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Conciliação e administração pública

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A indisponibilidade do interesse público não inviabiliza conciliações pela Administração Pública. A legalidade e a economicidade as recomendam quando o Direito estiver ao lado da pretensão do administrado.


SUMÁRIO:1. Introdução. 2. Conciliação X indisponibilidade do interesse público: um falso mito; 3. A Administração Pública não está autorizada a conciliar apenas nas hipóteses previstas em Lei; 4. Conclusão; Bibliografia.


RESUMO

Este trabalho visa a mostrar que, ao contrário de ideia amplamente difundida, a indisponibilidade do interesse público não inviabiliza a realização de conciliações pela Administração Pública. Ao invés, princípios constitucionais como o da legalidade e da economicidade, impõem um dever à Administração de se dispor à conciliação judicial sempre que o Direito estiver ao lado da pretensão do administrado.

PALAVRAS-CHAVE: conciliação; Administração Pública; indisponibilidade do interesse público; princípio da legalidade; princípio da economicidade.


1. Introdução:

A doutrina processualista elenca a pacificação social como sendo um dos escopos da jurisdição [01]. E a conciliação talvez seja, dentre todas as formas de se resolver jurisdicionalmente um conflito, a que mais próxima chega desse objetivo, uma vez que, por ela, as próprias partes estabelecem livremente os termos e as condições para a solução da demanda [02]. A conciliação, ainda, na medida em que faz valer as vontades das partes na elaboração da norma do caso concreto, configura uma participação direta dos jurisdicionados na atuação de um dos poderes do Estado, o que é sempre salutar e desejável numa sociedade que se pretende democrática, aproximando-se do ideal manifestado pelo constituinte no parágrafo único do art. 1º [03].

A conciliação permite, outrossim, uma resolução mais rápida da demanda, e aí reverencia o princípio da duração razoável do processo, introduzido na Carta Magna pelo constituinte derivado por intermédio da Emenda Constitucional nº. 45/2004, inciso LXXVIII do artigo 5º [04]. Disso decorre ainda outro aspecto positivo da conciliação, caso se difunda sua adoção, que é o desafogamento do Judiciário, resultando na diminuição de processos em trâmite e, via de consequência, uma maior celeridade também na resolução de causas em que a conciliação não tiver sido realizada.

Tantos benefícios não passaram despercebidos pelo legislador ordinário. O artigo 125, IV do Código de Processo Civil, incluído pela Lei nº. 8.952, de 13/121994, prescreve que compete ao juiz "tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes". Assinale-se que essa tentativa, mais que uma faculdade do juiz, é uma obrigação sua, conforme se depreende sem maiores esforços interpretativos pelo verbo utilizado no caput do artigo (competir) e pelo conteúdo dos demais incisos do mesmo artigo 125 [05], que inequivocamente se configuram em deveres do magistrado.

Além disso, o legislador previu a realização de uma audiência de tentativa de conciliação no procedimento comum, tanto na modalidade sumária [06], quanto na ordinária [07]/ [08]. O mesmo ocorre no procedimento sumaríssimo dos juizados especiais [09], tendo a Lei nº. 9.099/95, inclusive, inovado ao prever a conciliação também para os processos penais relativos a crimes de menor potencial ofensivo. Outra inovação foi a criação da figura do conciliador, no artigo 7º, caput [10], que, sob supervisão do juiz, poderá conduzir a audiência de tentativa de conciliação, inclusive com a colheita de provas orais, se útil e necessário for para a obtenção da composição amigável, conforme disposto no artigo 16 da Lei nº. 12.153, de 22/12/2009 [11], extensível aos Juizados Especiais Federais por força do seu artigo 26.

Isso tudo mostra que a conciliação é instituto repleto de vantagens e via de promoção de diversos princípios insculpidos na Constituição Federal, e digna, por isso mesmo, de especial atenção do legislador ordinário, o que, todavia, não impede, infelizmente, que, fora os juizados especiais e a Justiça do Trabalho, ela seja coisa rara. Decerto por causa da propalada "‘cultura do conflito’ que predomina na mente dos operadores do direito" [12] – leia-se: juízes e advogados –, que obstrui a visão destes e das partes da relação litigiosa para as suas vantagens. E quando uma das partes é um ente público há ainda uma agravante a inibir a sua realização: o mito da contradição entre a conciliação e a indisponibilidade do interesse público.

Visando a afastar tal mito é que demonstraremos que a conciliação é juridicamente possível para os entes públicos. E mais ainda: verificadas certas circunstâncias, estabelece-se um poder-dever de a Administração Pública conciliar. Com isso, esperamos colaborar com a superação da cultura do conflito e a promoção de um Poder Judiciário que chegue mais próximo dos propósitos para os quais ele existe: efetivação da pacificação social com justiça e celeridade.


2. Conciliação X indisponibilidade do interesse público: um falso mito:

É amplamente difundido no inconsciente coletivo dos operadores do direito a ideia de que os entes que compõem a Administração Pública, por cuidarem de bens e interesses públicos, não podem reconhecer o pedido do autor [13] e, consequentemente, transigir. Partamos de um raciocínio simples para mostrar a inconsistência dessa ideia: pode um ente público reconhecer e satisfazer administrativamente a pretensão de uma pessoa, caso ela esteja amparada no Direito? Óbvio que sim, não há quem possa negar. Então por que não poderia fazer o mesmo em juízo? Sim, pois se o INSS pode deferir o pedido de um benefício previdenciário ou proceder à revisão de uma renda mensal inicial calculada erroneamente, ou se a União, por meio da Receita Federal, pode reconhecer administrativamente, no bojo de um processo administrativo instaurado pela impugnação do contribuinte, que um determinado lançamento tributário foi equivocado [14], o mesmo pode ser feito em juízo. Ou se defenderá que, uma vez que a pretensão não foi reconhecida administrativamente o ente não poderá fazê-lo em juízo, ainda que o erro esteja patente? Ora, lembremos que a Administração, no exercício do seu poder de autotutela, deve [15] anular os seus atos eivados de vício de ilegalidade, nos termos do artigo 53 da Lei nº. 9.784/99 [16], e não há razão alguma para crer que ela não possa reconhecer a existência do erro em juízo ou após o ajuizamento da ação.

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Um pensamento que parece estar por trás da negativa da possibilidade de conciliação pela Administração Pública é de que a transação representa sempre uma liberalidade em relação a um direito ou interesse, o que não é verdade. Um particular que estiver sendo demandado judicialmente pode transigir, oferecendo uma soma de dinheiro ao autor, apenas para ver-se livre do inconveniente moral de responder a uma ação judicial, embora não reconheça a procedência do pedido e até considere que a ação tem pouca chance de êxito. Estará, então, exercendo o direito de dispor livremente de seu patrimônio. A Administração não pode fazer o mesmo, isso é claro. Ela pode, contudo, admitir a pretensão do autor se o direito alegado tiver fundamento legal, o que é substancialmente diferente da atitude tomada pelo particular no exemplo dado, pois a transação, para a Administração, não se baseará no exercício de uma liberalidade, mas no cumprimento da vontade da lei. Aliás, em casos como esse a Administração tem o dever debuscar a conciliação, pois, do contrário, estaria ofendendo o princípio da legalidade [17] previsto no artigo 37, caput, da Constituição Federal [18] ao não observar a prescrição legal em que o direito pleiteado se sustenta.

O Juiz Federal Emmerson Gazda, na mesma linha de nosso raciocínio, sustenta que a Administração Pública possui um poder-dever de transigir em casos em que o Poder Judiciário fixou entendimento favorável ao administrado. Colhamos o magistério de suas próprias palavras:

Quando o Estado-Administração deixa de agir objetivamente pautando sua conduta pelo acertamento geral das obrigações que o próprio Estado, na sua função Judiciária, já fixou como devidas, fere o princípio da moralidade administrativa e o subprincípio da probidade administrativa. Desrespeita, ainda, o princípio da confiança que "estatui o poder-dever de o administrador zelar pela estabilidade decorrente de uma relação timbrada por uma autêntica fidúcia mútua, no plano institucional", quebrando algo essencial à própria existência do Estado que é a "confiança de um povo em si mesmo e nas instituições públicas". Na mesma linha, seguem os agentes administrativos que, tendo o poder-dever de analisar os casos concretos e realizar a composição das controvérsias já pacificadas, deixam de fazê-lo. [19]

Aliás, negar um direito que se sabe existente – ou porque a questão não envolve discussões mais profundas ou porque a jurisprudência já assentou entendimento nesse sentido – é uma conduta repudiada pelo legislador processual, que a tipificou como litigância de má-fé, nos termos do artigo 17, I, VI e VII, do Código de Processo Civil [20]. E partindo da Administração Pública essa conduta é ainda mais reprovável, tendo em vista que razões éticas e políticas baseadas no fundamento da existência do Estado e em seus fins recomendam que lhe seja atribuído um padrão moral de conduta mais elevado.

Assim, se a Administração Pública pode – rectius, deve –, em juízo, reconhecer a procedência de um pedido, então ela pode transacionar a respeito dele e realizar a conciliação. Este entendimento em nada destoa do reconhecimento da indisponibilidade dos direitos de que cuida a Administração Pública, pelo contrário. Celso Antônio Bandeira de Mello bem resume o que se deve entender por indisponibilidade do interesse público na seguinte passagem: "os bens e os interesses não se acham entregues à livre disposição da vontade do administrador. Antes, para este, coloca-se a obrigação, o dever de curá-los, nos termos da finalidade a que estão adstritos. É a ordem legal que dispõe sobre ela" [21]. Logo, se a ordem legal dispõe que alguém tem um direito em face da Administração, não pode ela fazer outra coisa senão o satisfazer, sob pena de ofensa à ordem legal que, por princípio constitucional, tem a obrigação de observar. Ofende, também, o princípio da finalidade, corolário do princípio da legalidade [22], por não dar a bens e valores a destinação legal, agarrando-se a eles com unhas e dentes processuais – preliminares, defesa de mérito, exceções, incidentes e recursos juridicamente infundados –, à revelia da vontade do Direito vigente. Não se trata a conciliação realizada por ente público, portanto, de livre disposição de bens e interesses públicos, mas sim de disposição vinculada aos termos das normas jurídicas.

Aqui, abrimos um parênteses para assinalar que, de acordo com tudo o que foi dito, ao contrário de entendimento propugnado por alguns [23], as normas que autorizam a realização de transação por entes da Administração Pública não tornam disponível o interesse público, mas apenas explicitam o que já dissemos: que, uma vez observada a existência do direito alegado pelo particular, está o ente público autorizado a transacionar sobre ele. Fosse disponível o interesse público, poderia, por exemplo, o INSS, nas causas previdenciárias de até 60 salários-mínimos, transacionar indiscriminadamente, ainda que sabedor da inviabilidade e improcedência da pretensão. Sim, pois poder dispor de interesses e bens quer dizer poder fazer com eles o que se bem quiser, inclusive cedê-los a quem não lhes faz jus, e certamente não foi esse poder que o legislador conferiu à Administração ao prever, no parágrafo único do artigo 10 da Lei nº. 10.259/2001 que "os representantes judiciais da União, autarquias, fundações e empresas públicas federais, bem como os indicados na forma do caput, ficam autorizados a conciliar, transigir ou desistir, nos processos da competência dos Juizados Especiais Federais".


3. A Administração Pública não está autorizada a conciliar apenas nas hipóteses previstas em Lei:

Tendo ficado demonstrado que não há oposição entre a indisponibilidade do interesse público e a realização de conciliação e transação pela Administração, há de se questionar se ela está autorizada a tanto somente nas hipóteses previstas em lei ou se também poderá fazê-lo praeter legem, ou seja, em casos que não tenham previsão legal expressa. Esta última opção é a mais acertada. Com efeito, se a conciliação, como ficou demonstrado, nada mais é que uma consequência do dever da Administração Pública de reconhecer e satisfazer o direito do administrado – dever esse decorrente do princípio constitucional da legalidade –, logo uma lei que a autorize a transigir nada mais faz senão explicitar esse dever em casos específicos. Assim, as leis com esse teor, a rigor, apenas dizem que o princípio da legalidade deve ser respeitado nas hipóteses nelas tratadas. Trata-se, portanto, de uma redundância, pelo que tais leis não seriam indispensáveis para autorizar a realização de conciliações. Pode-se pensar, contudo, que seria uma redundância que surte efeitos positivos se considerarmos que, assim, supera-se a resistência dos representantes dos entes públicos em realizar conciliações. Melhor seria, então, uma lei mais abrangente, que não tratasse de hipóteses específicas, mas genéricas, um verdadeiro estatuto da conciliação para os entes públicos, que não restringisse o juízo para proceder à conciliação a uma ou poucas pessoas, como fez a Lei nº 11.941/2009, que modificou a redação do art. 1° [24] e 2º, caput [25] da Lei nº 9.469/1997, conferindo maior liberdade aos procuradores.

A possibilidade de a Administração Pública realizar transação independentemente da existência de lei que a autorize já foi reconhecida pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em julgado com ementa de seguinte teor:

Poder Público. Transação. Validade. Em regra, os bens e o interesse público são indisponíveis, porque pertencem à coletividade. É, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa pública, não tem disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação desse interesse. (...).

(STF. 1ª T. RE nº. 253.885/MG. Rel. Min. Ellen Gracie. DJ de 21/06/2002). [26]

Uma questão importante destacada nessa decisão, e que, ao lado do princípio da legalidade, justifica a realização de acordos em hipóteses praeter legem, é que a conciliação pode, em verdade, atender melhor ao interesse público que a negativa em fazê-la. Isso porque, por definição, a transação exige concessões mútuas dos interessados, de modo que a Administração, quando concilia, economiza, pois pode fazer um acordo para pagar um valor menor que aquele a que provavelmente seria condenada. Além disso, poupa o tempo dos seus procuradores, evita custos administrativos inerentes ao acompanhamento processual e se livra do pagamento de honorários [27]. A iniciativa conciliatória, portanto, além de atender ao princípio da legalidade, presta contas também ao princípio constitucional da economicidade (artigo 70, caput) [28], ligado ao princípio da eficiência. O entendimento de Emmerson Gazda é no mesmo sentido, conforme passagem que transcrevemos a seguir:

Ora, apresentada a questão dessa forma, fica evidente que o Estado-Administração, ao insistir em recorrer de decisões judiciais que seguem precedentes já sedimentados pelas Cortes Superiores e sem qualquer elemento novo que possa implicar alteração do entendimento, não observa os princípios da economicidade e da eficiência, aumentando custos de sua própria estrutura de defesa e do Judiciário, mormente se considerada a possibilidade de propor acordos nesses casos (...).

O princípio da economicidade justifica, ainda, que em Juízo, uma vez superada a possibilidade de defesa jurídica com êxito, possa passar-se ao acordo como forma de defesa econômica. [29]

Com fulcro em premissas semelhantes, o também Juiz Federal Roberto Gil Leal Faria diz o seguinte:

Eis minha proposta: o que é indisponível é o "interesse público" em si, e não o entendimento de que o gestor público só poderia agir em determinada linha se houvesse diploma legal expresso que o autorizasse a tal. Nessa ótica, o "interesse público" seria alcançado observando-se não apenas o princípio da legalidade, mas também os da eficiência e da economicidade, igualmente constitucionais. De acordo com essa proposição, seria inadmissível o gestor público adotar postura omissiva, a gerar, na prática, prejuízo aos cofres ou à sociedade de modo difuso, sob a alegação de inexistência de lei que o autorize a agir com métodos contemporâneos para evitar tal prejuízo.

Aplicando o entendimento doutrinário acima, questiono: a Administração deve buscar a transação judicial nos processos em que a probabilidade de derrota é elevada? Estou convicto que sim. Afinal, de acordo com as peculiaridades da demanda, defender-se-ia o erário com a propositura de acordo em valores mais reduzidos do que os comumente adotados pelo Judiciário. (...) Cada caso (...) deve ser analisado isoladamente para se estabelecer uma lógica de economicidade. [30]

Restou assentado até aqui que a Administração pode realizar conciliação mesmo que não haja previsão legal autorizando-a a tanto. Cuidando-se, todavia, de bens e interesses disponíveis, o juízo a respeito da conveniência e oportunidade de fazê-lo está assentado numa liberdade restrita, não podendo o representante judicial dispor livremente deles como se estivesse cuidando de bens particulares. Por isso, é importante definir em que casos a conciliação pode ser realizada independentemente de previsão legal.

O critério que deve inspirar o juízo do representante judicial a respeito da possibilidade da conciliação é a harmonia entre a pretensão do autor e o Direito. E isto se verifica tanto quando houver precedentes jurisprudenciais afinados com as premissas normativas da pretensão, como quando o caso não envolver discussões mais complexas – como, por exemplo, na hipótese de a conduta administrativa estar maculada com vício de legalidade perceptível primo ictu oculi, ou em que a controvérsia estiver pontuada apenas por matéria de fato e esta tiver sido devidamente resolvida, em favor do autor, durante a instrução. Diga-se, aliás, que tais critérios devem balizar não somente o juízo do representante judicial nos casos em que não houver previsão legal expressa, mas também naqueles em que isto ocorrer. Com efeito, como já dito, não é porque a Lei nº 10.259/2001 autorizou a realização de acordos nos processos de competência dos Juizados Especiais Federais que os procuradores podem decidir sem quaisquer amarras se os realizam ou não. Se a pretensão do autor for manifestamente improcedente não é cabível a realização de acordo, esteja o caso inserido em hipótese prevista em lei ou não.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIORENZA, Fábio Henrique Rodrigues Moraes. Conciliação e administração pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2594, 8 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17131. Acesso em: 5 nov. 2024.

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