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Da possibilidade de efetivação do direito fundamental à moradia por meio das Zonas Especiais de Interesse Social

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Agenda 12/08/2010 às 07:57

3 A IMPLEMENTAÇÃO DAS ZEIS E OS OBSTÁCULOS À EFETIVAÇÃO DO DIREITO À MORADIA.

Antes de serem abordados diretamente os possíveis obstáculos à implementação das ZEIS, é mister que se esclareça, ainda que brevemente, as origens do urbanismo em Fortaleza. Este breve histórico tem por finalidade situar-nos no contexto das medidas urbanísticas usualmente implementadas em âmbito municipal, com o objetivo de alertar para que não sejam reproduzidos os mesmos modelos de medidas adotados anteriormente, ainda que com nomenclaturas e propostas diversas.

3.1 Medidas Urbanísticas em Fortaleza

Sobre as medidas urbanísticas no Município de Fortaleza, destaca-se a vasta documentação do Núcleo de Documentação Cultural (NUDOC/UFC), em que encontramos uma série de livros e documentos tratando sobre a origem do urbanismo em Fortaleza. Também nas pesquisas do Núcleo Fortaleza do Observatório das Metrópoles encontrou-se relevante arcabouço teórico, bem como várias das bases de dados citadas neste estudo.

No início do século XIX, era a Câmara Municipal de Fortaleza que fazia a gestão político-administrativa e social da cidade. Em 1800 havia um "arruador" (arquiteto leigo), que basicamente era responsável por cuidar do traçado das ruas. De 1813 é a primeira planta parcial da vila, e é por volta da metade do século XIX que se tem notícia dos primeiros gastos municipais com alinhamentos de ruas e becos, e através das décadas da segunda metade do século, medidas várias versando sobre a ordem urbanística de Fortaleza.

Pela Câmara Municipal eram sugeridas, e por vezes implementadas, algumas medidas inusitadas, inclusive, como uma

Proposta do então Presidente da Câmara de dividir a cidade em tantos bairros quanto o número de vereadores. Outra curiosidade é que até mesmo a cor das residências chegou a ser objeto de deliberação, sendo aprovada a proibição de que o interior das casas tivesse caiamento branco ou encarnado..." [10]

Observa-se que, no século XIX e em boa parte do século XX, a maioria das medidas urbanísticas era pensada somente no que concerne ao embelezamento da cidade. Fato notório era que todos os especialistas em engenharia contratados eram recém-egressos da Europa, trazendo as novidades européias para Fortaleza. Não se refletia, no entanto, que a realidade cearense era bem diversa da européia.

Souza (2009) aponta que no governo Inácio de Sampaio (1812-1820) é que foram traçadas as primeiras normas dispondo sobre a organização do espaço da cidade, e é dessa época a planta da cidade do engenheiro Silva Paulet. Neste momento, ainda eram muito esparsas as normas urbanísticas.

Foi no governo seguinte, o do Boticário Ferreira, que houve uma maior preocupação com o disciplinamento da cidade e do seu crescimento. A autora lembra que foi dessa época (1859) a primeira planta elaborada pelo arquiteto Adolfo Herbster, que teve uma participação intensa no urbanismo do período. No governo do Boticário, foi proibida a construção de becos estreitos e ruas sinuosas no centro da cidade, e foi também nessa época que foi iniciada a instalação de iluminação pública.

A preocupação inicial, ressalte-se, era embelezar a cidade. As normas relacionadas ao urbanismo (que neste momento ainda estava se consolidando enquanto técnica), portanto, eram um conjunto das medidas tomadas no sentido de tornar a cidade mais bela e, quando muito, proteger os cidadãos de doenças, vez que naquela época se acreditava que os grãos de areia ao vento eram partículas de doença.

Segawa (2000) aponta que o urbanismo incipiente no Brasil configurou uma série de medidas que não tinham a necessária preocupação com a reordenação do tecido urbano. Dessa forma, os melhoramentos trazidos com o urbanismo (em geral de embelezamento e higienização) visavam a manutenção da estrutura existente, com poucas modificações. O autor aponta que a intervenção urbana derivava dos processos de saneamento urbano desenvolvidos no século 19, adquirindo naquele momento uma nova condição, enquanto visão racionalizadora e integrada de interferência na cidade, com o objetivo da "modernização" das estruturas urbanas.

Normalmente essa "modernização" era atribuída à importação de modelos urbanísticos da Europa, completamente alheios às realidades brasileiras. Além disto, Maricato (2000) assevera que o urbanismo no Brasil (enquanto planejamento e regulação urbanística) não tem comprometimento com a realidade concreta, e sim com uma ordenação que se refere apenas a uma parte da cidade, conforme foi abordado no capítulo 1.

O urbanismo no Brasil não se propôs no início a mudanças estruturais ou significativas; ao contrário, manteve as estruturas. Preconizou, sim, o tripé das seguintes diretrizes: embelezamento, higienização ou sanitarização; e segregação social por meio da dispersão do povo (evitando assim revoltas populares, a exemplo da criação de largas avenidas que facilitavam a repressão aos movimentos).

Exemplos de medidas urbanísticas adotadas à época, solidamente representativas deste tripé aludido:

(...) a criação de novos eixos viários, a uniformização das fachadas dessas avenidas e a implantação de parques públicos mediante a remodelação do tecido urbano colonial da cidade. Foi uma iniciativa de saneamento físico e social e de "embelezamento" (termo corrente na época) da cidade – capital e principal entrada internacional do país. Conciliar a erradicação das epidemias que varreram a cidade ao longo do século 19, afastar a população pobre dos setores estratégicos para a expansão urbana e conferir à paisagem uma estética arquitetônica de padrão europeu caracterizaram iniciativas para a modelagem de um Brasil condizente com o figurino de uma nação "civilizada" (SEGAWA, idem, p. 21)

Afastar a população pobre não só dos pontos estratégicos em termos econômicos (dificultando que eles acessassem as zonas boas para se morar), mas também buscando evitar manifestações políticas e aglomerações. Não nos esqueçamos que muitas ocupações irregulares, a exemplo das favelas, se originaram de medidas higienizadoras promovidas pelos governos municipais e estaduais, a exemplo do que ocorreu no Rio de Janeiro. O caso da cidade do Rio de Janeiro é emblemático porque boa parte das favelas antigas da cidade se originaram por conta das medidas iniciadas no governo Pereira Passos, mas ressalte-se que essa experiência foi parecida com a de muitos municípios do País.

Em nome do embelezamento da cidade e da "erradicação de doenças", expulsa-se a população pobre de uma área que geralmente está sendo visada pelo mercado imobiliário. Não se nega que muitas vezes é realmente necessária a remoção de populações em virtude de estarem elas em situação de risco (encostas de morros ou margem de rios, por exemplo), ou mesmo para conter epidemias, mas o fato é que este discurso muitas vezes foi usado por nossos governos para simplesmente afastar os pobres do olhar dos turistas (no caso de Fortaleza) e das elites, isolando-os o mais longe possível.

Assim, a urbanização vai acontecendo no Brasil de forma excludente: gerando espaços privilegiados de poucos. Todos, em tese, "têm direito" de ter onde morar, mas somente conseguem acessar esse direito os que possuem condições econômicas para tanto. Em termos reais, em não sendo tomadas medidas para garantir o igual acesso de todos, o que se está a fazer é legitimar uma ordem que preconiza o direito de alguns, em detrimento das necessidades de todos.

(...) há um vetor comum nas pontuais operações urbanas processadas nesse período: a apropriação de um repertório ideologizado de intervenção nas estruturas urbanas – o urbanismo como disciplina, tal como se codificava na Europa – instrumento modernizador por excelência, uma tentativa de equiparação da cidade brasileira aos patamares europeus ou a procura de uma tênue modernidade brasileira. (SEGAWA, idem, p.23)

Em 1875, o arquiteto Adolfo Herbster elaborou uma nova planta de Fortaleza, que serviu de plano-base para os demais estudos sobre a cidade, e principalmente no que diz respeito às obras viárias. Sousa (2009) afirma que esta planta foi de importância fundamental para o traçado urbano de Fortaleza, sobretudo porque as autoridades deram atenção para a criação de um transporte coletivo (o "bonde puxado a burro"), até então inexistente na cidade, bem como da primeira linha de trem, que foi inaugurada em 1873.

Ou seja, apenas no fim do século XIX é que começaram a ser inaugurados os serviços públicos de calçamento das vias principais, iluminação, telégrafo, etc. A canalização de água somente se deu em 1867, e funcionou de forma bastante precária por 10 anos.

Na Administração de 1931/1932, de Tibúrcio Cavalcante, a dita "administração revolucionária", foi dada especial atenção às questões viárias, sobretudo à pavimentação a concreto e ao prolongamento de algumas ruas. A partir daí o crescimento de Fortaleza começou a apresentar taxas expressivas. Foi criado nessa época um código de posturas, visando à proibição de construção de prédios com fachadas contínuas.

Conforme iam sendo inaugurados os serviços públicos, ainda que precários, continuava o ideário urbanista embelezador, com as influências européias apontadas por Segawa e Maricato.

Paralelamente a essa modelo de urbanismo importado da Europa, cujas preocupações eram majoritariamente embelezadoras, a população da cidade somente crescia. Este crescimento se deu em grande escala por conta das migrações, que no caso de Fortaleza normalmente são de pessoas oriundas do interior do estado. Segundo dados do IBGE, de 1940 a 1970 Fortaleza teve um saldo migratório de mais de 400.000 pessoas.

A partir da migração da população de outros municípios, e da elevada concentração de renda, começam a se formar as ocupações irregulares que são as chamados "favelas". O fenômeno da favelização encontra explicações mormente econômicas e sociais, inseridas no contexto maior da política brasileira em não priorizar os direitos fundamentais, aqui explicitado o direito à moradia. As primeiras favelas surgiram no período de 1930-1950, e algumas delas são: Cercado de Zé do Padre (1930); Lagamar (1933); Mucuripe (1933); Morro do Ouro (1940) e Varjota (1945).

Conforme dados da Prefeitura Municipal de Fortaleza, em publicação de 1996, entre 1950 e 1960, cresceu a uma taxa de quase 100%, revertendo no aparecimento de núcleos absolutamente desprovidos de infra-estrutura básica e espalhados pela periferia. Em vista dessas necessidades emergentes, foram criadas novas divisões administrativas na Prefeitura e numerosas comissões específicas.

Nos anos de 1940 a 1950, a cidade cresceu 49,9%, e no decênio seguinte o percentual foi de 90% de crescimento, pois a população passou de 270.169 em 1950 para 514.813 habitantes em 1960. Conforme Souza (2009), as estimativas apontam que a população de Fortaleza em 1975 era por volta de 1.100.000 (um milhão e cem mil) habitantes. Hoje a cidade ultrapassou 2,5 milhões, o que comprova o pico populacional também dos últimos trinta anos.

Com a grande seca de 1979 a 1984, veio outro agravamento à problemática urbana de Fortaleza, em virtude da população rural do Estado que chegava em massa à Fortaleza. A urbanização desordenada começava a se mostrar mais visível. Fortaleza, com o desenvolvimento econômico-cultural e com a migração, já demonstrava a necessidade de medidas urbanísticas solucionadoras, mas sobretudo preventivas. Datam desse período os primeiros movimentos organizados de bairros e uma intensificação das ações públicas para reduzir esse quadro.

O urbanismo deste período deu continuidade às medidas observadas nas décadas anteriores, com uma crescente preocupação para as obras viárias e à mobilidade na urbe. Ainda existia um forte viés embelezador e segregador, mas começam a aparecer alguns outros questionamentos, a exemplo dos levantados pelo arquiteto Sabóia Ribeiro (1947). Naquele ano, Ribeiro propôs o "Plano Diretor para Remodelação e Extensão de Fortaleza", que chegou a ser aprovado enquanto anteprojeto na gestão do Coronel Machado Lopes. O projeto final do plano foi apresentado em 1948 na gestão Acrísio Moreira, mas não foi aceito, acusado de não possuir estudos mais realistas, aprofundados, e de acordo com as possibilidades econômicas da cidade.

Costa (2009a, p.155) aponta que o plano proposto por Sabóia Ribeiro era inovador para a época porque trazia uma "preocupação pioneira com a preservação dos leitos dos riachos e das áreas verdes e com a delimitação de áreas verdes de parques". Este plano estabelecia, ainda que minimamente, a proposta de um zoneamento para a cidade, mas não chegou a definir os critérios para tanto.

Apesar da inovação proposta pelo plano de Sabóia, observa-se que o método de proposição se mantém o mesmo: algum engenheiro ou arquiteto ligado ao governo elabora um plano, encaminha ao Poder Público, que analisa e, se for o caso, providencia a aprovação. Daí a ser implantado ou não o plano, são outras dificuldades. O método unilateral de produção do ordenamento urbanístico, no entanto, é notório. Somente há poucos anos começou-se a falar em participação popular, tendo ganho esse discurso maior força nos anos 80, em especial com a Constituição Federal de 1988.

Antes da década de 80, falar-se em democratização do planejamento urbano era mais que uma utopia, quiçá uma loucura, tendo em vista que se compreendia (e ainda há quem pense assim) que discutir a cidade e o planejamento urbano é assunto para especialistas e técnicos, e a população não pode se inserir nos debates. Trata-se, em verdade, de um despropósito, mormente se consideramos que a cidade é construída por todos os que nela habitam. Ademais, muitas vezes quem melhor conhece os problemas urbanos são os habitantes de cada região, e não um especialista vindo de outra parte do país, às vezes até de outra nação.

Em 1963, o arquiteto Hélio Modesto, dando continuidade a estes planos construídos apenas por um especialista, elaborou um novo Plano Diretor que se ateve a aspectos econômicos e administrativos. Um grande problema deste plano foi que ele estabeleceu um zoneamento bastante segregador, na verdade foi o que Costa (2009) definiu como sendo a oficialização da segregação sócio-espacial, pois determinou a criação de 4 zonas diferenciadas em função do nível de renda da população. Compreende-se porque a autora falou em oficializar a segregação, tendo em vista que este plano sugeriu que, de forma legal, se dispusesse a respeito de áreas em que somente poderiam habitar os estratos sociais mais altos, e áreas destinadas às classes de baixa renda. Sabe-se, sem sobra de dúvidas, que somente restariam para os mais pobres as áreas sem nenhuma infra-estrutura, e seriam realmente só aquelas que não interessassem o mercado imobiliário formal.

A despeito de configurar um absurdo, a concepção deste plano deu origem a uma série de propostas urbanísticas que de fato foram adotadas, a exemplo da construção da Avenida Perimetral e da Avenida Beira-Mar, bem como da Avenida Luciano Carneiro, para possibilitar um melhor acesso ao aeroporto. O plano segregador de 1963 forneceu as diretrizes para a consolidação de uma série de melhorias urbanísticas que visavam atender apenas às elites. Não foi à toa que o primeiro bairro a ser beneficiado com a captação de água subterrânea das dunas foi a Aldeota, tratando-se de um direcionamento político que não se preocupa em atender as demandas da maioria da população.

Após estes plano de Hélio Modesto veio o Plano de Desenvolvimento Integrado para a Região de Fortaleza – PLANDIRF (1972). Novamente foram adotados vários projetos para o sistema viário (a exemplo das Avenidas Zezé Diogo, Aguanambi e Borges de Melo). Com o PLANDIRF também houve a instalação de alguns centros comunitários e a construção de conjuntos habitacionais com a finalidade da "desfavelização".

Em seguida, em 1975 foi aprovado o Plano Diretor Físico (Lei Municipal nº 4.486), que estabeleceu a divisão do município em zonas, determinando os usos e ocupação do solo diferenciados. Neste momento ocorria a acelerada expansão urbana para o Leste da cidade, nas proximidades da Praia do Futuro e a conseqüente valorização dos terrenos daquela área. Por conta disto, o mercado imobiliário realizou forte pressão sobre o governo, e conseguiu o aumento dos limites de densidade habitacional e a taxa de ocupação para a área, o que comprova que muitas das diretrizes urbanísticas municipais são fortemente influenciadas pelo mercado, conforme dissemos.

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Novos Planos Diretores Físicos foram propostos após este, sem participação popular alguma, até que se chegou ao novo Plano Diretor, publicado em 2009, conhecido por alguns como PDPFOR – Plano Diretor Participativo de Fortaleza.

Paralelamente a estes planos urbanísticos citados, em que a maioria considerava como preocupação central a malha viária urbana e estruturava um sistema de transporte voltado para o transporte individual, poucas foram as iniciativas públicas de efetivação do direito à moradia em Fortaleza. Alguns conjuntos habitacionais foram construídos nas últimas décadas, mas há o notório fato de que a construção de conjuntos de forma isolada de outras políticas públicas não resolve o problema do enorme déficit habitacional brasileiro. Ressalte-se, outrossim, a baixíssima qualidade das construções destes conjuntos, em regra, e a localização bastante isolada destas construções. São poucas as exceções, como é o caso do recente conjunto habitacional Maravilha.

A conclusão a que se chega, analisando o histórico das medidas urbanísticas em Fortaleza, bem como as poucas iniciativas governamentais no sentido de prover moradia para a população de baixa renda, é que não se enfrentaram as questões de fundo que geram o déficit habitacional urbano. E, se não são tomadas medidas no sentido de dirimir as desigualdades, perpetua-se estas desigualdades, muitas vezes até solidificando-as por meio de instrumentos legais.

É preciso, portanto, utilizar na gestão urbanística da cidade os instrumentos legais que possam favorecer a efetivação dos direitos fundamentais, sobretudo o direito à moradia no contexto do direito à cidade. Este breve histórico teve por finalidade apontar para a necessidade de se avançar e não cair nos erros dos planejamentos anteriores, tendo consciência de que a cidade está em disputa, e é mister utilizar os instrumentos como as ZEIS para possibilitar que esta disputa se dê de uma forma menos desigual e mais democrática.

3.2 Possíveis obstáculos à implementação das ZEIS

Após a leitura do PDPFOR, observa-se um extenso rol de dispositivos que, a priori, podem ser utilizados na política urbana municipal com a finalidade da democratização do acesso à terra urbana, como é o caso das ZEIS. Ocorre, no entanto, que existe possibilidade de que este Plano e as inovações por ele trazidas não saiam do papel.

Neste caso, o PDPFOR cumpriria uma função de "plano-discurso" conforme é apontado por Maricato (2000). O "plano-discurso" é aquele que esconde ao invés de mostrar, geralmente trazendo uma introdução ou justificativa de belos motivos, e um rol extenso de objetivos e diretrizes que visam a diminuição das desigualdades sociais, mas que na verdade não objetiva realmente alterar coisa alguma. O plano-discurso esconde, assim, a finalidade dos investimentos e das obras que obedecerão a um plano não explícito, escondido e aquém das necessidades da população.

É importante ressaltar que no Brasil há um extenso ordenamento urbanístico visando a produção e a distribuição regulada do espaço urbano. Ocorre é que esse ordenamento desconsidera completamente a maioria da população urbana brasileira, que vive na irregularidade, excluída do planejamento da cidade. Nesse sentido, em um primeiro momento, poder-se-ia pensar que a legislação urbanística, incluído aí o Plano Diretor, é ineficaz. Maricato, entretanto, aponta que

A ineficácia dessa legislação é, de fato, apenas aparente pois constitui um instrumento fundamental para o exercício arbitrário do poder, além de favorecer pequenos interesses corporativos. A ocupação ilegal da terra urbana é não só permitida como parte do modelo de desenvolvimento urbano no Brasil (...)

A ilegalidade na provisão de grande parte das moradias urbanas (expediente de subsistência e não mercadoria capitalista) é funcional para a manutenção do baixo custo de reprodução da força de trabalho, como também para um mercado imobiliário especulativo.

(MARICATO, 2000, p. 147-148, grifo nosso)

Dessa forma, a aparente ineficácia se revela como funcional ao sistema vigente, não apenas mantendo a situação irregular das moradias hoje, mas fazendo com que essa irregularidade se perpetue com bases sólidas. É neste contexto que o "plano-discurso" é formulado, com o claro objetivo de satisfazer formalmente uma exigência legal e também social, mas escondendo algumas das finalidades estruturantes para o governo e o mercado, que no futuro aparecerão. O "plano-discurso", portanto, é funcional para o mercado imobiliário, mas extremamente não-funcional para a cidade considerada como um todo, para os munícipes, e mais ainda para as classes populares, pois são elas que mais sofrem com o descaso para com a cidade informal.

É comum que apenas parte do Plano seja cumprida, ou ainda que somente seja aplicado o plano diretor àquela parte da cidade que corresponde à "cidade legal". Observa-se também a freqüente não-aplicação dos instrumentos que correspondem às melhorias urbanísticas para as classes populares, a exemplo das ZEIS de vazio. Oobstáculo central a ser enfrentado para a implementação das ZEIS, portanto, é a própria existência do plano-discurso, pois é necessário promover a sua superação,exigindo que sejam aplicados os instrumentos como as ZEIS, em benefício da população.

Algumas das dificuldades específicas foram apontadas ainda no capítulo 2, quando se analisou os dispositivos trazidos pelo PDPFOR sobre as ZEIS, a exemplo do número de planos que são necessários para a implementação das ZEIS. A necessidade dos variados planos que compõem o plano integrado de regularização fundiária, conforme dissemos anteriormente, constitui uma garantia para as populações de que as particularidades com relação às ZEIS serão respeitadas, e de que serão pensadas alternativas para os problemas da área. Uma garantia, em suma, para que os objetivos das ZEIS sejam de fato cumpridos. No entanto, o grande número de planos pode dificultar em função do tempo necessário para a sua elaboração, tempo este de difícil aceitação pela população com demandas há muito ignoradas.

Neste sentido, pode ser que o rol de planos necessários ao plano integrado constitua também uma dificuldade, mas é preciso que se esclareça que esta é uma dificuldade que deve ser superada. Admitir que as obras nas ZEIS se iniciassem sem a criação dos planos seria perder a possibilidade de firmar várias garantias perante o Poder Público, que vinculam também o interesse particular.

Não se questiona a existência destes planos, pelo contrário: acredita-se que o estabelecimento de uma ZEIS sem os devidos planos urbanísticos não é de forma alguma benéfico para a população, uma vez que inexistirá segurança jurídica com relação à manutenção das ZEIS. Apesar de serem necessários para conferir segurança e qualidade urbanística as ZEIS, é possível que, por serem vários, os planos específicos para as ZEIS constituam uma demora ou obstáculo formal para a efetivação das Zonas Especiais, dependendo da prioridade política que a elas seja dada.

Outro ponto que pode constituir obstáculo é a questão dos Conselhos Gestores, vez que o PDPFOR aponta que deve haver um Conselho Gestor para cada ZEIS, mas não existe qualquer dispositivo que as delimite ou forneça subsídios que esclareça sobre elas. A legislação neste ponto foi omissa, e neste caso uma omissão que pode atrapalhar e muito a implantação das ZEIS. A este respeito, consultar o ponto 2.3.2.

A dotação orçamentária é outro ponto polêmico, pois é extremamente necessário que todos os anos sejam previstas linhas de investimento para cada ZEIS na lei de diretrizes orçamentárias e a lei anual do orçamento municipal. Sem a previsão constante de investimentos, as melhorias previstas nas ZEIS se tornam ineficazes, uma vez que não terão aplicabilidade. O Plano Diretor, logo no início, momento em que são dispostos os objetivos e as diretrizes da política urbanística municipal, assegura que as leis concernentes ao orçamento municipal devem contemplar o que o plano determina para o desenvolvimento urbano.

Desta forma, sendo as ZEIS um instrumento prioritário da política urbanística municipal, é também prioritário que anualmente sejam previstos os investimentos que serão feitos nas áreas. Em não havendo essa previsão, estar-se-ia descumprindo o PDPFOR, de forma a possibilitar a caracterização de improbidade administrativa, pois a legislação é expressa com relação a esta obrigatoriedade.

Já está positivado, portanto, que a dotação orçamentária tem de prever os investimentos nas ZEIS, o que tem que ser discutido de forma constante é a efetivação desta garantia, bem como qual o percentual estabelecido para isto. É necessário que este percentual não seja ínfimo, para que se possa atender às demandas das várias áreas previstas como ZEIS, bem como a continuidade dos investimentos, não podendo estes ocorrer de maneira pontual.

Alguns dos fatores específicos que podem retardar ou mesmo impedir a aplicação das ZEIS são apontados por Ferreira (2007): a inexistência de sistematização das experiências no país; a descontinuidade das gestões municipais; a ausência de prioridade política; a adequação e coerência de conceitos e parâmetros técnicos e jurídicos; e a disputa na aplicação das ZEIS.

A primeira dificuldade apontada pelo autor é o fato de as ZEIS serem relativamente recentes e um tanto quanto inéditas na realidade brasileira, o que dificulta a sistematização teórica dos casos em que foram implementadas, ou das dificuldades que foram encontradas para sua concretização. Sabe-se que em alguns municípios paulistas, bem como Recife, as ZEIS foram criadas e efetivadas (ainda que, em alguns casos, parcialmente), mas ainda são poucos os estudos sobre esta questão, bem como inexistente uma sistematização consistente das experiências.

A sistematização seria bastante interessante para Fortaleza, por exemplo, para contribuir com as experiências bem-sucedidas, analisando-se, é claro, as particularidades regionais, bem como para proporcionar que a implementação das ZEIS se desse de forma mais rápida. O conhecimento dos erros e das dificuldades na aplicação das ZEIS também seria de suma importância. O ineditismo, neste caso, pode ser um fator que contribua para o retardamento da aplicação das ZEIS em Fortaleza.

Outro possível obstáculo é a descontinuidade das políticas públicas por razões político-partidárias, uma vez que é comum na política brasileira que, na alteração de gestões, sejam abandonados os planos e os projetos do governo antecessor. A continuidade das políticas públicas, via de regra, ocorre somente nos casos em que o novo governo é sucessor político do anterior. Em Fortaleza, o novo plano diretor e a conquista das ZEIS se deram na gestão Luizianne Lins, ainda que existam dúvidas se nesta gestão haverá prioridade para o estabelecimento das ZEIS.

Mesmo assim, foi na citada gestão que se iniciou o processo criador das Zonas Especiais, por meio da disposição expressa no PDPFOR. Há uma possibilidade e uma preocupação das classes populares de que, com a mudança da gestão municipal, a discussão sobre as ZEIS perca espaço na administração. Tal preocupação tem razão de ser, tendo em vista o exemplo de São Paulo, em que várias conquistas a respeito das ZEIS aconteceram no PDPFOR aprovado em 2002 e foram absolutamente esquecidas logo na primeira gestão subseqüente. (FERREIRA, 2007, p. 51)

A cobrança dos movimentos populares será fator crucial para o enfrentamento de obstáculos desta espécie, pois é necessário haver forte resistência contra este costume político criminoso existente no Brasil, que não encontra justificativa legal alguma. A descontinuidade de políticas públicas por razões político-partidárias é um crime para com a sociedade, pois constitui enorme desperdício de dinheiro público, que deveria ser destinado para a célere realização de serviços e obras públicas.

Uma outra dificuldade que pode ocorrer, configurando assim obstáculo às ZEIS e ao direito à moradia, é a ausência de prioridade política para a implementação das Zonas Especiais de Interesse Social. É necessário que as ZEIS sejam prioridade por parte da gestão municipal, caso contrário serão relegadas ao esquecimento e à ineficácia. Tendo em vista as contribuições que as ZEIS possibilitam ao direito à moradia, a ausência de prioridade política configura um claro desrespeito ao direito à moradia das classes populares.

As ZEIS precisam ser parte integrante da política habitacional, e portanto serem consideradas dentro do contexto da cidade, e não apenas como anexos pontuais. Ferreira (2007) aponta que é enorme a distância entre os tempos de elaboração e implementação dos Planos de Regularização e das demandas reais das comunidades localizadas em ZEIS. Ou seja, é preciso priorizar a política habitacional em torno das ZEIS, dando ênfase nos recursos financeiros e humanos necessários para diminuir o tempo da efetivação das políticas públicas, vez que o tempo é fator muito importante quando se está falando da efetivação de um direito fundamental. Quanto maior a prioridade dada pela gestão, de forma mais rápida e eficaz poderão ser as ZEIS estabelecidas, e este é um dos interesses maiores da população envolvida no processo de aprovação do PDPFOR.

A questão da adequação e coerência de conceitos e parâmetros técnicos e jurídicos é outra que pode ser obstáculo para a implementação das ZEIS, se aqueles parâmetros não forem estabelecidos de forma criteriosa, estudada e fundamentada por parte da gestão municipal. É primordial o estabelecimento preciso de conceitos, da quantidade e dos tipos de ZEIS, bem como da existência de critérios para a flexibilização dos parâmetros urbanísticos dentro das ZEIS.

A não-definição destes parâmetros imprescindíveis para a criação e manutenção das ZEIS geralmente repercute na demora ou no abandono dos planos das ZEIS. Algumas vezes, remeter a regulamentação destes parâmetros especiais para decretos ou leis específicas (e não exatamente as leis instituidoras das ZEIS) pode ser outro fator de demora e de possível ineficácia das ZEIS.

Ferreira comenta algumas das dificuldades sobre a necessidade da adequação desses parâmetros especiais:

Na maioria das vezes, esses parâmetros permitem índices altíssimos de ocupação e aproveitamento dos terrenos a fim de incentivar a produção de habitação social por parte do mercado imobiliário privado. No entanto, esses índices elevados, ao possibilitarem altas taxas de densidade e ocupação, podem acarretar resultados urbanísticos e arquitetônicos questionáveis ou de baixa qualidade. (FERREIRA, 2007, p. 50)

Neste sentido, o autor aponta que o estabelecimento das ZEIS deve se dar de forma integrada ao planejamento urbano, refletindo sobre quais devem ser os índices de ocupação e densidade, por exemplo, para que não se dê margens para distorções. O objetivo da criação das ZEIS é democratizar o espaço urbano e possibilitar a criação e a manutenção de habitação popular de qualidade e a baixo custo para as classes populares. Portanto deve-se evitar que o custo seja desproporcional ao esperado, ou que a qualidade urbanística das moradias decaia, bem como impedir que o mercado imobiliário invada às áreas previstas como ZEIS.

Para cumprir com o objetivo das ZEIS, é imprescindível o estabelecimento de parâmetros específicos para cada ZEIS, e que a criação destes critérios não se dê de modo isolado do restante da cidade.

Por fim, mas não menos importante, ainda como obstáculo a implementação das ZEIS pode-se apontar a disputa na aplicação das ZEIS. Não se olvida que as ZEIS são matéria controversa na política urbana municipal, sobretudo tendo em vista a enorme disputa que houve durante a discussão do atual PDPFOR. (vide a subseção 2.1.1) Agora, passado o momento dos debates acerca do projeto do PDPFOR, tendo em vista que ele já esta em vigor, certamente a aplicação das ZEIS também ocorrerá em meio a uma grande disputa entre as classes populares e o mercado imobiliário.

É certo que a disputa maior se dará por conta das ZEIS 3, de que falamos na subseção 2.3.2., uma vez que a delimitação de ZEIS em terrenos vazios gerará contenção dos valores da terra urbana (o que é intenção das ZEIS, mas vai de encontro aos interesses do mercado imobiliário). Além disso, as ZEIS de vazio vão propiciar espaços urbanos para o estabelecimento de habitação popular, o que novamente vai de encontro aos interesses do mercado. Neste sentido, claro está que a aplicação das ZEIS gerará conflito e disputa.

Em Fortaleza, as ZEIS se encontram ameaçadas não somente pelo mercado imobiliário, mas também pela possibilidade de as grandes obras governamentais minarem as conquistas sociais advindas no novo PDPFOR, a exemplo das ZEIS. Ainda que, neste primeiro momento, a concretude destes obstáculos não tenha sido observada diretamente por conta destas obras, as possibilidades de elas dificultarem – e muito – a efetivação das ZEIS estão cada vez mais presentes na mídia e nos discursos dos gestores municipais. Especificamente sobre estas obras, falar-se-á no próximo ponto.

3.3. O risco dos impactos das grandes obras

A conquista das Zonas Especiais de Interesse Social no ordenamento urbanístico municipal é bastante recente, mas, apesar disto, não tardou para que surgissem as ameaças à efetivação das ZEIS. Para além dos obstáculos legais para a instituição de novas ZEIS, ameaças externas e inclusive do Poder Público têm preocupado boa parte da população que reside em áreas previstas como ZEIS.

Dentre essas ameaças, pode-se destacar algumas que poderão implicar prejuízos no futuro, seja por conta de dificultarem as melhorias nas ZEIS, ou mesmo por alterar a legislação para desconfigurá-las enquanto ZEIS, conforme será abordado neste ponto.

3.3.1 O Estaleiro

Uma das primeiras polêmicas que despontaram na mídia a respeito do cumprimento do novo Plano Diretor foi a questão da construção ou não do Estaleiro Promar Ceará na praia do Titanzinho, localizada no Serviluz. Ocorre que o Serviluz é uma área prevista como ZEIS no PDPFOR, ou seja: a prioridade da área é habitação popular, não comportando, por óbvio, a construção de uma indústria desta magnitude.

3.3.1.1 A divergência inicial dos posicionamentos do Governo do Estado e da Prefeitura de Fortaleza

Apesar de a legislação municipal ser bastante clara a este respeito, o Governo do Estado tem feito forte pressão para que a Prefeitura de Fortaleza entre em consenso com o consórcio de empresas que se propõe a construir o Estaleiro, composto pelas companhias STX Europe e PJMR. A posição do Governo do Estado é declarada e abertamente em favor desta obra, ao contrário do que inicialmente se manifestou a Prefeitura, que nos últimos meses permaneceu desfavorável à construção do estaleiro no Serviluz.

Já em julho de 2009 o governador do Ceará dava mostras de aceitação ao projeto da instalação do Estaleiro no Titanzinho, e anunciou que o primeiro orçamento teria contrapartida de 60 milhões do governo do Estado em infra-estrutura, conforme matéria veiculada no jornal O Povo em 29/07/2009. [11]

Os argumentos levantados pelo consórcio das empresas e pelo Governo do Estado, que seriam vantagens advindas da construção do Estaleiro no Titanzinho são: a criação de 1.200 postos de trabalho e a possibilidade de aproveitamento da mão-de-obra local; a garantia de incentivos fiscais da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE; a menor distância entre o Brasil e a Europa e os EUA; e a proximidade do Titanzinho com a região portuária de Fortaleza.

Os benefícios, conforme se observa, são mais para o empreendimento (em especial com relação aos incentivos fiscais) do que para a comunidade propriamente dita. A vantagem que é apresentada para os moradores do Titanzinho é o número de empregos que, segundo o consórcio vencedor, possivelmente serão aproveitados da própria comunidade. Questiona-se, no entanto, se realmente serão os próprios moradores que irão trabalhar no Estaleiro, principalmente por conta da questão do nível de escolaridade que será exigido dos trabalhadores do empreendimento, bem como da necessidade de qualificação técnica.

A contrariedade da Prefeitura se dá em virtude de o Plano Diretor estipular que o Serviluz é uma ZEIS, e tal não foi uma garantia sem luta. Durante muitos anos a população do Serviluz tem reivindicado melhorias naquela área, sem ver suas demandas atendidas. Ademais, além da previsão expressa no PDPFOR enquanto ZEIS, os impactos desta obra seriam enormes, tanto sociais quanto ambientais, em virtude de ser uma zona litorânea frágil, e absolutamente inserida na zona urbana.

3.3.1.2 A opinião dos técnicos e estudiosos da área

O professor Jeovah Meireles, do departamento de Geografia da UFC, que realiza estudos na Praia do Titanzinho desde 1990, afirmou em matéria da Revista Universidade Pública [12] que não acredita que a construção do Estaleiro naquele local seja fundamental para a comunidade do Titanzinho. Meireles afirmou que aquela área constitui um "território extremamente complexo e incompatível com um equipamento industrial que poderá incrementar danos ambientais, potencializar a exclusão social e atrair outras indústrias poluentes".

De acordo com o que já está previsto e devidamente positivado no PDPFOR, o que deve ser realizado no Serviluz é a regularização urbanística e fundiária, que, conforme reforça Meireles, deve vislumbrar a sustentabilidade socioambiental prevista no Projeto de Gestão Integrada da Orla Marítima (Projeto Orla) e no novo Plano Diretor.

É uma área que deverá ser incorporada em projetos paisagísticos includentes e afirmativos, de revitalização dos sistemas ambientais que incluem as dunas do Morro Santa Terezinha e demais componentes históricos, como o farol do Mucuripe, de 1840. (MEIRELES, na citada matéria.)

É necessário que se diga que boa parte da população do Titanzinho tem a pesca como meio de vida, e a instalação do Estaleiro naquele local certamente traria prejuízos imediatos aos pescadores. Os pescadores da região perderiam a sua atividade econômica, ou seja, se tornariam desempregados e desprovidos de outra forma de sustento das famílias. Além disto, a praia do Titanzinho tem tradição no esporte nacional, com um grande número de surfistas campeões oriundos daquela região. O surfe é um esporte bastante praticado pela comunidade, e que configura um elemento da cultura local, não podendo ser desprezado neste debate.

O arquiteto Fausto Nilo também apresenta opinião contrária acerca da instalação do Estaleiro no Titanzinho. Fausto Nilo, em 04 de março de 2010, escreveu um artigo intitulado "Estaleiro ou vida urbana compartilhada", afirmando que é preciso liberar as orlas da função de "quintal urbano", e o que deve ser valorizado é a vocação turística destas áreas da cidade, principalmente em cidades como Fortaleza. Conforme Nilo,

Há convergências mundiais sobre a necessidade de libertar as orlas da função de ``quintal`` urbano. Isso porque elas favorecem com vantagens os negócios do novo século, principalmente se comparados os volumes de benefícios originados desses negócios com aqueles decorrentes da sucata mecânica do século que passou. O debate sobre a implantação de um estaleiro na praia do Titanzinho mostra que é chegado o momento em que Fortaleza precisa aderir ao padrão universal das boas práticas aplicando as técnicas urbanísticas de controle da alteração de valores com escala estratégica e visão sustentável. Segundo essa visão, um projeto de intervenção no ambiente urbano só deve ser realizado se houver cruzamento balanceado e demonstrável, na obtenção de benefícios econômicos, ambientais e sócio-culturais, a uma só vez. (NILO, em matéria veiculada em 04/03/2010 no O Povo Online) [13]

Aponta Fausto Nilo que a tendência mundial é da construção de empreendimentos deste porte somente em áreas afastadas da zona urbana, de onde estejam grandes concentrações populacionais, tendo em vista os consideráveis impactos trazidos por indústrias pesadas.

Por sua própria natureza física, a imagem urbana de um estaleiro com fronteiras fixadas por muralhas não se harmoniza com os espaços públicos de vizinhanças. A poluição sonora é insuportável. O intenso tráfego de cargas produzido pelas atividades relacionadas a ele será inevitável. Ninguém suporta a insalubridade de viver em proximidade de um estaleiro e isso pode ser constatado em todas as situações existentes no mundo. (NILO, idem, grifo nosso)

Conclui o citado arquiteto que a construção do Estaleiro no Titanzinho seria um contra-senso e um retrocesso, em especial por não se adequar à atual compreensão dos danos que um equipamento industrial desta monta pode trazer para áreas urbanas. Sugere Nilo, em oposição ao projeto do Estaleiro naquela área, que seja examinada uma alternativa sustentável do uso do solo para o Titanzinho, proposta que foi também levantada por Meireles.

O Governo do Estado tenta utilizar o "discurso do desenvolvimento" para convencer a população do Titanzinho que o Estaleiro trará investimentos e melhorias para a área, além do que milhares de empregos serão criados. Sabe-se, no entanto, que estes empregos exigirão alta qualificação, e dificilmente serão preenchidos pela população local. Além disto, o projeto do estaleiro já prevê que serão construídos apenas 8 navios, ou seja, o próprio prazo de duração destes "inúmeros empregos" é curto e determinado pela construção destes navios. O impacto da obra é gigantesco, para um objetivo que parece muito modesto: a construção pontual destes navios. Pouco se tem dito sobre a destinação que será dada a este Estaleiro após a construção destes 8 navios.

Não por acaso o Instituto dos Arquitetos do Brasil Secção Ceará – IAB-CE – emitiu opinião contrária à construção do estaleiro no Titanzinho. De acordo com notícia veiculada em 26/03/2010 [14], o IAB disse ser no mínimo inadequado este projeto, por não estar de acordo com a legislação e o planejamento urbano para aquela região. Além disto, há incompatibilidade com as vocações econômicas da cidade, que são mais voltadas para o turismo, de forma que a área seria muito melhor aproveitada havendo investimento em turismo comunitário no Titanzinho, por exemplo.

O IAB destaca ainda uma série de barreiras legais que inviabilizariam o projeto. Além de destacar que a área está classificada como Zona de Proteção Ambiental (ZPA) e Zona Especial do Projeto Orla (ZEPO), o documento desconstrói o argumento do Governo de que a área para o estaleiro seria "solo criado" - por ser uma área no mar que seria aterrada -, não estando, assim, submetida ao ordenamento jurídico municipal.

Contraditoriamente, em março de 2010 a Ordem dos Advogados do Brasil Secção Ceará - OAB-CE - elaborou um relatório técnico sobre a questão e emitiu um parecer favorável à instalação do Estaleiro no Titanzinho. Apesar de este documento ter a obrigação de conter uma avaliação técnica e jurídica sobre o empreendimento e a sua possível construção no Serviluz, o que se observou foi uma defesa aberta do empreendimento, endossando e repetindo os argumentos do Governo do Estado e do consórcio de empresas responsável pela construção.

O presidente da recém-criada comissão de Política Urbana e Direito Urbanístico, Laércio Noronha, afirmou a natureza do relatório apresentada pela OAB: "Na terça-feira vamos apontar quais os procedimentos jurídicos, técnicos e políticos que os empreendedores (PJMR e STX Europe) e o governo do Estado podem e devem adotar para que o estaleiro possa ser instalado no Titanzinho" [15]. Nessa entrevista o representante da OAB afirmou que o que motivou o relatório da OAB não foi de fato um estudo aprofundado sobre a possibilidade ou não da construção do Estaleiro naquele local, e sim a indicação dos procedimentos a serem tomados para que essa instalação possa ocorrer, ainda que, conforme o Plano Diretor, tal instalação seja ilegal porque contraria o zoneamento urbano e as ZEIS do Serviluz.

Em resposta a este parecer deveras parcial emitido pela OAB/CE, órgão que deve primar pela ética profissional e pelo exercício de profundos debates sobre a sociedade em geral e em específico sobre a cidade, a Rede Nacional de Advogados Populares seção Ceará – RENAP/CE em 22/03/2010 elaborou uma nota de repúdio, apontando a aberta defesa dos interesses das empresas consorciadas por parte da OAB, que deveria elaborar um parecer técnico e não parcial.

Esclareça-se que, no que concerne ao parecer proferido pela OAB-CE, a questão permanece em discussão dentro da entidade, tendo em vista a considerável discordância interna com relação ao teor do questionado parecer.

Compreende-se que este é um tema que está em disputa, e que o destino da ZEIS do Serviluz depende do desfecho deste impasse. Caso haja a instalação do Estaleiro naquela área, o que se daria em desconformidade com a legislação, entende-se que a ZEIS do Serviluz estaria em muito comprometida por conta dos impactos ambientais e sociais de uma obra deste porte. O próprio objetivo das ZEIS estaria ferido e talvez impossibilitado, qual seja promover regularização urbanística e fundiária das áreas, levando melhoria de vida para a população.

A finalidade urbanística atribuída àquela área é um impeditivo legal para que a obra aconteça naquele local, mas é sabido que o Estado no Brasil cultiva o vício da alteração da legislação conforme os interesses hegemônicos. A alteração do PDPFOR não foi descartada pelo governo, que neste caso se daria por meio de Emenda, por exemplo. Ressalte-se que qualquer alteração ao PDPFOR deve ser realizada novamente com participação popular, e todas as audiências públicas que forem necessárias.

3.3.1.3 A resistência do Serviluz e as audiências públicas

A população do Serviluz não está passiva diante disto, pelo contrário. Apesar do esforço dos empresários e do Governo em convencer os habitantes do Titanzinho pelo argumento do "discurso do desenvolvimento e do emprego", existe forte resistência do Serviluz ao Estaleiro. Como exemplo desta resistência, cita-se a realização, pelos moradores do Serviluz, do seminário "O Serviluz que queremos", em 26/02/2010.

Neste seminário, foi enfatizada a questão dos impactos que o empreendimento traria, e a população pôde discutir sobre os possíveis benefícios e os riscos que se apresentam diante da construção na localidade. A população participou ainda ativamente das audiências públicas que foram realizadas para debate acerca do Estaleiro Promar, tanto na Câmara Municipal de Fortaleza – CMF – quanto na Assembléia Legislativa do Ceará – ALCE.

Em 15/09/2009 foi realizada a primeira audiência pública sobre o Estaleiro na Câmara Municipal de Fortaleza, mas neste momento inicial prevaleceram as falas expositivas dos empresários e do governo sobre as vantagens advindas do empreendimento.

Já em 03/03/2010 foi realizada nova audiência pública na CMF, em que alguns moradores do Titanzinho organizaram uma caravana para seguir até a Câmara. Nesta audiência pública houve forte participação dos moradores nas discussões, e foi evidenciado pelos moradores presentes o posicionamento contrário à implantação do empreendimento.

Naquela ocasião alguns moradores do Serviluz expuseram seus questionamentos à imprensa, a exemplo de Michel Platini e Pedro Paulo Fernandes.

A nossa segurança é que o Plano (da Prefeitura) vai ter de passar pelo crivo da comunidade, que está decidida a mudar o projeto da forma com está. Para ser aprovado, precisa estar dentro da ZEIS. (...) Não vamos apoiar nem o projeto da Prefeitura. Se quiser fazer o projeto lá, terão que convencer a comunidade. (PLATINI, em matéria veiculada em 03/03/10 no Diário do Nordeste Online) [16]

Grande parte da população que pode ser afetada pelo estaleiro compareceu à audiência, se inscreveu na tribuna e deixou claro que é contra este projeto do Governo. (FERNANDES, em matéria do site da Adital em 04/03/10 ) [17]

No dia 04/04/2010 também foi realizada audiência pública, mas desta vez na Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, em que novamente participou a comunidade do Titanzinho, bem como os interessados na construção do Estaleiro.

É importante que se diga que, a despeito da resistência de vários moradores do Titanzinho, há quem concorde com o empreendimento, seduzido certamente pelo argumento do número de empregos. No entanto, a comunidade conseguiu organizar e publicar uma resistência massiva ao Estaleiro. Observou-se ainda, de forma infeliz, a tentativa de cooptação e enganação de alguns moradores através da realização de um abaixo-assinado que coletou assinaturas de quem, supostamente, seria a favor da instalação do Estaleiro no Titanzinho.

Ocorre que visivelmente o abaixo-assinado apresentava vícios como: a expressiva repetição de assinaturas; várias assinaturas elaboradas com a mesma caligrafia e sem apontar o RG e o CPF do participante; além do exacerbado número de 10.000 assinaturas coletadas em menos de uma semana. O referido abaixo-assinado foi entregue pelo vereador Salmito Filho ao Governador do Estado no dia 09 de março de 2010 como sendo uma suposta concordância da comunidade ao empreendimento.

A própria comunidade questiona o abaixo-assinado, com relação à ilegitimidade das assinaturas, tendo em vista que a iniciativa de realizar o abaixo-assinado não partiu da própria comunidade do Titanzinho, e há relatos de que foram contratados terceirizados para realizar o abaixo-assinado, e que muitos dos habitantes que o assinaram sequer sabiam do que se tratava. [18] A validade jurídica deste documento foi bastante questionada em razão das fortes suspeitas de ilegitimidade que se levantaram contra o abaixo-assinado, e várias lideranças do Titanzinho afirmam que o documento não os representa, sobretudo por conta dos vícios que lhe são visíveis.

3.3.1.4 A mudança de postura da Prefeitura de Fortaleza e um novo impasse

Apesar da resistência, a questão ainda permanece relativamente em aberto. Entre os meses de março a maio de 2010, o Governo do Estado insistiu fortemente para que a Prefeitura se reunisse com as empresas responsáveis, e em 01/05/2010 o governador Cid Gomes, durante a posse dos novos diretores da Associação Cearense de Emissoras de Rádio e Televisão – ACERT -, reafirmou a intenção de construir o Estaleiro na Praia do Titanzinho.

Mesmo que não se possa mensurar os impactos reais que a instalação do Estaleiro provocaria com relação à ZEIS do Serviluz, compreende-se que este é um risco possível, e que o melhor é a não construção do estaleiro naquela área. Diante das notícias mais recentes, resta uma apreensão diante do recuo da Prefeitura, mas diante das várias opiniões abalizadas sobre os prejuízos da construção do Estaleiro no Serviluz, compreende-se que a instalação do Estaleiro deva se dar em outra localidade.

Os impactos que poderiam ser causados às ZEIS do Serviluz são inúmeros, conforme foram os citados nesta subseção, e caso haja a implantação do Estaleiro naquela área, muito provavelmente estarão impossibilitados de ocorrer os benefícios previstos nas ZEIS.

A Prefeitura, que até poucas semanas era radicalmente contra a instalação do Estaleiro no Titanzinho, começou a dar mostras de alguma concordância com o projeto. Em momento algum a prefeita ou qualquer representante do governo municipal afirmou a concordância com relação à construção no Serviluz, mas em reunião com Paulo Haddad, diretor de uma das empresas do consórcio vencedor, a prefeita garantiu que o Estaleiro será construído em Fortaleza, mas ainda em local indefinido. A prefeita Luizianne Lins agendou ainda uma visita, para o dia 17/05/2010 ao Estaleiro Atlântico Sul, na Região Metropolitana do Recife, e Paulo Haddad, no dia 18/05/2010, virá à Fortaleza para identificar possíveis locais de construção.

No dia 19/05/2010 a prefeita Luizianne Lins afirmou à imprensa que o Estaleiro será construído em Fortaleza, representando a alteração de opinião que os movimentos populares receavam. A prefeita, juntamente com o empresário Paulo Haddad, afirmaram que a construção no Titanzinho está descartada, e que estão sendo consideradas as localizações do Pirambu e do entorno do Poço da Draga. No entanto, nada foi ainda definido com relação a isto, permanecendo o impasse.

Impende destacar que também os novos locais apontados como alternativas são problemáticos, em virtude do grande número de pessoas residentes nos locais. A alteração do possível local de construção não resolve a problemática dos danos sociais e ambientais advindos do empreendimento, somente os desloca para outros locais. Além disto, também existem ZEIS no Pirambu, por exemplo, e pode ser que os riscos corridos pelo Pirambu sejam os mesmos que temia a população do Serviluz.

Aparentemente estão afastados os riscos que o Serviluz corria com a instalação do Estaleiro naquele local, mas ainda não se pode dizer com certeza que aquela localização está descartada, sobretudo neste assunto que tem sido tão controvertido. Considerando os vários posicionamentos que a Prefeitura de Fortaleza apresentou nestes meses de polêmica, a população do Titanzinho ainda não está despreocupada, em especial com a possibilidade de o Titanzinho vir a ser reconsiderado como local de construção.

A prefeitura afirmou que o Titanzinho está descartado, bem como o empresário Paulo Haddad, que pela primeira vez se pronunciou sobre a impossibilidade de construção do estaleiro no Serviluz. [19] A Prefeitura se comprometeu ainda a construir o projeto urbanístico e de requalificação da área Aldeia da Praia, que é o que a comunidade do Serviluz anseia há vários anos. Espera-se que a postura da Prefeitura seja mantida com relação tanto ao compromisso de estar o Titanzinho descartado enquanto potencial localização, quanto com relação a este projeto de requalificação urbana, que aliás é obrigação da Administração em virtude de o PDPFOR ter estabelecido aquela área como ZEIS.

3.3.2 A Copa de 2014

Pouco tempo após a aprovação do novo PDPFOR, foram escolhidas as cidades brasileiras que sediarão os jogos da Copa de 2014 e Fortaleza foi uma das cidades selecionadas. Ocorre que o PDPFOR não previu obra nenhuma para fins de realização deste mega-evento esportivo, e de fato serão empreendidas as mais diversas obras nestes próximos 4 anos.

De início, em projeto apresentado pelo Governo do Estado do Ceará em parceria com a Prefeitura Municipal de Fortaleza, serão gastos mais de R$ 9,46 bilhões de reais nas obras previstas para serem realizados. É sabido por meio da experiência de outras cidades que sediaram mega-eventos esportivos que, conforme forem sendo realizadas as obras, provavelmente se observará que o valor investido ultrapassa e muito a previsão inicial. Somente para a construção e o melhoramento de estádios foram destinados R$ 451 milhões.

A maior parte deste montante de R$ 9,46 bi está destinada para o setor de Transporte e Trânsito, correspondendo a mais de 63% dos investimentos. Conforme o Projeto oficial para a Copa de 2014, está previsto um extenso rol de alterações viárias e de transporte na cidade e no Estado, como por exemplo:

a) Duplicação dos trechos 1 e 2 da BR 122;

b) Conclusão da BR 116 no trecho Horizonte-Itaitinga;

c) Implantação do terminal de passageiros no Porto do Mucuripe;

d) Conclusão das obras do METROFOR;

e) Criação do Grande Terminal da Parangaba, sendo extinto o Terminal Lagoa;

f) Criação de um ramal ferroviário ligando o Mucuripe ao Aeroporto e ao Castelão, dentre várias outras intervenções de grande e médio porte previstas no plano.

Diante disto, há três possibilidades: ou o Poder Público não realiza as obras incluídas dentro de Fortaleza, por estarem em desconformidade com o Plano Diretor (considera-se esta possibilidade bastante remota); ou haverá alteração do Plano Diretor para conformá-lo com as novas obras a serem realizadas para a Copa; ou as obras irão ocorrer à revelia do disposto no Plano Diretor.

O presidente da Câmara Municipal de Fortaleza, o vereador Salmito Filho, já se manifestou publicamente afirmando que o Plano Diretor será alterado, e esta é a situação que se nos assemelha mais provável. Fortaleza somente deixaria de realizar as alterações na cidade se realmente se comprovasse que inexistirá recursos para tanto, ou que não haverá como realizar as obras em tempo hábil. Acredita-se também que obras do porte das que se farão necessárias (a maioria delas com relação ao sistema viário municipal) não serão realizadas a despeito do Plano Diretor, porque será necessário um novo planejamento com relação a várias áreas da cidade.

Ocorre que, para ser alterado, o Plano Diretor necessitará cumprir os mesmos requisitos para sua elaboração anterior, ou seja: é preciso contemplar a participação popular. Qualquer alteração que não possibilite participação é eivada de vício material e é nula, devendo portando acontecer por meio das audiências públicas, conforme foi dito anteriormente.

Ademais, compreende-se que as alterações que por ventura sejam feitas não devem retirar as melhorias legislativas alcançadas pela população, a exemplo das ZEIS. Retirar qualquer das áreas que foram previstas como ZEIS configuraria um despropósito, sobretudo porque o intuito das ZEIS é melhorar a cidade, e não "atravancar o desenvolvimento".

É necessário que haja um forte acompanhamento desta questão por parte dos movimentos populares e das comunidades que compõem áreas de ZEIS, para resistir a quaisquer alterações que lhes sejam negativas neste sentido. Como se sabe, para a realização de grandes alterações viárias provavelmente será necessária a remoção de várias moradias, como é usual nos alargamentos e mais ainda na construção de novas vias.

A Copa de 2014 trará um grande contingente de turistas para as cidades-sede, e dentre elas Fortaleza, o que gerará um sobrefluxo de pessoas que a cidade, hoje, não conseguiria suportar. Para tanto, serão alargadas algumas das vias que dão acesso aos pontos turísticos a exemplo da Beira-Mar e também do Aeroporto, bem como provavelmente serão criadas novas vias para escoamento do grande fluxo que deve advir do aeroporto internacional quando da realização dos jogos.

A desapropriação de alguns imóveis já é esperada, pois é o usual quando se trata de alterações viárias na cidade, bem como a remoção de algumas ocupações irregulares que estejam localizadas em áreas que irão sofrer alterações. O risco para algumas comunidades é justamente este: que esteja prevista alguma grande obra para o local em que residem, pois certamente a remoção será apontada como única alternativa pelo Poder Público.

Algumas dessas áreas sob o risco de remoção estão localizadas dentro de ZEIS, como é o caso do Lagamar, que constitui uma área estratégica na zona urbana, relativamente central, e que pode dar acesso a várias áreas da cidade. O Lagamar provavelmente será alvo de projetos de ruas ou mesmo avenidas que dêem acesso ao Aeroporto, por exemplo, por ser considerado, conforme já dissemos, uma zona estratégica.

Ocorre que, por ser ZEIS, o Poder Público está vinculado às diretrizes urbanísticas previstas para aquela área, e quaisquer alterações (sejam ou não para a Copa) deverão contar com a aprovação do Conselho Gestor, tão logo ele for instituído. A remoção das famílias deve ser a última alternativa, somente após serem consideradas todas as demais possibilidades, pois a remoção deve ser entendida como medida excepcionalíssima. Não pode ocorrer é que as remoções sejam a política prioritária da administração, pois tal seria um contrasenso e desrespeito às garantias do Plano Diretor. O prioritário na ordem urbanística municipal são os instrumentos que viabilizem a moradia, e não as remoções, que são medida última e atentatória à dignidade das famílias removidas.

Ademais, se for ocorrer uma remoção, o PDPFOR determina que as famílias sejam realocadas em locais próximos aos de origem, conforme foi abordado no capítulo 2. Para acompanhamento desta e de outras questões com relação à Copa, foi criado o Comitê Popular para acompanhamento da Copa de 2014, articulação que congrega vários movimentos populares que vem, desde 2009, discutindo estas questões.

O Comitê Popular questiona, dentre outras coisas, a vultosa quantia a ser destinada para a Copa, trazendo investimentos que serão usufruídos apenas pela pequena parcela da população de Fortaleza que constitui as classes ricas. De fato aquele representa um valor consideravelmente alto a ser investido para a realização de um evento pontual, quando a maioria das demandas populares não é atendida e boa parte da população de Fortaleza vive com o descaso do Poder Público com relação aos seus direitos fundamentais.

O Comitê questiona, ademais, a inexistência de participação popular na discussão, planejamento e no acompanhamento das obras da Copa de 2014, bem como a polêmica questão das remoções, de que será palco muito em breve a cidade de Fortaleza em virtude da realização da Copa.

Por ora os problemas advindos da Copa existem enquanto perspectiva e probabilidade, pois somente neste e nos próximos anos se poderá ter uma noção mais clara dos impactos das obras advindas da Copa. No entanto, sabe-se que dificilmente as grandes obras previstas para sua realização ocorrerão sem prejuízos às famílias que residem em ocupações irregulares, sejam elas previstas ou não enquanto ZEIS.

O respeito ao PDPFOR é o que deve ocorrer, em especial com relação às áreas que já são ZEIS. Por serem ZEIS, estas comunidades devem ser dotadas de maior segurança com relação à posse, tendo em vista que é a segurança da posse um dos objetivos da ZEIS, ainda que os moradores não detenham o título de proprietários.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Marília Passos Apoliano. Da possibilidade de efetivação do direito fundamental à moradia por meio das Zonas Especiais de Interesse Social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2598, 12 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17112. Acesso em: 22 nov. 2024.

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