III. A Doutrina Brasileira de Direito Constitucional e a Constitucionalidade das Políticas de Ação Afirmativa.
A maioria dos autores da doutrina brasileira de Direito Constitucional propõe tratamento favorável a quem está em situação de desvantagem em razão de pertencer a grupos débeis econômica e socialmente. Logo, a ação afirmativa não constitui violação do princípio da igualdade, pois, ao contrário, pretende viabilizar a isonomia material.
(...) Tal contexto de estatísticas sociais desfavoráveis para aqueles contingentes humanos inferiorizados da sociedade, a persistência nas generalizações legislativas, com adoção de normas simplistas, genéricas e iguais para todos, independentemente das notórias diferenças sociais e econômicas que são fruto, por exemplo, do escravismo e da cultura machista, não propicia a mobilidade e a emancipação social desses grupos discriminados e, até mesmo, aprofunda e reproduz os condenáveis preconceitos histórica e culturalmente enquistados no organismo social. Nesse campo de questões, que bem exprime as relações sempre tensas entre o Direito e a sociedade, a caracterizar o fenômeno a que designamos de constitucionalismo de resultado, percebe-se nitidamente o abandono do classicismo isonômico e a busca de instrumentos de aplicação e interpretação da Constituição capazes de enfrentar o imobilismo conservador e de prestigiar as políticas públicas mudancistas e de transformação social. Em tal ordem de convicções, as ações positivas despontam como um mecanismo da justiça distributiva, destinado a compensar inferioridades sociais, econômicas e culturais associadas a dados da natureza e ao nascimento dos indivíduos, como raça e sexo. (...) A adoção de cotas para ingresso de estudantes negros em universidades brasileiras afigura-nos como uma necessária medida para solucionar o desproporcional quadro do ensino superior em nosso País (Castro, 2003: 444-446; 451)
Nesse mesmo sentido, comentando a doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, acerca do conteúdo jurídico do princípio da igualdade, Marcelo Neves aduz que:
Numa perspectiva rigorosamente positivista, Bandeira de Mello enfatiza que o princípio constitucional da isonomia envolve discriminações legais de pessoas, coisas, fatos e situações. Discute, então, quando discrímenes se justificam sem que o princípio vetor seja deturpado. E aponta três exigências: a presença de traços diferenciais nas pessoas, coisas, situações ou fatos; correlação lógica entre fator discrímen e desequiparação procedida; consonância da discriminação com os interesses e valores protegidos na Constituição (Neves, 1996: 262)
Em decorrência:
quanto mais se sedimenta historicamente e se efetiva a discriminação social negativa contra grupos étnico-raciais específicos, principalmente quando elas impliquem obstáculos relevantes ao exercício de direitos, tanto mais se justifica a discriminação jurídica positiva em favor dos seus membros, pressupondo-se que esta se oriente no sentido da integração igualitária de todos no Estado e na sociedade (Neves, 1996: 262)
Conclui que:
as discriminações legais positivas em favor da integração de negros e índios estão em consonância com os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, estabelecidos nos incisos III e IV do seu artigo 3º(Neves, 1996: 263)
Joaquim B. Barbosa Gomes, ministro do Supremo Tribunal Federal, nesse mesmo sentido e posicionando-se a favor da constitucionalidade das ações afirmativas em nosso país, afirma que:
no plano estritamente jurídico (que se subordina, a nosso sentir, à tomada de consciência assinalada nas linhas anteriores), o Direito Constitucional vigente no Brasil, é perfeitamente compatível com o princípio da ação afirmativa. Melhor dizendo, o Direito brasileiro já contempla algumas modalidades de ação afirmativa, inclusive em sede constitucional (Gomes, 2000: 20)
E, conclui que:
assim, à luz desta respeitável doutrina, pode-se concluir que o Direito Constitucional brasileiro abriga, não somente o princípio e as modalidades implícitas e explícitas de ação afirmativa a que já fizemos alusão, mas também as que emanam dos tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo nosso país (Gomes, 2000: 21)
Nesse mesmo passo, segue Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, Ministro do Supremo Tribunal Federal, aludindo que:
(...). E, aí, a Lei Maior é aberta com o artigo que lhe revela o alcance: constam como fundamentos da República Brasileira a cidadania e a dignidade da pessoa humana, e não nos esqueçamos jamais de que os homens não são feitos para as leis; as leis é que são feitas para os homens. Do artigo 3º vem-nos luz suficiente ao agasalho de uma ação afirmativa, a percepção de que o único modo de se corrigir desigualdades é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter em um mercado desequilibrado, a favor daquele que é discriminado, que é tratado de forma desigual [17]
O jurista Nelson Jobim, no seu discurso de posse como ministro do Supremo Tribunal Federal, em junho de 2004, chamou a atenção dos presentes ao evento para o fato de que:
a regra do convívio democrático. São estes os pressupostos da ação. São essas as exigências do futuro. Façamos um acordo a bem do Brasil e do seu futuro. De um Brasil que reclama a inclusão social e o bem estar de todos. Que exige o desenvolvimento social e econômico. Que passa a enfrentar os seus obstáculos culturais, sociais e econômicos. Que discute e quer dar solução à exclusão dos negros [18]
E, em agosto de 2004, o mesmo Nelson Jobim, retomando a temática em uma palestra proferida na Câmara Municipal de São Paulo, no seminário A inserção do Afro-descendente na sociedade brasileira, pronunciou-se nos seguintes termos:
o que está por trás das chamadas ações afirmativas? Está exatamente atrás a evolução do tratamento do tema. Não mais ter só exclusivamente a forma reativa, da apenação penal, com todas as suas deficiências, não importa, mas ter também ações que sejam legitimadoras de políticas públicas que possam reduzir o âmbito da desigualdade. E não fazer com que a desigualdade se reproduza. É isto que está atrás dessa discussão das chamadas ações afirmativas e das chamadas quotas de negros ou negras nas universidades etc [19].
Por seu turno, a jurista Lúcia de Lima Bertúlio, enuncia que:
não só não há inconstitucionalidade na proposição de medidas semelhantes aos programas de ação afirmativa em vigor nos Estados Unidos, como há o estímulo de que o Estado, por intermédio de seus poderes, incentive e crie mecanismos para minimizar e até eliminar quaisquer resquícios de discriminação racial no interior da sociedade (Bertúlio, 2003: 15)
A respeito do tema, outro ponto-de-vista importante é aduzido pelo jurista Hédio Silva Jr.:
Salvo engano, é certo que a Constituição de 1988, implícita e explicitamente, não apenas admitiu como prescreveu discriminações, a exemplo da proteção do mercado de trabalho da mulher (artigo 7o, XX) e da previsão de cotas para portadores de deficiência (artigo 37, VIII), donde se conclui que a noção de igualdade circunscrita ao significado estrito de não discriminação foi contrapesada com uma nova modalidade de discriminação, visto como, sob o ângulo material, substancial, o princípio da igualdade admite sim a discriminação, desde que o discrímen seja empregado com a finalidade de promover a igualização (Silva Jr, 2002: 112)
IV. As Políticas de Ação Afirmativa, as Cotas e o atual Posicionamento Jurisprudencial Nacional
O Poder Judiciário brasileiro ainda não se manifestou definitivamente sobre a constitucionalidade ou não das políticas de ação afirmativa e de seus mecanismos (como as cotas) instituídos até o momento. As diversas ações ajuizadas nos tribunais que têm competência para exercer o controle direto de inconstitucionalidade (o Supremo Tribunal Federal [20] e os Tribunais de Justiça [21]) não foram julgadas no mérito, apesar de a ADI relativa ao PROUNI já ter recebido voto favorável (ratificando a constitucionalidade da lei que o criou) do Ministro-Relator do processo (Carlos Ayres de Britto – ADI/3379 - <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizador/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?tipoConsulta=PROC&numeroProcesso=3379&siglaClasse=ADI>) no STF.
Apesar disso, já foram proferidas sentenças e acórdãos por juízos de primeira e de segunda instância, em sede de controle difuso de constitucionalidade, que julgando o mérito dos pedidos formulados nos processos, concluíram pela constitucionalidade das leis que instituíram cotas em favor dos negros em estabelecimentos públicos de educação superior e no serviço público.
Em ratificação ao alegado, transcrevemos um acórdão proferido no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no dia 10 dezembro de 2003, relatado pelo Desembargador Cláudio de Mello Tavares, da décima primeira Câmara Cível, na apelação nº 2003.001.27.194. O acórdão, julgado por unanimidade, manteve a decisão da primeira instância, ao denegar pedido incidental de inconstitucionalidade, formulado em mandado de segurança individual, impetrado por um candidato ao vestibular da UERJ preterido por outro candidato "cotista", concluindo pela constitucionalidade das leis impugnadas.
Apesar de a ementa do acórdão ser extensa, a mesma merece ser reproduzida pelos fundamentos que justificaram a decisão:
APELAÇÃO CÍVEL EM MANDADO DE SEGURANÇA. DENEGAÇÃO DO WRIT. SISTEMA DE COTA MÍNIMA PARA POPULAÇÃO NEGRA E PARDA E PARA ESTUDANTES ORIUNDOS DA REDE PÚBLICA ESTADUAL DE ENSINO. LEIS ESTADUAIS 3524/00 E 3708/01. EXEGESE DO TEXTO CONSTITUCIONAL. A ação afirmativa é um dos instrumentos possibilitadores da superação do problema do não cidadão, daquele que não participa política e democraticamente como lhe é na letra da lei fundamental assegurado, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os demais. Cidadania não combina com desigualdades. República não combina com preconceito. Democracia não combina com discriminação. Nesse cenário sócio-político e econômico, não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente cidadão o leitor que lhe buscasse a alma, apregoando o discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história pelas mãos calejadas dos discriminados. É preciso ter sempre presentes essas palavras. A correção das desigualdades é possível. Por isso façamos o que está a nosso alcance, o que está previsto na Constituição Federal, porque, na vida, não há espaço para o arrependimento, para a acomodação, para o misoneísmo, que é a aversão, sem se querer perceber a origem, a tudo que é novo. Mas mãos à obra, a partir da confiança na índole dos brasileiros e nas instituições pátrias. O preceito do art. 5º, da CR/88, não difere dos contidos nos incisos I, III e IV, do art. 206, da mesma Carta. Pensar-se o inverso é prender-se a uma exegese de igualização dita estática, negativa, na contramão com eficaz dinâmica, apontada pelo Constituinte de 1988, ao traçar os objetivos fundamentais da República Brasileira. É bom que se diga que se 45% dos 170 milhões da população brasileira é composta de negros (5% de pretos e 40% de pardos); que se 22 milhões de habitantes do Brasil vivem abaixo da linha apontada como de pobreza e desses 70% são negros, a conclusão que decorre é de que, na realidade, o legislador estadual levou em conta, quando da fixação de cotas, o número de negros e pardos excluídos das universidades e a condição social da parcela da sociedade que vive na pobreza, como posto pela Procuradoria do Estado em sua manifestação. O único modo de deter e começar a reverter o processo crônico de desvantagem dos negros no Brasil é privilegiá-la conscientemente, sobretudo naqueles espaços em que essa ação compensatória tenha maior poder de multiplicação. Eis porque a implementação de um sistema de cotas se torna inevitável. Na medida em que não poderemos reverter inteiramente esta questão em curto prazo, podemos pelo menos dar o primeiro passo, qual seja, incluir negros na reduzida elite pensante do país.
O descortinamento de tal quadro de responsabilidade social, de postura afirmativa de caráter nitidamente emergencial, na busca de uma igualdade escolar entre brancos e negros, esses parcela significativa de elementos abaixo da linha considera como de pobreza, não permite que se vislumbre qualquer eiva de inconstitucionalidade nas leis 3.524/00 e 3708/01, inclusive no campo do princípio da proporcionalidade, já que traduzem tão-somente o cumprimento de objetivos fundamentais da República. Ainda que assim não fosse interpretada a questão exposta nos presentes autos, verifica-se da documentação instrutória do recurso que para o Curso de Letras a Apelada ofereceu 326 vagas, distribuídas entre os dois vestibulares (SADE, para alunos da rede pública, e o Vestibular Estadual 2003, para alunos que estudaram em escolas particulares). A Apelante concorreu a esse último, ou seja, a 163 vagas, optando pelas subopções G1 e G2, havendo para cada uma a oferta de 18 vagas. Ocorre que no cômputo final de pontos veio a alcançar, na sua melhor colocação, na opção G2 a 57ª posição, o que deixa evidenciado que mesmo que não houvesse a reserva de cota para negros e pardos não alcançaria classificação, razão pela qual, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se in totum a decisão hostilizada [22]
Nesse ínterim, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), se pronunciou sobre casos envolvendo políticas públicas de ação afirmativa para afro-brasileiros, para pessoas com deficiência e para consumidores em geral. No julgamento do Recurso Especial (REsp) nº 567873 [23], em fevereiro de 2004, o STJ entendeu que uma lei federal (Lei nº 8.989/95, alterada pela Lei nº 10.754/2003), de natureza tributária, que concedeu isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI - na compra de automóveis por pessoa com deficiência, era constitucional. E, no julgamento do REsp nº 7593562 /RJ [24], junho de 2006, julgando o caso referente à política tarifária no fornecimento de água para consumidor com menor gasto, o STJ entendeu que era válida essa política instituída pela Lei nº 8.987/95, visando o escalonamento na tarifação de água, de modo a pagar menos pelo serviço o consumidor com menor gasto, em nome da política de "ações afirmativas". E o STJ, em maio de 2008, julgou o primeiro caso de política de ação afirmativa para afro-brasileiros no ensino público superior, envolvendo a Universidade Federal do Paraná, cuja ementa do julgamento, em favor da ação afirmativa implantada pela UFPR, tem o seguinte teor: (Vide maiores detalhes do processo RMS/26089/PR, relatado pelo Ministro Felix Fisher) em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?acao=imprimir&livre=RJP.font.+ou+RJP.suce.&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=4):
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. ANULAÇÃO DO CERTAME. DESCUMPRIMENTO DE LEI ESTADUAL. RESERVA DE VAGAS PARA AFRO-DESCENDENTES. CONSTITUCIONALIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE A AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA SOBREPOR-SE À LEI. INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. RECURSO DESPROVIDO.
1. A reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica constitui política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988.
2. A Lei Estadual que prevê a reserva de vagas para afro-descendentes em concurso público está de acordo com a ordem constitucional vigente.
3. As Universidades Públicas possuem autonomia suficiente para gerir seu pessoal, bem como o próprio patrimônio financeiro. O exercício dessa autonomia não pode, contudo, sobrepor-se ao quanto dispõem a Constituição e as Leis.
4. A existência de outras ilegalidades no certame justifica, in casu, a anulação do concurso, restando prejudicada a alegação de que as vagas reservadas a afro-descendentes sequer foram ocupadas.
Recurso desprovido.