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A questão ambiental frente aos direitos humanos

Agenda 01/08/1999 às 00:00

"A defesa imprescindível do meio ambiente não autoriza que se elabore e que o Congresso aprove lei penal ditatorial, seja por transformar comportamentos irrelevantes em crime, alçando, por exemplo, à condição de delito o dano culposo, seja fazendo descrição ininteligível de condutas, seja considerando infrações nitidamente de caráter apenas administrativo, o que gera a mais profunda insegurança"
(Miguel Reale Júnior)


Enquanto no âmbito dos diretos sociais e econômicos se assiste a um retrocesso, na Lei de Crimes Ambientais a situação se inverte. Nas considerações a seguir, quero analisar qual o bem jurídico tutelado, sabendo que a maioria de seus dispositivos implica na destruição de tradições e lógicas próprias de determinadas comunidades sociais, afim de garantir interesses políticos e econômicos mantenedores de uma ordem racional e urbanística, causando o enfraquecimento de princípios constitucionais, como o devido processo de lei, o da proporcionalidade e o da legalidade do uso do poder de polícia pela Administração Pública.

Ney Moura Teles nos adverte que a interpretação não é considerada "como uma atividade que se manifesta fora do tempo e do espaço, mas como um atuar incrustrada - até que a norma não tenha sido ab-rogada - no ambiente histórico em que o juiz vive e age. Já portanto vê que a pureza de um ajuízo lógico anti - histórico, reage o ambiente social em que a norma deve ter aplicação. Mas é que de uma lógica abstrata não será o caso de falar-se, a propósito de interpretação da norma penal. Se o escopo é buscar o significado de um querer, encerrado no cerne da norma, não se colhe o próprio querer na linha de um procedimento lógico formal, porque a vontade da norma apresenta direção finalista enquanto tutela de um valor" (ob. cit.). Mas que valores e bens jurídicos são tutelados pela lei de crimes ambientais? Será que a vida de um cardume de peixes apreendidos na época da piracema valem mais do que a liberdade de um cidadão que busca, na pesca, meios de subsistência ? Ou será que o Estado brasileiro se importa mais com a preservação de plantas ornamentais (art. 49 da lei nº 9.605/98) do que com a efetividade de um devido processo legal, onde ninguém será destituído de seus bens sem a respectiva sentença ? Ao fazer uma análise comparativa entre artigos do Código Penal e da Lei de Crimes Ambientais, identifiquei as seguintes contradições:

Enquanto no homicídio culposo, a pena é de detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, o crime de pescar no período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente - art. 34 da Lei de Crimes Ambientais - é apenado com detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. O crime de lesão corporal dolosa, - prevista no art. 129 do Código Penal - é apenado da mesma forma que o crime ambiental de destruir ou danificar florestas nativas ou plantadas ou vegetação fixadora de dunas ou protetora de mangues, - previsto no artigo 50 da Lei de Crimes Ambientais,- ou seja, detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa; Por fim, o crime de matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida (previsto no artigo 29), comina detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa, em detrimento do crime de constrangimento ilegal - disposto no artigo 146 do Código Penal, cuja pena de detenção varia entre 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. Não é difícil perceber como esta lei não poupou esforços ao investir em normas penais bem mais severas, transformando antigas contravenções em crimes (a destruição de plantas ornamentais, por exemplo, era considerada contravenção, pelo Código Florestal), fingindo encontrar uma pseudo - solução a curto prazo, manipulado pelos lobbies dos grandes produtores nacionais. Sabemos que todo fenômeno social obedece a uma causa e efeito, bem como já estamos cansados de discutir que o sistema carcerário brasileiro é precário, além da qualificação mínima dos funcionários das Polícias em geral. Esta lei excluiu de sua órbita a importância do manejo dos recurso ambientais por comunidades indígenas e ribeirinhas, produto de uma experiência que acompanha gerações de famílias e se identificam nas atividades que desenvolvem cotidianamente. Porém, a lei ambiental deu ouvidos ao grito mais forte do poder econômico nacional e estrangeiro - agora não só aliado, mas também globalizado.Dentre as regras que orientam a interpretação da lei, convém serem relembrados os princípios da isonomia, equidade e da racionalidade, que permeiam a hermenêutica penal. O princípio da isonomia, também chamado de princípio de igualdade perante a lei, determina que a lei deve dar tratamento isonômico aos iguais, ou seja, a lei não pode tratar os crimes de tortura modo mais brando nem mais severo que os crimes hediondos, visto que tutelam um bem jurídico comum, a vida. Se é assim, a lei 6.905/98, acabou contrariando este princípio, pois conferiu uma pena igual aos crimes contra a pesca e ao homicídio culposo declarado pelo juiz com pena máxima. Sobre o princípio da eqüidade, Regelsbergernos nos lembra que este "corresponde ao nosso sentimento de eqüidade, o modo de tratar uma relação prática, que se torna justa, pela sua própria natureza, com a tendência sempre para o brando, para o moderado, para o humano" (apud Ney Moura Teles, ob. cit.). Ora, já está claro que esta lei não avaliou os impactos contra os direitos individuais que repercutiriam dentro da sociedade, fazendo com que, por meio do exercício do poder de polícia administrativo, se fortalecessem limitações e condicionamentos contra o seu respectivo exercício.


Os Direitos Humanos Frente a Preservação Ambiental

Muitos analistas atribuem a importância dedicada à defesa dos direitos humanos no Brasil, na última década, ao fim da guerra suja, à desradicalização dos conflitos ideológicos, ao avanço do processo de desenvolvimento econômico e a degradação ambiental e às pressões internacionais em favor dos direitos humanos. Com certeza esses fatores são importantes, mas é inegável que um fator crucial foi a indignação pública e a mobilização da sociedade civil causada pelas violações de direitos humanos ocorridas durante o regime autoritário nas décadas de sessenta e setenta, que incluíram a tortura, assassinato e desaparecimento de prisioneiros políticos e de oponentes do regime. A democracia representativa consolidou-se durante um processo histórico caracterizado pelo reconhecimento de três gerações de direitos humanos: os relativos à cidadania civil e política, os relativos à cidadania social e econômica e os relativos à cidadania "pós - material", caracterizados pelo direito à qualidade de vida, a um meio ambiente saudável e à tutela dos interesses difusos. O Estado institucionaliza estas categorias ao seu redor objetivando justificar sua atuação, intervindo assim sobre os interesses particulares. A primeira categoria representa uma conquista dos cidadãos contra o despotismo governamental, procurando enquadrá-lo por meio da promulgação de uma ordem constitucional asseguradora das garantias fundamentais e das liberdades públicas. Já na segunda, o Estado passa a ser considerado instrumento de mediação dos conflitos coletivos, onde sua atuação se faz presente na economia, na proteção dos trabalhadores e na implementação de políticas que fomentem o desenvolvimento social.

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A terceira geração de direitos humanos incentiva o fortalecimento das prerrogativas e do poder de polícia administrativa das instituições encarregadas de promover a proteção do patrimônio histórico, cultural e ambiental, legitimada a repreender os danos ambientais por meio do discurso da "preservação ambiental".

A cada geração dos direitos humanos, um dos poderes do Estado é destacado. Enquanto os direitos humanos de primeira geração dependem do Legislativo e do Judiciário, por terem sido forjados como forma de proteção contra o poder do Estado, os direitos humanos de segunda e terceira geração exigem, para sua concretização, uma atuação positiva do Executivo. Mas estas gerações enfrentam problemas quanto à sua efetivação. Os princípios de liberdade pública, igualdade substantiva e afirmação dos interesses difusos impostos pelo Estado afim de garantir a ordem social, colidem com costumes e práticas sociais que vêm sendo absorvidos em favor da lógica do saber jurídico formal, atribuindo-lhes ações que devem ser pensadas e compreendidas como textos legais. Houve significativa mudança no tipo de violações de direitos humanos, mas não uma diminuição em seu número e gravidade. Ao contrário, em muitas áreas, o número e a gravidade aumentaram. A lista dos casos mais graves é conhecida: Carandiru, Candelária, Vigário Geral, Nova Brasília, Corumbiara e Eldorado dos Carajás, além de chacinas quase semanais nos grandes centros urbanos e nas áreas de conflito rural e das violências cotidianas Entre os principais tipos de violações dos direitos humanos causados em nome da defesa do meio ambiente encontra-se o desrespeito entre eles: agressões verbais, físicas e confisco do pescado, da madeira ou de outros produtos sem autuação, invasão de casas, quebra de petrechos, muitas vezes cometido por policiais em serviço, sobre o pretexto de estarem exercendo a educação ambiental. a falta de acesso à justiça por parte da maioria da população.Na medida em que o capitalismo se desenvolve, a violação aos direitos humanos se acentua, tendo em vista as dificuldades do atual regime democrático brasileiro, composto por uma heterogeneidade de classes econômicas e interesses políticos. Este quadro direcionou os discursos de preservação ambiental em torno das razões produtiva e econômica, ao invés de destiná-los a uma política de manejo dos recursos naturais que possibilitasse reintegrar o homem ao ambiente, de modo a conseguir a mais alta qualidade de vida humana sustentada. Constata-se que os habitantes das populações tradicionais, excluídos do mercado de trabalho, ao buscar sua sobrevivência por meio de recursos extraídos do meio ambiente, acabaram perdendo condições materiais para exercer em toda sua plenitude seus direitos. "A civilidade para o pobre, considerado pelo pensamento culto, um ser semi - racional, implicou a noção de disciplina, algo que do exterior constrange as pessoas a um comportamento previsível e formador de uma segunda natureza do homem sem o recurso à inteligibilidade dos pressupostos ou à consciência de sua importância. Dessa maneira, a cidade se utilizou de instrumentos que possibilitassem o pobre seguir regras formais consideradas apropriadas para se viver em seus espaços. Regras que possibilitariam a marginalização e desvalorização dos saberes e práticas para a manutenção de uma ordem política econômica e civilizatória" (Verone Cristina da Silva, ob. cit.). Não mais se concebem estas populações como portadoras de direitos subjetivos, e sim, como "caso de cadeia, que vai ser preso aquele que não seguir a lei" (Frederico Müller, ob. cit.). E o pior de tudo é saber que isto não implica na dispensa do cumprimento das obrigações estabelecidas pela legislação, especialmente quando se trata de matéria penal. Assim, diante do aumento da criminalidade e pobreza nos centros urbanos e rurais, "as instituições jurídicas e judiciais do Estado, antes voltadas para o desafio de proteger os direitos civis e políticos e de conferir eficácia aos direitos sociais e econômicos, acabam agora tendendo a assumir papéis eminentemente punitivos repressivos" (Mário Antônio Lobato de Paiva, ob.cit.).

A transição para a democracia sempre foi necessária, mas ainda continua insuficiente, incapaz de limitar a incidência de violações dos direitos humanos. A continuidade e o agravamento dessas violações num contexto de crise e reforma administrativa do aparelho estatal só contribuem para ameaçar a confiança da população no Estado e nos dirigentes políticos , o que pode afetar a consolidação do regime democrático no país. Esta ainda depende de uma maior integração entre os que pertencem aos três poderes do Estado e os encarregados na execução dos atos de polícia administrativa.


BIBLIOGRAFIA

1. Paiva, Mário Antônio Lobato de. Direitos Humanes e Tributação . Revista Jurídica "A Priori". 03/03/98.
          2. Silva, Verone Cristina da. Da ilegalidade à ilegitimidade. Um delineamento histórico sobre o controle das práticas de pesca no rio Cuiabá. Monografia de especialização em metodologia da pesquisa em história. Departamento de história, (ICHS/UFMT,1988).
          3. Silva, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. Malheiros Editores, 1997.
          4. Frederico Müller, presidente da Fundação Estadual do Meio Ambiente de Mato Grosso. Programa Jornalístico televisivo. GAZETA. Cuiabá, 02/02/98 e entrevista televisiva na GAZETA (Programa Terceiro Mundo do dia 02/02/98 às 21:00 h. Fita de Vídeo n.º 02).
          5. Revista Consulex, Ano 31, nº 5, maio de 1997, p.19.

Sobre a autora
Renata Maciel Cuiabano

acadêmica de Direito da Universidade Federal do Mato Grosso

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUIABANO, Renata Maciel. A questão ambiental frente aos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 34, 1 ago. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1703. Acesso em: 18 nov. 2024.

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