, Umarizal Beira, Boa Vista, Paritá Miri e Balieiro, localizadas no município de Baião; Comunidade Abacatal, município de Ananindeua; Comunidades Porto Grande, Mangabeira, São Benedito do Vizeu, Santo Antônio do Vizeu, Uxizal, Itabatinga, Vizânia, Icatú e Tambaí Açu, município de Mocajuba; Comunidades Itamoari, Camiranga, Paca e Aningal município de Cachoeira do Piriá; Comunidade Maria Ribeira, município de Gurupá; Comunidade Narcisa, município de Capitão Poço; Comunidades Igarapé Dona, Curuperé, Santo Antônio, Cravo, município de Concórdia do Pará; Comunidades de Igarapé São João , Baixo Itacuruça, Acaraqui, Rio Açacu, Rio Genipauba, Rio Arapapuzinho, Rio Tauaré-Açu, Alto Itacuruça, município de Abaetetuba; Comunidades Caeté – África, Laranjituba, município de Moju e Comunidade São Judas e Tadeu, município de Bujaru.

Num sentido da política agrária mais ampla, temos que vêm sendo atendidos os interesses dos remanescentes através da regularização de suas terras, afinal basta ler o art. 68 do ADCT da Constituição Federal, claramente se destaca que o ditame constitucional visa exatamente reconhecer o domínio das remanescentes sobre as terras que ocupam, para o resgate de uma divida histórica do povo brasileiro.

Após recebimento do requerimento, é realizada uma análise da regularidade formal do pedido de titulação de terras quilombolas, onde o Instrumental legislativo estadual primando pela celeridade do procedimento e auto reconhecimento das comunidades, permite a possibilidade das comunidades remanescentes auto definirem-se como remanescentes, e somente no caso de contestação expressa e substantiva desta condição é que o Estado assume o ônus de elaborar estudo histórico-antropológico de sustentação da condição de remanescentes de quilombo da comunidade(artigo 2º, §§ 1º e 2º do Decreto 3.572/99).

Destarte, o legislador estadual parte dos conceitos de Cidadania como plena consciência de exercício de direitos que não precisa do carimbo de autenticidade do Poder Público, e do conceito moderno de etnia como afirmação coletiva de determinado grupo, fundado numa auto-definição consensual, quanto em práticas político-organizativas e símbolos que marcam uma política de diferenças face a outros grupos(2) cabendo a este somente declarar e tornar pública através de suas instituições esta condição histórica pré-existente, construída pela comunidade.

A Declaração de Auto-definição quilombola da Comunidade como remanescentes de quilombos, pode ser expressa através da assinatura do requerimento inicial por associação de remanescentes legalmente constituída, ou quando esta, ainda inexistente, por meio de no mínimo três representantes das comunidades que assinam o requerimento com tal declaração, sendo assim uma sociedade de fato, como exige e permite a Lei e a Instrução normativa no. 02/99 - da Presidência do ITERPA. Embora, quando da titulação deva já existir a competente associação de remanescentes.

O Decreto Estadual 3.572/99, permite à Comunidade interessada apresentar ao ITERPA, uma proposta de perímetro da área ser titulada na forma do artigo Art. 4 º, § 1º , a chamada auto-demarcação. Uma vez que não apresente o mapa o Departamento Técnico, através da Divisão de Cartografia, elabora o Memorial Descritivo Preliminar da área pretendida pela comunidade.

Presentes estes elementos é dado conhecimento à sociedade em geral da formulação de pedido de titulação coletiva de área de terras de remanescentes de quilombos, permitindo-se que seja contestada a condição quilombola dos interessados, ou mesmo sejam levantadas questões sobre domínio, posse ou qualquer outra forma de pretensão sobre ditas áreas, que neste caso, serão analisadas somente em posterior momento, quando definida a situação da comunidade como remanescentes de quilombos.

Válido, exemplificativamente, aqui destacar o caso do processo de interesse Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município do Oriximiná – ARQMO, tendo como Comunidades Interessadas :Abuí, Paraná do Abuí, Tapagem, Sagrado Coração e Mãe Cué, onde foi apresentada uma contestação pela empresa CENTENOR EMPREENDIMENTOS S.A. a partir do Edital.

Destarte, a função dos Editais do processo de titulação quilombola, está muito bem definida na legislação própria, assim, para a regular Instauração do processo de legitimação de terras ocupadas por comunidades remanescentes dos Quilombos, exige a lei a demonstração da condição quilombola dos beneficiários, q u pode ser feita nas modalidades e formas que permite o Artigo 2o. § 1o. do Decreto 3.572/99 c/c artigo 3o. da IN 02/99 - ITERPA, in casu das Comunidades do Alto Trombetas, foi realizada através de documento de auto-definição quilombola, que constitui-se numa Declaração assinada por membros da comunidade declarando-se como tais, mas também a condição quilombola pode ser demonstrada através da juntada de estudo histórico antropológico, ou ambos.

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Demonstrada a condição quilombola, procede-se a publicação dos Editais no DOE/Pa e um jornal de ampla circulação, e a fixação na sede do município de Oriximiná, por duas vezes, fixando prazo de 15 dias de cada publicação para eventuais contestações(Artigo 3o., § 1o. da IN 02/99 – ITERPA).

De fato, as contestações devem ser EXPRESSSAS e SUBSTANTIVAS sobre a condição quilombola da comunidade, com exige o Decreto Estadual 3.572/99, em seu artigo 2o. § 2o. , in verbis :

"Art. 2º - São considerados remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, conforme conceituação antropológica, os grupos étnicos constituídos por descendentes de negros escravos que compartilham identidade e referência histórica comuns.

§ 1º - Para fins de instrução do processo, a condição quilombola poderá ser atestada mediante declaração da própria comunidade encaminhada ao ITERPA, que a tornará pública, fixando prazos para contestações, findo o qual será a declaração apensada ao processo;

§ 2º - Em caso de contestação expressa e substantiva da condição quilombola da comunidade, o ITERPA reunirá elementos demonstrativos da caracterização da comunidade, com base em bibliografia já publicada ou estudo elaborado especialmente para esse fim;" ( grifo nosso)

Regulamenta o referido processo contestatória da Condição quilombola da Comunidade, a Instrução Normativa no. 02/99 – ITERPA, o parágrafo 2o. do Artigo 3o. da IN 02/99 – ITERPA, preceitua in verbis :

Artigo 3o. . . omissis. .

§ 2º - As declarações da comunidade e/ou estudo histórico-antropológico da condição de quilombola, ficarão à disposição dos interessados, no gabinete do Diretor do Departamento Jurídico, para conhecimento e contestação pelo prazo definido, através de advogado. Findo o prazo de Contestação, certificado o seu escoamento, a declaração e/ou estudo histórico-antropológico será apensado ao processo de legitimação.

Desta forma, fica evidente que o objeto da Contestação a que se refere os editais é da condição quilombola da comunidade, tanto que o interessado em contestar a condição de quilombola poderá obter cópia da declaração e/ou estudo histórico-antropológico, mediante requerimento dirigido à Presidência informando a finalidade, como preceitua a alínea "a" do § 2o. do Artigo 3o. da IN 02/99 - ITERPA.

Preceituando, ainda, a IN 02/99 – ITERPA no seu artigo 4o., in literis :

"Artigo 4º - A contestação deve ser expressa e substantiva sobre a condição quilombola da comunidade, não podendo se dirigir a alegações de domínio ou posse sobre a área a ser legitimada.

§ 1º Pode o Contestante, mediante requerimento, solicitar prazo para elaboração de estudo histórico-antropológico negativo da condição de quilombola, elaborado por profissional qualificado de instituição pública ou particular reconhecida pelo Ministério de Educação, a ser juntado nos autos, em complemento à sua contestação, a ser apresentado no prazo máximo de 4 meses sem direito à prorrogação.

I - O Contestante deve arcar com todos os custos do estudo histórico-antropológico de sua contestação."

No caso em análise houve uma contestação onde se impugnou de forma pueril a condição quilombola da comunidade, sem a competente apresentação de estudo histórico-antropológico que provasse os seus argumentos negativos à condição quilombola das comunidades interessadas, e sem que o contestante apresenta-se requerimento na forma do artigo 4o., § 1o. da IN 02/99- ITERPA, de prazo para apresentação de seu estudo histórico-antropológico a ser elaborado por profissional habilitado, é dizer mesmo que contestação não possuiu as características de contestação expressa e substantiva da condição quilombola.

De fato, por economia processual, e apesar de a Instrução Normativa no. 02/99, no Artigo 4o. , § 2o. preceituar que :

Artigo 4o. ---omissis---

§ 2º - As alegações de posse ou domínio somente poderão ser aduzidas e apreciadas, quando da realização do trabalho de campo a ser realizado pelo ITERPA na delimitação, levantamento cartorial e demarcação da área, após definida e reconhecida a condição quilombola da comunidade.

Tem sido adotada a prática das contestações, que embora não devessem se dirigir as questões de posse ou domínio, e uma vez que tais sejam apresentadas, como aconteceu no processo relatado, estas razões e fundamentos sofrem o apensamento, para serem analisadas em posterior momento, quando definida a condição quilombola da comunidade.

Uma vez que presente um elemento contestatório da condição quilombola da comunidade, passamos a analisar se esta foi expressa e substantiva, e assim, tomar providências sobre a decisão de reconhecimento ou não da condição quilombola das comunidades interessadas, a fim subsidiar a decisão da presidência do ITERPA, decisão da qual cabe recurso, para o Secretário Executivo de Justiça do Estado, no prazo de 15 dias, contados da publicação no DOE/Pa. (Artigo 6o., § 1o. da IN 02/99 – ITERPA).

Destarte, os Editais tem por objetivo tornar público a existência de processo de comunidades remanescentes de quilombos e a área que pretendem ver reconhecido o seu domínio como determina a Constituição, sendo que tal direito deverá ser levada a cabo pelo Estado pelo meios legais e convênios necessários, uma vez que não seja contestada de forma substancial a condição quilombola destas comunidades, que por decisão da administração sejam realmente descaracterizadas como tais.

Fazendo uma leitura atenta da peça contestatória, no caso tomado aqui como exemplo, percebeu-se claramente um profundo conhecimento do processo fundiário do estado, ainda que todos os argumentos possam ser perfeitamente rebatíveis ou contra argumentados, ou mesmo afirmados como elementos caracterizadores de perfeito domínio, mais isso pouco ou nada valeu como peça contestatória no momento da condição quilombola das comunidades.

De fato, lendo e relendo a peça contestatória encontramos apenas pequenos parágrafos onde se esboça uma CONTESTAÇÃO da CONDIÇÃO QUILOMBOLA DAS COMUNIDADES, especificamente declinado no item 4.2 in fine e item 4.3, "a" , às fls 3 da peça, onde se afirma que "jamais poderiam ser consideradas como terras de ocupação imemorial dos QUILOMBOLAS" e que seria inverossímel que 36 famílias tivessem a posse sobre 213.200, 5797 ha de maneira imemorial como pretendia a ARQMO, e especialmente por incidir sobre a Flona Saraca-Taquera e Rebio Trombetas, e sendo que tais eram propriedades posteriormente desapropriadas para formação das áreas de proteção, não poderiam ser de uso dos quilombolas.

Percebemos, claramente, que a contestação da CENTENOR dirigia-se sobre tudo para apontar os limites da propriedade civil existente, como o elemento que impediria a configuração das pretensões dos remanescentes, não apontando qualquer elemento histórico-antropológico que afastasse as pretensões das comunidades remanescentes. Ora como sabemos as formas de apropriação da propriedade civil no modelo do código civil referem-se apenas a meios documentais de configuração da propriedade, sem qualquer elemento que defina a sua inexistência ou fraqueza pelo não uso, a não ser que tal seja declarado por meio de ação própria no poder judiciário (usucapião).

Portanto, o enfoque é claramente equivocado, e por isso mesmo afastado pelo legislador paraense, e de fato, enquanto temos a CENTENOR com pouco mais de um parágrafo, sem sequer requerer em sua contestação o prazo que a lei lhe determina e concede para a produção de estudo histórico-antropológico que atesta a sua afirmação de que a área reivindicada não é de ocupação de remanescentes de quilombos, existem trabalhos extensos, sérios e fundamentados que apontam e concluem exatamente o contrário. Embora para a lei fossem desnecessários porque preenchidos os requisitos de auto-definição quilombola, mediante auto-definição da comunidade.

Com efeito, naquele sítio citamos o trabalho de pesquisa elaborado pela professoras ROSA ELIZABETH ACEVEDO MARIN(3) e EDNA MARIA RAMOS DE CASTRO(4), do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPa, publicado pela Editora CEJUP, estando em segunda Edição, ano de 1998, sob o título "Negros do Trombetas : guardiães de matas e rios, o qual transcreveremos algumas passagens no parecer, onde fica clara a existência enquanto grupo social remanescentes as comunidades requerentes, representadas pela ARQMO, e mais longe declina todo um decorrer histórico de formação e ocupação destas populações.

Destacamos que aqui se trata de um processo especial onde se busca o resgate de uma dívida histórica, onde baseado nos estudos e outros critérios que o legislador adotou para levar a cabo a sua missão constitucional, ocorrendo fatos como posse ou propriedade, dado o efeito meramente declaratório do Edital da condição quilombola da comunidade, o Estado na forma do Decreto Estadual 3.572/99 e IN 02/99 ITERPA, procederá a realização dos convênios necessários a fim de ser concretizada a titulação da área em nome das Comunidades Remanescentes de Quilombos ou mesmo o abandamento de áreas, caso isto seja possível, uma vez que não prejudique a integridade cultural do território reivindicado pela comunidade.

Desta forma, hoje o Estado do Pará, a mais de um século do fim legal da escravidão começa a realizar o ensinamento de Joaquim Nabuco de que não bastava acabar com a escravidão, mas também com os seus efeitos deletérios no tempo.Tanto que como antevendo que o simples fim legal da escravidão não seria suficiente para a construção da liberdade do povo negro escreveu em pleno século XIX :

"Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder do sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor será ainda preciso debastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância. O Processo natural pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durou todo o período do crescimento, e enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos" (O Abolicionismo.Rio de Janeiro : Nova Fronteira : 1999. Página 8.)

Desta forma, segue o Estado do Pará a obra dos abolicionistas, dando oportunidade para que os remanescentes de quilombos tenham um meio de garantir a propriedade sobre as áreas que historicamente ocupam, contribuindo para que a liberdade seja mais do que um direito legal, seja uma realidade material, uma vez que tal condição histórica não seja derrubada a sua prova por um meio consistente e técnico, baseado em estudo histórico antropológico, mas por simples negativa da condição.

Por isso, mesmo que nada há de incomum que o legislador aceite como suficiente a declaração da comunidade como reconhecendo a sua própria formação histórica, e história oral de ocupação e posse para a partir destes dados ser construído o mapa da área pretendida, com as respectivas coordenadas geográficas.

Destacamos, que no caso do Alto Trombetas foi elaborado um mapa preliminar 0pela EMBRAPA, onde inclusive registra de forma expressa, que dentro da área total de 213.200,5797 hectares estão insertos aproximadamente 39.000 hectares da Floresta nacional Saracá-Taquera ( dec 98.704 de 27/12/89) e 100.000 hectares da Reserva Biológica do Rio Trombetas ( Dec. 84.018 de 21/09/79), onde hoje se desenvolve um projeto de Zoneamento Agroecológico, denominado " Projeto de Manejo dos Territórios Quilombolas" .

De fato, apesar de alcançar áreas fora do patrimônio estadual de terras, o q eu impede a atuação exclusiva do Estado, será no momento devido objeto de discussão junto a outras instituições de nível federal como reconhecer os direitos destas comunidades sobre ditas áreas, e no caso de propriedades particulares, sendo analisado e provado o perfeito desmembramento do patrimônio público, terá o tratamento devido e adequado previsto na legislação própria.

De fato a construção antropológica do conceito de remanescentes de quilombos, como conceito de etnia deve ser compreendido e atrelado a partir de afirmação coletiva que se funda tanto numa auto-definição consensual quanto em práticas político-organizativas e em símbolos que marcam uma política de diferenças face a outros grupos(5), como dissemos alhures

Os parâmetros sobre os quais dever ser feita a análise das comunidades quilombolas deve ser feita a partir de um enfoque especial e próprio, mas com a sua ligação na atualidade, pois como lecionam as professoras " trilhamos a contemporaneidade das ações de resistência de um grupo étnico enquanto formado por remanescentes de quilombos, habitantes na região do Trombetas, organizados sob a lógica de uma economia agro-extrativista, combinada à concepção de uso comum da terra"(6)

Logo, devemos destacar que pecou pela simplicidade o argumento da CENTENOR de que seria inverossímel que 36 famílias ocupassem a área pretendida, com 213.200, 5797 ha, primeiro por que este número de famílias é irreal, pois o número de famílias é muito maior do que declinado em sua contestação, pois na realidade temos um total de 188 (cento e oitenta e oito) famílias que ocupam a área objeto do requerimento, em segundo lugar é essencial lembrar, que a sua forma de ocupação e uso da terra é diferenciada, pois fazem uso agro-extrativista da área, onde teríamos que cada família teria pouco mais de 1.135 ha (hum mil, cento e trinta e cinco hecatares) por família, que dentro dos parâmetros técnico de ocupação e uso de projetos com tal finalidade é perfeitamente exeqüível e viável, principalmente por que é um uso tradicional destas comunidades.

A ocupação das comunidades está distribuída de forma que a Comunidade Abuí é formada por 45 famílias, comunidade Paraná do Abuí 31 famílias, Tapagem 49 famílias, Sagrado Coração 27 famílias e Mãe Cué 36 famílias, que vem construindo esta ocupação no denominado Alto Trombetas, pois como lecionam as pesquisadoras "Os chamados Filhos do Trombetas refazem o contorno das águas para atingir as terras de coleta, de cultivo e de caça; marcaram nelas, ainda, os lugares de festa, de lazer, os cemitérios com inúmeras recordações. Nos igarapés e lagos inspiraram-se para relatar as histórias dos guardiães das águas , das florestas e de suas vidas, que desde sempre existiram"(7)

Destaca-se que enquanto a Centenor limitava-se a dizer que a área pretendida jamais poderia ser considerada como terras de quilombolas, os trabalhos das professoras foram realizados a partir de pesquisa de campo, relatos, depoimentos, arquivo fotográfico, e levantamento de documentação cartorial, paroquial, arquivística relizadas nos municípios de Óbidos, Oriximiná, Santarém, Belém e Rio de Janeiro, incluindo consultas sistemáticas em jornais e registros de órgãos públicos (8)

Este trabalho denso vai além de reconstruir o passado, pois como lecionam as professoras :

"No presente, entender a preponderância dos grupos negros habitando às margens dos rios Trombetas e Erepecuru, distribuídos no interior de lagos e igarapés formadores desse sistema hidrográfico, impõe indagar sobre os antecedentes e a tradição de ocupação por eles desenvolvida, assim como também conferir os níveis de sua integração e a importância de suas atividades extrativas e agrícolas na economia regional. Significa reconstruir momentos e situações ocorridos durante praticamente mais de dois séculos quando esses grupos, etnicamente identificados, estabeleceram, nesse hábitat, um complexo sistema de organização social articulando práticas econômicas e culturais que lhes são particulares. A reconfiguração de sua vida nesse espaço leva-os, hoje, a reconhecerem-se como Filhos do Rio"(9)

" A tese de exclusividade negra no Trombetas emerge da constatação do domínio estabelecido por esse grupo étnico durante mais de dois séculos, compreendendo a subida no negro às cachoeiras, finais do século XVIII, e a presença demográfica e econômica importante, no presente do município de Oriximiná."(10)

Na construção de seu estudo e ocupação do trombetas , buscam e demonstram que as incursões de negros na região vão ter seu inicio com a Entrada da Companhia de Comércio do Grão Pará e Maranhão, com a introdução de escravos de forma imperiosa dada a escassez de mão de obra indígena por causa da varíola, ocorrido nos anos de 1745 a 1753(11)

Destacam as estudiosas que "através das relações espaço físico/quilombolas cria-se uma unidade onde o quilombo não é, como facilmente imagina-se um aglomerado de palhoças, mas sim a condição e existência do escravo aquilombado; o espaço físico, somente define-se como tal por essa presença"(12) . Lecionando, ainda, que autores como Tavares Basto, Barbosa Rodrigues e Ferreira Pena, escrevem nas décadas de 1860 e 1870 e mantém uma opinião consensual sobre a autoridade que representava o negro no rio Trombretas, (13). Destacam que "o movimento dos negros no rio Trombetas significou criar elementos articuladores de uma existência social estável, com regras de organização econômica e política que lhes permitiu enfrentar-se como coletividade diferente e até necessária para a sociedade escravista regional, como observa-se nas relações comerciais travadas regularmente em óbidos"(14)

Devemos destacar que a argumentação da CENTENOR S.A, da inverossimilhança da ocupação de 36 famílias(sic), na realidade 188 famílias, ocuparem a área pretendida, com 213.200, 5797 ha, na realidade é muito pobre com relação a forma de uso levada a efeito pela comunidade. Assim, atentamente já haviam detectado as professoras a complexa relação que se dá com o meio, lecionando de forma magistral que :

"A desterritorialização choca-se com as práticas comuns ao grupo e apóia-se num discurso ideológico que faz da atividade extrativa um não trabalho, pois supõe-se, simplistamente, que se coleta aquilo que cai das árvores, como uma dádiva, minimamente exigindo dispêndio físico, sem implicar em saberes sobre espécies de flora e fauna, usos de recursos, qualidades e portanto procedimentos classificatórios. O trabalhador é visto numa posição passiva e receptora, atribuindo-lhe um comportamento preguiçoso, indolente, depredador e improdutivo. Ao longo desses contatos dos negros com a sociedade escravista foram identificados como simples extratores de gêneros da floresta e grupos nômades pouco afeitos à agricultura"(15)

"O estudo mais cuidadoso da divisão do trabalho e das formas complexas de cumprir um calendário agroextrativo, onde está incluída a pesca, a caça, o tratamento de materiais para a fabricação de instrumentos e, o mais importante, o manejo alternativo de espécies cultiváveis e extrativas, demonstra a parcialidade dessas interpretações e revela os interesses implícitos. Essas formas de produção e de organização interna encontram-se talvez entre as mais complexas e singulares dos pontos de vista social e cultural, entre os grupos humanos da floresta amazônica. Sua capacidade de produção ultrapassa as necessidades das unidades que se encontram articuladas a um sistema de distribuição do produto não mediado por valores monetários e, ao mesmo tempo, lhes permite deter excedentes comercializáveis" (16)

Fica evidente que a argumentação da Centenor sobre a questão da sua dominialidade do ponto de vista do vestuto código civil, é insuficiente para definir ou espancar a condição quilombolas das comunidades requerentes ou mesmo as formas de apropriações pelo poder público de áreas do território que ora reivindicam o domínio, levadas a cabo através da Flona Saraca-Taquera e Rebio Trombetas, pois como lecionam as estudiosas " a lógica desses grupos ( ou de indivíduos) não estava pautada pelo título de propriedade privada, o símbolo da terra, mas sim pelo trabalho. Dessa forma ignoravam o direito burguês e as clausulas do ponto de vista fundiário. Dificilmente suas pretensões de terra comunal poderiam encaixar-se na ordem jurídica privada da propriedade (. .) Os negros do trombetas escapavam, por prática coletiva, às pequenas posses retalhadas, pois seu sistema privilegiava, como até o presente, o desenvolvimento comum das atividades que se desencadeava sobre um território contínuo; adequado à coleta e à seleção de áreas para roças e quintais" (17)

Considerando esta especial forma de relação com a terra é que a legislação estadual que regula o processo reconhecimento de áreas de remanescentes de quilombos destaca como essencial o respeito a estas formas próprias de relacionamento destas comunidades com o seu território e meio ambiente.

E fato, define a Lei Estadual 6.165.98, no Parágrafo único, do Artigo 1o. que "A expedição dos títulos de que trata este artigo se fará sem ônus, independentemente do tamanho da área previamente demarcada e reconhecida como de ocupação pelos remanescentes das comunidades dos quilombos".

Declinando, ainda, o Decreto Estadual 3.572/99, em seu artigo 3o. in verbis:

"Art. 3º - Entende-se por terra ocupada, para os fins deste Decreto, a ser delimitada, medida e demarcada, aquela necessária à reprodução física o sócio-cultural dos grupos remanescentes das comunidades dos quilombos, englobando os espaços de moradia, de conservação ambiental, de exploração econômica, das atividades sócio-culturais, inclusive os espaços destinados aos cultos religiosos e ao lazer.

Parágrafo Único – Na identificação da área a ser titulada, o ITERPA deverá considerar a noção de territorialidade da própria comunidade;"(grifo nosso)

Determina a Lei 6.165/98, artigo 2o, que a titulação deve necessariamente ser realizada em nome de associações de remanescentes de quilombos legalmente constituídas, constando obrigatoriamente cláusula de inalienabilidade nos títulos.

Obedecendo e buscando justamente alcançar o legislador estas representações onde esses territórios possam ser percebidos de forma integrada, como unidade, negando a noção de propriedade da terra e, para observar as lições de que na titulação se possa ao mesmo tempo reafirmar os sistemas de uso comum herdados dos antepassados das comunidades, concebidos dentro de uma cosmologia não dual, com o fim de não se realizar uma visão ou observação apressada, tendente a ressaltar o isolamento das unidades familiares, obscurecendo o essencial traduzido na presença das formações denominadas sítios – comuns na vida ribeirinha da Amazônia – e de sua integração a uma unidade maior, comunitária, que lhes dá sentido social e cultural(18)

Afinal de contas os quilombolas ao conceberem a terra como bem comunal, seguem regras definidas nos cânones de um direito consuetudinário, historicamente fundador de sua territorialidade e, portanto, a sua discussões sobre a sua territorialidade não poderiam jamais caber no âmbito limitado do direito privado e nem iluminado pelos padrões que regulam estatuto da propriedade privada e suas formas de aquisição(19) , daí a legislação criar um processo próprio e específico de titulação coletiva(20).

Na página 154 da obra multicitada estão listadas as comunidades do Abuí, Mãe Cué, Paraná do Abuí, Sagrado Coração e Tapagem , como comunidades identificadas no alto Trombetas como remanescentes de quilombos.que pretendem precisamente a titulação nesta qualidade.

Devemos destacar que a própria atuação negativa da por meio da Flona e da Rebio sobre a vida dos negros do trombetas foi detectada no estudo histórico-antropológico das comunidades remanescentes de quilombos do alto Trombetas, onde destacam as autoras :

"A proibição de acesso aos castanhais golpeou todas as comunidades, identificadas igualmente pelo extrativismo. Embora com tradição imemorial em trilhar longos percursos no rio e na mata, em função do controle arbitrário do IBAMA, estão sendo obrigados a empreender deslocamentos longínquos para atingir as áreas de coleta."(21)

"A Reserva Biológica do Trombetas surpreendeu a todos. A ação planejada à revelia das instâncias de poder concernentes, às comunidades negras e a governo municipal"(22)

Pois como destacam as autoras "Onipresente nas comunidades do Trombetas e de forma mais agressiva, o estatuto da Reserva Biológica e Florestal tem sido uma intervenção de impacto, pela obstaculização de acesso às terras de trabalho e mesmo pela violência física e simbólica que tem norteado suas ações de fiscalização, sobre moradores de comprovada ancianidade na àrea"(23).Alertam que "É necessário recuperar e levantar os direitos de permanência desse grupo no Trombetas, a partir da percepção de sua especificidades: territorialidade e etnicidade".(24)

De fato, apontam as autoras que através da retórica da conservação e as práticas que iluminam esta política, estas formas públicas constituíram-se em entraves para que as terras remanescentes de quilombos de Mãe Cué, Sagrado Coração, Tapagem, Abuí e Paraná do Abuí, possam ser regularizadas na forma do que determina a Constituição de 1988. Destarte, por isso que o Art. 6º do decreto estadual 3.572/99, determina que "Nas terras ocupadas por comunidades remanescentes de quilombo, quando verificada a incidência parcial de áreas de pretensão ou domínio particular, unidades de conservação, terras públicas da União ou do Município, deverá o ITERPA realizar convênios com os órgãos competentes a fim de tornar viável a titulação da área em nome da comunidade quilombola".(grifo nosso)

Assim, fica claro que a opção do legislador paraense, a partir da exemplificativa deste caso concreto, constitui-se em importante lição na construção de um meio expedito e coerente para o processo de titulação de áreas de remanescentes de quilombos, preservando os direitos de propriedade que momento próprio e adequado pode ser feita a prova pelo particular do seu domínio, construindo um processo onde sobretudo se dignifica a cidadania como meio de auto-afirmação histórica de um povo.

Sobre o autor
Ibraim José das Mercês Rocha

advogado, procurador do Estado do Pará, mestre em Direito pela UFPA, secretário do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública no Pará, ex-diretor do departamento jurídico do Instituto de Terras do Pará (ITERPA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Ibraim José Mercês. Reforma agrária: titulação coletiva de populações tradicionais do Pará.: Elementos de experiência para um novo paradigma. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1673. Acesso em: 24 dez. 2024.

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