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A (ir)responsabilidade penal da pessoa jurídica.

Enfoques comparado, doutrinário e legal

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Agenda 01/10/2000 às 00:00

6. A (in)validade da Lei n. 9.605, de 12/02/98 (lei ambiental),
no que concerne à responsabilidade penal da pessoa jurídica

Como dito acima, entendemos que a Constituição de 1988 não consagrou a possibilidade de ser imputada às empresas a prática de condutas tipificadas como crimes. Sendo assim, tal texto legal encontra-se eivado de inconstitucionalidade. No entanto, iremos analisar, de forma objetiva, as disposições contidas na Lei n. 9.605, de 12/02/98 (lei ambiental), no que concerne à responsabilidade penal da pessoa jurídica.

O caput do art. 3º, do diploma legal em apreço, diz:

"As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade."

Segundo o texto legal, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas não exclui das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato, o que, segundo Shecaria(35), demonstra a adoção de dupla imputação.

O legislador ambiental adotou três modalidades de pena. Consagrou a pena de multa, as restritivas de direitos e a prestação de serviços à comunidade. Nestas duas últimas criou diferentes espécies.

Fazendo nossas as palavras de Cezar Roberto Bitencourt(36), merece uma análise especial a desajeitada, inadequada e equivocada Lei n. 9.605/98.

Para o supracitado Professor, "a simples introdução no ordenamento jurídico de uma norma prevendo a responsabilidade penal da pessoa jurídica não será solução, enquanto não se determinar previamente os pressupostos de dita responsabilidade.

          O reconhecimento da pessoa jurídica como destinatária da norma penal supõe, antes de tudo, a aceitação dos princípios de imputação penal, como fez, por exemplo, o atual Código Penal francês de 1992, em seu art. 121, ao introduzir a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Com efeito, a recepção legal deve ser a culminação de todo um processo, onde devem estar muito claros os pressupostos de aceitação da pessoa jurídica como sujeito de direito penal e os respectivos pressupostos dessa imputação, para não se consagrara uma indesejável responsabilidade objetiva. Desafortunadamente, não houve, no nosso ordenamento jurídico, aquela prévia preparação que, como acabamos de afirmar, fez o ordenamento jurídico francês."

De fato, na França tomou-se o cuidado de adaptar-se de modo expresso essa espécie de responsabilidade no âmbito do sistema tradicional. A denominada Lei de Adaptação (Lei 92-1336/92) alterou inúmeros textos legais para torná-los coerentes com o novo Código Penal, contendo, inclusive, normas de cunho processual, no intuito de um harmonização sistêmica.

Ademais, a lei francesa proclama o princípio da especialidade, o que somente torna possível a deflagração de processo penal contra a pessoa jurídica quando estiver tal responsabilidade prevista explicitamente no tipo legal de delito. Definem-se, assim, de modo taxativo, quais as infrações penais passíveis de serem imputadas à pessoa coletiva.

Embora inspirado pelo modelo adotado pelo Código Penal francês de 1994, que acabamos de comentar, o legislador pátrio de 1998 fez exatamente o oposto, pois de forma simplista, limitou-se a enunciar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, cominando-lhe penas, sem lograr, contudo, instituí-la completamente.

Luiz Regis Prado(37), comentando o tema, afirma que a Lei n. 9.605/98 não é passível de aplicação concreta e imediata, "pois falta-lhe instrumentos hábeis e indispensáveis para consecução de tal desiderato. Não há como, em termos lógico-jurídicos, romper princípio fundamental como o da irresponsabilidade criminal da pessoa jurídica, ancorado solidamente no sistema de responsabilidade penal, restrito e especial, inclusive com regras processuais próprias.

E continua o autor, agora em artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCrim, n. 70, de setembro de 1998: "Com efeito, o legislador de 1998 é pródigo no emprego de conceitos amplos e indeterminados – permeados, em grande parte, por impropriedades lingüísticas, técnicas e lógicas -, o que contrasta com o imperativo inafastável de clareza, precisão e certeza na descrição das condutas típicas. Nessa trilha, é de acentuar-se que a previsão de modalidade culposa para a conduta ancorada no art. 40 – causar dano direto ou indireto a unidade de conservação – denota sensível enfraquecimento da função de garantia do tipo penal, já que a noção de dano indireto culposo é altamente nebulosa. De semelhante, a incriminação prevista no art. 68 vale-se de termos imprecisos, conferindo ao intérprete vasta margem de discricionariedade (o que se entende por ‘obrigação de relevante interesse ambiental’?)."

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Portanto, no nosso entendimento, a Lei n. 9.605, de 12/02/98 (lei ambiental), em relação à responsabilidade penal da pessoa jurídica, está eivada por vícios materiais de inconstitucionalidade, pelas violações às mais elementares diretrizes constitucionais, quais sejam:

  1. princípios da legalidade dos delitos e das penas (art. 5º, inciso XXXIX, da CF e art. 1º, do CP), sobretudo na sua vertente taxatividade/determinação, em vários tipos penais albergados no diploma legal em comento;
  2. a disposição contida no caput do art. 3º, desta lei, constitui exemplo claro de responsabilidade penal objetiva, incompatível com os rígidos ditames dos princípios constitucionais da personalidade das penas, da culpabilidade, da intervenção mínima, entre outros, que regem o ordenamento jurídico pátrio.

7. Considerações finais

Na realidade dos nossos dias, grande parte dos delitos da chamada macro-criminalidade ou macro-delinqüência – infrações contra as relações de consumo, ordem tributária, ordem econômica e financeira, meio ambiente, entre outras – são cometidos através de pessoas jurídicas.

Tendo em vista esse dado crescente, afora os países da Common Law que tradicionalmente adotam a responsabilidade da empresa, vimos que muitos países, de filiação romano-germânica, vêm admitindo à incorporação em seus ordenamentos jurídicos de princípios excepcionais à regra geral da responsabilidade individual, como é o caso da Holanda e, mais recentemente, da França.

Em face daquilo que se discutiu no corpo deste trabalho, chegamos a algumas conclusões, já formuladas anteriormente, quais sejam:

  1. a pessoa coletiva não possui consciência e vontade – em sentido psicológico – exclusivos da pessoa física. Isto vale dizer: não é capaz de ser sujeito ativo do delito, pois sem estes dois elementos – consciência e vontade – é impossível se falar, tecnicamente, em ação, que é o primeiro elemento estrutural do crime;
  2. a incapacidade de culpabilidade da pessoa jurídica, haja vista que a noção aceita é a da culpabilidade pelo fato individual, atribuída somente ao ser humano, importa num chamado Direito Penal do fato ou da culpa, evitando-se a chamada responsabilidade objetiva ou pelo evento;
  3. a condenação do ente coletivo pressupõe a penalização de todos os membros da corporação, autores materiais do delito e membros inocentes do grupo jurídico, representando, pois, uma flagrante violação aos princípios da personalidade e da individualização da pena;
  4. no que toca à pena, as idéias de retribuição, intimidação e reeducação não teriam sentido em relação às pessoas morais, bem como os fins de prevenção especial, uma vez que a empresa é incapaz de sentir tais efeitos;
  5. a responsabilidade pessoal dos dirigentes não se confunde com a responsabilidade da pessoa coletiva;
  6. a Carta Magna não dotou o ente moral de responsabilidade penal; ao contrário, condicionou a sua responsabilidade à aplicação de sanções compatíveis com a sua natureza;
  7. a responsabilidade penal continua a ser pessoal (art. 5º, inciso XLX);
  8. a Lei n. 9.605/98 (lei ambiental) está eivada por vícios materiais de insconstitucionalidade, pelas violações às mais elementares diretrizes constitucionais, como os princípios da legalidade dos delitos e das penas (art. 5º, inciso XXXIX, da CF e art. 1º, do CP), sobretudo na sua vertente taxatividade/determinação, em vários tipos penais albergados no diploma legal em comento;
  9. a disposição contida no caput do art. 3º, desta lei, constitui exemplo claro de responsabilidade penal objetiva, incompatível com os rígidos ditames dos princípios constitucionais da personalidade das penas, da culpabilidade, da intervenção mínima, entre outros, que regem o ordenamento jurídico pátrio.

Além dessas conclusões, parece-nos inegável que a admissão da responsabilidade penal das pessoas jurídicas guarda "uma função meramente simbólica, pois ela atua sobre os imaginário dos atores que fazem parte do sistema (ao Estado fica a satisfação de haver feito algo e ao povo a impressão que os problemas estão sob controle). Essa tendência pode ser traduzida pela criação de novos tipos penais, o aumento das penas existentes, assim como a derrogação de princípios gerais ou a proposta de derrogação de dogmas, como o da pessoa jurídica."(38) (grifos nossos)

Reconhecemos a necessidade de um combate mais eficaz em relação à criminalidade moderna, por isso, adotamos a sugestão de Winfried Hassemer(39) de criar um novo Direito, ao qual denomina de Direito de intervenção - meio termo entre o Direito Penal e Direito Administrativo - que não aplique as pesadas sanções de Direito Penal, mas que seja eficaz e possa ter, ao mesmo tempo, garantias menores que as do Direito Penal tradicional.

Enquanto no plano legislativo não é implantada a teoria de Hassemer, a vigência do princípio societas delinquere non potest, de valor político relevante, não obsta ou inviabiliza a necessária aplicação de medidas sancionatórias extra-penais (administrativas ou civis) às pessoas jurídicas, notoriamente em um Direito Penal de ultima ratio e de natureza fragmentária.

Por fim, rematando o assunto, devemos sempre ter em mente que o Direito Penal não pode, a nenhum título e sob nenhum pretexto, abrir mão das conquistas históricas consubstanciadas nas suas garantias fundamentais, razão maior para o nosso posicionamento contrário à responsabilização penal da pessoa jurídica.


8. Nota

  1. Sanctis, Fausto Martin de - Responsabilidade penal da pessoa jurídica, São Paulo: Saraiva, 1999, p.09.
  2. Idem, p. 10.
  3. Ib idem, p. 10.
  4. Valeur, Robert, La responsabilité pénale des personnes morales dans les droit français et anglo-américains, Paris: Marcel Giardi, 1931, p. 231, apud Shecaira, Sérgio Salomão, op. cit., p. 50.
  5. Op. cit., p. 51.
  6. p. cit., p. 57.
  7. n Gomes, Luiz Flávio – Coordenação, Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 85.
  8. hecaria, Sérgio Salomão, op. cit., p. 59.
  9. p. cit., p. 61.
  10. In Direito penal ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 88 e 89.
  11. Op. cit., p. 61.
  12. Apud Shecaria, Sérgio Salomão, op. cit., p. 63.
  13. Op. cit., p. 86.
  14. Toledo, Francisco de Assis, Princípios básicos de Direito Penal, 4 ed., São Paulo: Saraiva, 1990, p. 91.
  15. Op. cit., p. 60.
  16. Bitencourt, Cezar Roberto, op. cit., p. 63.
  17. Apud Prado, Luiz Regis, op. cit., p. 146.
  18. Apud idem, p. 145.
  19. A pessoa jurídica criminosa, Revista dos Tribunais n. 717, p. 362.
  20. 15
  21. Op. cit., p. 64.
  22. A tutela penal do meio ambiente, in Dano ambiental, prevenção, reparação e repressão, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 314 apud Shecaria, Sérgio Salomão, op. cit., p. 116.
  23. Op. cit., p. 115.
  24. Ib idem, p. 115.
  25. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 11, p. 187-190.
  26. Boletim do IBCrim – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais n. 65.
  27. Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica, in Gomes, Luiz Flávio – Coordenação, Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 51-71.
  28. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 11, p. 97-98.
  29. Curso de direito penal brasileiro, parte geral, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 142-151.
  30. A responsabilidade da pessoa jurídica: Direito Penal na contramão da história, in Gomes, Luiz Flávio – Coordenação, Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 95-103.
  31. Responsabilidade penal da pessoa jurídica e sistemas de imputação, in Gomes, Luiz Flávio, op. cit., p. 160-173.
  32. Op. cit., p. 147.
  33. Op. cit., p.100.
  34. Op.cit.
  35. Apud Sanctis, Fausto Martin, op. cit., p. 60.
  36. Op. cit., p. 127.
  37. Op. cit., p. 70.
  38. Op. cit., p. 149.
  39. Oliveira, William Terra, in op. cit., p. 170.
  40. Apud Bitencourt, Cezar Roberto, in op. cit., p. 71.

9. Bibliografia

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GONÇALVES, Vitor Eduardo Rios – Sinopses Jurídicas – Direito Penal, Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1999.

KIST, Ataides – Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Leme/SP: Editora de Direito, 1999.

LOPES, Maurício Antônio Ribeiro – Princípios políticos do Direito Penal, 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

PRADO, Luiz Regis – Curso de Direito Penal, Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

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Direito Penal ambiental: problemas fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.

Princípios penais de garantia e a nova lei ambiental. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCrim, n. 70, setembro de 1998.

PIERANGELI, José Henrique – O consentimento do ofendido, 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

SANCTIS, Fausto Martin – Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1999.

SHECARIA, Sérgio Salomão – Responsabilidade penal da pessoa jurídica, 1ª ed., 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

TOLEDO, Francisco de Assis – Princípios básicos de Direito Penal, 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

Sobre a autora
Keity Mara Ferreira de Souza

servidora pública estadual em Natal (RN), especialista em Processo Penal pela UNP/FESMPRN

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Keity Mara Ferreira. A (ir)responsabilidade penal da pessoa jurídica.: Enfoques comparado, doutrinário e legal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1716. Acesso em: 23 dez. 2024.

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