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Perspectiva jurídica das raízes históricas dos direitos da criança e do adolescente.

Olhando o passado para compreender o presente

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Agenda 19/08/2010 às 16:51

O presente trabalho debate o Direito da Criança e do Adolescente a partir de seu surgimento na história da sociedade européia e brasileira.

RESUMO: O presente trabalho debate o Direito da Criança e do Adolescente a partir de seu surgimento na história da sociedade européia e brasileira. Assim, antes de tudo e por essa razão mesma, versa sobre direitos fundamentais, inalienáveis, indisponíveis, imprescritíveis, que devem ser promovidos e garantidos, em outras palavras, postos a salvo de qualquer relativização ou retrocesso. Neste sentido, será abordado o surgimento do sentimento de infância e as raízes históricas dos Direitos da Criança e do Adolescente na Europa e no Brasil, assim como o seu reconhecimento enquanto ramo autônomo da ciência jurídica – de caráter interdisciplinar –, e as implicações que a partir desse processo surgem no horizonte jurídico-institucional do Brasil. Espera-se, com isso, contribuir para a compreensão do atual momento histórico relativo aos direitos da criança e do adolescente, regido internacionalmente e no Brasil, pela Doutrina da Proteção Integral. Trata-se, em resumo, de lançar um olhar em direção ao passado para melhor se compreender o presente.

PALAVRAS-CHAVES: direito da criança e do adolescente, direitos fundamentais, Doutrina da Proteção Integral, infância e juventude.

ABSTRACT: This study discusses the Children and Adolescents Rights as from its emergence in the European and Brazilian history. Then, in the first place, addresses the fundamental rights, inalienable, unavailable, imprescriptible, which should be promoted and guaranteed, in other words, protected against any relativization or regression. In this sense, will address the emergence of the childhood feeling and the historical roots of the Children and Adolescents Rights in Europe and Brazil, as well as its recognition as autonomous branch of legal science - interdisciplinary - and the implications that arise from this process in the institutional and legal horizon of the Brazil. It is hoped that this would contribute to understanding the current historical moment of the children and adolescents rights, governed internationally and in Brazil, through Doctrine of Integral Protection. It means, in short, look at the past to better understand the present.

KEYWORDS: child and adolescent rights, fundamental rights, Doctrine of Integral Protection, childhood and youth.


HISTÓRICO DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Tanto na Europa Ocidental como no Brasil, a infância levou algum tempo para começar a ser considerada em suas especificidades. Assim, com algumas anacronias, o surgimento da infância e o desenvolvimento dos direitos da criança e do adolescente vêm permeando o discurso político brasileiro, expressando em leis as idéias e práticas institucionais relativas à infância.

Historicamente definida como uma espécie de pedra bruta a ser lapidada pelas mãos do escultor (adulto) a partir de concepções teóricas ultrapassadas – o Direito do Menor e a Teoria da Situação Irregular –, a infância conquista formalmente e em definitivo o seu espaço somente com o advento da Teoria da Proteção Integral, instituída pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, e regulamentada pela Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990, a qual aprovou o Estatuto da Criança e do Adolescente.

De uma posição secundária, seja porque a infância fosse uma fase passageira, seja em razão de sua (acreditada) relativa e transitória incapacidade intelectual, a criança passa a ser reconhecida como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento e como sujeito portador de direitos e capaz também de exercê-los.

Neste contexto, a linguagem jurídica exercerá um papel fundamental como instrumento de disseminação de preconceitos, de rotulações, que agridem ao mesmo tempo em que excluem, fazendo ecoar, pela tradição, conceitos como "menor", "menor abandonado", "criança de rua", "menor infrator", dentre outros.

Atualmente, no entanto, os termos "criança" e "adolescente" comportam algumas definições baseadas no critério etário, que diferem uma das outras. Sobre esse aspecto, Kaminski refere que:

[...] quando falamos apenas em criança, não é porque esquecemos o adolescente, mas porque criança é a categoria internacionalmente tratada "como todo ser humano com menos de 18 anos de idade" (Convenção Internacional de Direitos da Criança – ONU – Art. 1º). [...] a inovação das duas categorias distintas é brasileira, inexistindo menção anterior nas normas internacionais. [01]

Assim, se para o direito internacional a criança é todo ser humano com menos de 18 anos, no direito brasileiro o limite é igual, porém bipartido em duas categorias – a pessoa com até 12 anos incompletos é considerada criança e, entre 12 e 18 anos, passa a ser adolescente. Neste sentido, a regra geral adotada neste trabalho é a do direito internacional, que confere ao termo criança um sentido mais largo.

Então, no percurso da história dos direitos das crianças e dos adolescentes se percebe que esta é muitas vezes sombria, mas também alegre; seu enredo dramático, mas com capítulos românticos; e os seus atores, tanto revelam o que de mais sórdido o gênero humano é capaz de produzir pela ação e pela omissão, quanto traduzem, na meiguice indefesa dos sorrisos resgatados, na brincadeira ingênua e tardia de uma infância roubada e na abnegação e perseverança de pessoas que buscam, pela ciência ou não, melhorar as condições de vida e de desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, a face mais incrível da humanidade, a luz que para além das crenças, é capaz de carregar de significado o itinerário do ser humano pela Terra.

Por isso um esforço a mais é necessário para superar a abstração puramente teórica e tautológica e para tornar válida a discussão de tema tão relevante, porque desta forma foram e são criados os consensos limitadores do sendo crítico, e é por esta via que haverá de ser sedimentada a cultura do respeito aos direitos da criança e do adolescente – repetindo-a até que se torne realidade.


A infância na sociedade européia ocidental

Durante a Idade Média a criança, européia ocidental vale dizer, sai do anonimato, de uma condição de não-ser transitório e de pouco ou nenhum valor na conformação da família, para ser percebida somente em seus primeiros anos de vida e, ainda assim, por meio de efêmeros sentimentos de bajulação – não existia à época uma consciência a respeito da particularidade infantil. [02]

A necessária transição de períodos na vida humana que, num reducionismo, se poderia chamar apenas de faixas etárias, mas que na realidade consistem em etapas de desenvolvimento físico, psicológico e afetivo muito mais complexas, por muito tempo sequer foi reconhecida, quanto mais respeitada como sendo um período que exige proteção especial em vista do ingresso das crianças na "era" das responsabilidades impostas pela vida social a partir e além da família.

Assim, na medida em que a criança adquiria características comuns aos adultos, como a fala, a capacidade de se locomover, a força física, a ela eram atribuídas as mesmas tarefas incumbidas aqueles, indicando – essa ausência de lapso temporal entre a infância e a fase adulta – que a sociabilidade se dava especialmente fora da família, por meio da aprendizagem. [03]

No itinerário da Idade Média para a Idade Moderna ocorre, então, essa transformação na maneira de se perceber a criança. Ao longo desse período, diversos signos (vocabulário, iconografia, roupa) atestam a passagem da ausência de um sentimento de infância, passando pelo tímido reconhecimento da criança como objeto de entretenimento afetivo, caracterizado pela "paparicação", até o despertar de eclesiásticos, políticos e juristas desejosos de controlar essas crianças outrora negligenciadas. [04]

Neste sentido, percebe-se uma relação a priori entre a multiplicidade de termos (categorizados cronologicamente) com que foram designadas as crianças ao longo da Idade Média – as idades da vida –, com a preocupação do homem Antigo em datar eventos, ressalvando, porém, que esta representação das idades decorria da predileção daquela época pela idade do "homem jovem" diante da perspectiva do fim da vida e do alto índice de mortalidade infantil, e não porque houvera alguma formulação que se parecesse com a moderna acepção desses termos. [05]

Também como parte dessa transfiguração do real despercebido para o abstrato imaginado, a arte medieval e depois a moderna passam a retratar a criança. Primeiro com motivos cristãos cujo tema central geralmente era o menino Jesus; depois em retratos familiares que registravam crianças mortas (o que denuncia que elas já não eram tão insignificantes apesar de continuarem a morrer em grande quantidade); e, por fim, crianças nuas, em contextos familiares e em trajes infantis, não mais iguais aos dos adultos, sugerindo outra correlação com o processo de desenvolvimento de um sentimento específico de infância. [06]

Entretanto, a aparição deste sentimento não significou uma condição de vida melhor para as crianças de então. Junto com a esta nova categoria de pessoa, apartada da dos adultos, veio a estigmatização da criança como um ser inferior, totalmente dependente dos adultos e objeto de sua exclusiva vontade. Em relação a este último aspecto, Kaminski leciona:

[...] quando a criança passou a ser identificada como uma pessoa destacada dos adultos, passou ela a ser uma pessoa que não tem, que não pode, que não sabe [...]. Decorre disso que a criança que surgiu já nasceu com um contorno negativo, assumindo uma condição de objeto de vontade dos outros, não sendo descoberta como um sujeito de direitos [...]. [07]

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A compreensão do processo de "emancipação" ideal da infância ocidental passa por reconhecê-lo como algo fluído, que nega a concepção determinista e linear da história e que, por isso mesmo, não deve ser generalizado para todas as civilizações, haja vista as particularidades existentes em cada cultura e etnia.


A infância na sociedade brasileira

Especificamente no Brasil, a história da infância assume contornos mais trágicos, caracterizados pelo longo rol de violações durante o período colonial, tanto das crianças embarcadas de Portugal para o Brasil, quanto em relação às que já estavam em terras brasileiras - a criança indígena, aqui referida somente a título de lembrança, posto que uma abordagem de sua história requeira um trabalho à parte.

Num primeiro momento, são as relações da colônia com a metrópole a origem da perpetração de violências contra crianças que, vindas de Portugal, chegavam (quando chegavam) ao Brasil exauridas, vilipendiadas, traumatizadas, exploradas de todas as formas. O que ratifica a idéia de que a organização da família em torno da criança não pode ser analisada como um processo linear, pois nesta época somente em algumas regiões, como a península ibérica, ocorria a venda de crianças à coroa para serem exploradas nas embarcações como grumetes e pajens. [08]

Retratando esse período de insensatez, Ramos refere que:

Se eram poucas as crianças embarcadas, o número de pequenos que chegavam vivos ao Brasil, ou mesmo à Índia, era ainda menor, e com certeza nenhum conseguia chegar ileso ao seu destino. [...] quando não pereciam durante a viajem, enfrentavam a fome, a sede, a fadiga, os abusos sexuais, as humilhações e o sentimento de impotência diante de um mundo que não sendo o seu tinha que ser assimilado independentemente de sua vontade. Combater o universo adulto desde o início seria tentar vencer uma batalha que já estava perdida. [09]

Evidencia-se, sobejando estas características próprias e bastante marcantes, que o cenário geral de descaso e invisibilidade acerca dos direitos da criança e do adolescente era igual ou pior que o do continente europeu.

Sendo um país economicamente fragilizado e de industrialização tardia, herdeiro de uma tradição escravocrata e de exploração do trabalhador (inclusive infantil), o Brasil não detinha, em fins do século XIX, condições sócio-econômicas que exigissem das pessoas essa nova postura capaz de qualificar, pela natureza das relações de produção, tanto a vida privada quanto a educação. [10]

Com efeito, a sociedade brasileira importou os princípios e valores da européia através dos processos de invasão, colonização e exploração, adaptando-os à opção política da escravidão, que persistiu até o final do século XIX, processo este tipicamente brasileiro, numa tentativa de aliar os postulados econômicos do liberalismo com um modo de produção escravagista, contrariando, assim, princípios que há algum tempo já vigoravam na Europa e que eram contrários à escravidão.

Assim, porquanto convivera durante muito tempo com a escravidão, no Brasil o ser criança foi profundamente marcado pelo atraso, a ponto de permitir o desenvolvimento de uma história, sob certos aspectos, autônoma.

Ainda hoje se convive com algumas idéias atrasadas a respeito das questões que envolvem a garantia e a promoção dos direitos da criança e dos adolescentes, como reflexo do contexto em que a escravidão fora abolida no Brasil, onde as relações de produção, redesenhadas pelo capitalismo incipiente, contribuíram para que a Lei Áurea fosse:

[...] interpretada como doação, concessão feita aos escravos [...]. Vários estudos dialogaram, de certa forma, com essa interpretação que viu a abolição como resultado da "benevolência" das elites brasileiras. Muitos deles mostraram que a legislação emancipacionista que marcou o processo de abolição no Brasil explica-se pela necessidade de adequação do país às exigências do capitalismo, que, já tão desenvolvido em outras paragens, se encontrava aqui obstruído pela arcaica vigência das relações escravistas de produção. [11]

Essa inglória realidade social e política, de uma escravidão em vias de extinção, de um país em processo de industrialização, com uma política de imigração como fonte de força de trabalho, a ausência de infra-estrutura e de políticas públicas, a predominância da exploração do trabalhador gerando extremas desigualdades sócio-econômicas e uma cultura de negligência ou de negação da criança como sujeito de direitos, dão conta de fornecer os elementos que serviram de contenção para que as crianças brasileiras tivessem que esperar até a promulgação da Constituição da República, em 5 de outubro de 1988, para serem reconhecidas enquanto categoria jurídica e como ser social.

No mesmo sentido, analisando a questão sob o ponto de vista da malfadada e crônica exploração do trabalho infantil que retroalimenta o círculo intergeracional da pobreza, Veronese e Custódio asseveram que:

A transição, portanto, da escravidão para o trabalho livre, não viria a significar a abolição da exploração das crianças no trabalho, mas substituir um sistema por outro, considerado mais legítimo e adequado aos princípios norteadores da chamada modernidade. O trabalho infantil continuará como instrumento de controle social da infância e de reprodução social das classes, surgindo, a partir daí, outras instituições fundadas em novos discursos. [12]

Essas diferenças e similitudes são fundamentais para compreender o modo pelo qual o país incorporou a sua práxis social, assistencial, jurídica e política, o lento deslocamento da infância e juventude para o centro das atenções familiares e públicas, e para percebermos o quanto persiste no imaginário popular essa herança de hábitos que em comum possuem a estigmatização das crianças como objeto de desejo dos adultos, como promessas futuras e de incompletude transitória.

Desta forma, toda essa carga cultural refletiu também na produção das leis. [13] Por meio da história constitucional e legal do Brasil revela-se a maneira com que não mais a família ou a sociedade em geral, mas o legislador tratou e trata as questões que envolvem os direitos das crianças e dos adolescentes.

A primeira Constituição brasileira, que foi a Constituição Política do Império do Brasil, promulgada pela Carta de Lei de 25 de março de 1824, não fazia nenhuma referência à criança e ao adolescente, ou à infância e à adolescência, apenas previa em seu artigo 15, inciso IV, que era atribuição da Assembléia Geral nomear um tutor ao Imperador menor caso o seu pai não o fizesse em testamento e, em seu artigo 121, que o Imperador seria menor até á idade de dezoito anos, revelando somente uma idéia de menoridade, restrita ao âmbito da capacidade civil.

Além de questões relativas à menoridade do imperador, o artigo 92, inciso I, da Constituição do Império, [14] estipulava uma espécie de menoridade eleitoral, pela qual eram excluídos do direito de votar nas Assembléias Paroquiais os menores de vinte e cinco anos, exceto os que fossem casados e os oficiais militares maiores de vinte e um anos, assim como os que fossem bacharéis e os clérigos das ordens sacras.

Entretanto, durante esse período pré-republicano, sobretudo na segunda metade do século XIX, a idéia assistencialista e de caridade, em que pese à omissão constitucional em torno da infância, já fazia parte da política governamental.

A força de trabalho infantil oriunda das Rodas dos Expostos era aproveitada nos serviços domésticos, no comércio e na indústria incipiente ou, ainda, essas crianças em situação de abandono e as oriundas de famílias pobres, poderiam ser recrutadas pela Companhia de Aprendizes Marinheiros ou Aprendizes do Arsenal de Guerra, [15] ainda que já houvesse, à época, iniciativas que permitissem às crianças pobres frequentar escolas primárias e secundárias. [16]

Outro aspecto marcante do período que antecede a República é a intensificação das práticas de internação de crianças e jovens em asilos, colégios internos e outras instituições correlatas, onde a individualidade era demarcada tanto temporal quanto espacialmente pelas normas institucionais que estabeleciam relações de poder desiguais e que orientavam a internação por duas perspectivas: a primeira, que visava a educação dos filhos da elite, persistiu até a metade do século XX; já a segunda, que era direcionada aos pobres, cujos filhos passaram a assumir o status de ameaça social, exigia um controle estatal mais efetivo dessa nova categoria jurídica – menores de idade –, vige até os dias atuais. [17]

Na esfera penal, o Código Criminal do Império do Brasil, sancionado no dia 16 de dezembro de 1830, instituía a inimputabilidade relativa dos menores de 14 anos, eis que adotando a teoria da ação com discernimento, estipulava também a pena de recolhimento a casas de correção aos que, compreendidos nessa faixa etária, cometessem crimes conscientes de sua conduta ilícita. [18]

O Código Criminal do Império também previa em seu artigo 18 a atenuante etária aos menores de 20 anos e a restrição quanto à aplicação da pena de galés aos menores de 21 e maiores de 60 anos, [19] pena esta que viria a ser revogada pelo parágrafo 20 do artigo 72 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891 – a primeira Constituição republicana brasileira. [20]

Semelhantemente, o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, promulgado pelo Decreto n.º 847, de 11 de outubro de 1890, portanto já no período republicano, não reconhecia como criminosos os menores de 8 anos completos e os maiores de 9 e menores de 14 anos que cometessem crimes sem discernimento. [21]

Persistia, então, a teoria da ação com discernimento, [22] inclusive com a previsão da pena de recolhimento a estabelecimentos disciplinares industriais até, no máximo, os 17 anos de idade, bem como a atenuante referente aos menores de 21 anos de idade e a obrigatoriedade da aplicação da pena de cumplicidade aos delinquentes maiores de 14 e menores de 17 anos de idade. [23]

Neste ínterim surge a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, estipulando que a maioridade eleitoral se dará aos 21 anos de idade, mediante alistamento na forma da lei. [24]

Posteriormente, a Lei n.º 3.071, de 1º de janeiro de 1916, que instituiu o primeiro Código Civil brasileiro, em substituição à legislação portuguesa, dispôs sobre a incapacidade civil absoluta dos menores de 16 anos (art. 5º, inciso I) e a incapacidade relativa dos maiores de 16 e menores de 21 anos. [25]

Durante a vigência da Constituição da República de 1891, foi editado o Decreto 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, [26] que consolidava as leis de assistência e proteção a menores, instituindo o primeiro Código de Menores brasileiro, oito anos após promulgação, na Argentina, da Lei Agote de 1919, que foi a primeira legislação específica sobre a infância na América Latina. [27]

O Código de Menores de 1927, em seu artigo 1º, previa uma série de medidas de assistência e proteção ao menor de 18 anos de idade abandonado ou delinquente. Também esquadrinhava em quatro capítulos os alvos de sua regulação, a saber: as crianças da primeira idade (capítulo II), os infantes expostos (capítulo III); os menores abandonados (capítulo IV) e os menores delinquentes (capítulo VII).

Evidente, pelos próprios termos da referida lei, que as "medidas de assistência e proteção" nela previstas não eram direcionadas a todas as crianças, mas somente àquelas "abandonadas ou delinquentes", situações estas tidas por irregulares e passíveis de intervenção governamental.

Desta forma, porquanto nascida em um contexto de acirramento das contradições sociais provocadas pela expansão do capitalismo industrial no início do século XX, com suas jornadas de trabalho extenuantes remuneradas com baixos salários, a legislação "menorista" expunha as famílias dos trabalhadores a privações que exigiam a participação também das crianças no sustento da casa.

Além disso, ao introduzir o chamado período "menorista" de assistência à infância, o Código de Menores de 1927 renovou o estereotipo infantil de "ameaça social", porém não mais relacionado à educação formadora e reformadora, mas como questão de segurança pública ou caso de polícia, abordagem que será novamente retomada pela ditadura militar, sob o viés da ideologia da segurança nacional.

Importa destacar que essa nova concepção de assistência à infância não foi fruto tão somente da vontade dos legisladores, pelo contrário, muitos segmentos da sociedade, notadamente a classe científica – médicos higienistas, psiquiatras, psicólogos, cientistas sociais –, contribuíram para construir a idéia de que as crianças oriundas das classes populares deveriam ser objeto de intervenção estatal, fosse por meio da assistência social ou da assistência jurídica:

Desde o início do século XX, autoridades públicas questionavam a falta de método científico no atendimento ao menor no país. Com a instauração da justiça de menores, foi incorporado na assistência o espírito científico da época, transcrito para a prática jurídica pelo minucioso inquérito médico-psicológico e social do menor. [28]

Resumidamente, o Código de Menores de 1927 apresentava as seguintes modificações no cenário legal e institucional referente à infância:

1 - Instituiu um Juízo Privativo de menores; 2 - elevou a idade da irresponsabilidade criminal do menor para 14 anos; 3 – instituiu o processo especial para menores infratores de 14 a 18 anos; 4 - estendeu a competência do Juiz de Menores aos abandonados e anormais; 5 - estendeu a competência do Juiz de Menores à matéria civil e administrativa; 6 - autorizou a intervenção do Juiz de Menores para suspender, inibir ou restringir o pátrio poder, com imposição de normas e condições aos pais e tutores; 7 - regulou o trabalho dos menores; 8 - criou o centro de observações dos menores; 9 - criou um esboço de Polícia Especial de Menores dentro da competência dos comissários de vigilância; 10 - procurou criar um grande corpo de assistentes sociais sob a dominação de "delegados de assistência e proteção" aos menores, com a participação popular, como comissários voluntários e como membros do Conselho de Assistência e Proteção aos Menores. [29]

Por seu turno, incorporando a menoridade prevista no Código de Menores, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934, em seu artigo 121, previa a proibição de qualquer trabalho a menores de 14 anos, de trabalho noturno a menores de 16 e em indústrias insalubres, a menores de 18 anos e a mulheres. No parágrafo único do artigo 146, o qual dispunha sobre o casamento, também fazia referência ao juiz de menores.

Ou seja, a figura do juiz de menor já existia no plano constitucional em 1934, assim como a categoria jurídica "menor de idade", porém, até então, o termo "criança" ainda não aparecia nem na lei, nem na Constituição. Esta ausência perdurou na Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, a qual apenas repetiu, em seu artigo 137, alínea "k", as disposições da anterior quanto à proibição de trabalho aos menores de quatorze anos, de trabalho noturno aos menores de 16 anos e, em indústrias insalubres, aos menores de 18 anos.

No que respeita as políticas de assistência ao menor, o período do Estado Novo é caracterizado por um processo de transição institucional, onde o Serviço de Assistência a Menores (SAM), que houvera sido implantado pelo governo Vargas em 1941, exerce papel preponderante. Este órgão pretendia resgatar para a sociedade os menores "desvalidos", carentes de tutela parental, através de parcerias entre o poder público e a iniciativa privada na criação de educandários destinados a acolher crianças e jovens desamparados ou "delinquentes".

Neste processo de expansão nacional do Serviço de Assistência a Menores, Rizzini e Rizzini asseveram que:

[...] a finalidade de assistir aos "autênticos desvalidos", ou seja, àqueles sem responsáveis por suas vidas, foi desvirtuada, sendo o órgão tomado pelas relações clientelistas, pelo uso privativo de uma instituição pública. "Falsos desvalidos", cujas famílias tinham recursos, eram internados nos melhores educandários mantidos pelo Serviço, através de pistolão e corrupção. [30]

No aspecto trabalhista, a Constituição seguinte, de 1946, trouxe um avanço ao ampliar o limite etário de proibição de trabalho noturno para menores de 18 anos, e não mais de 16 anos, com nas duas anteriores, porém, suprimiu a referência feita à atenção especial à saúde da criança, prevista junto com a competência da União para legislar sobre matérias relativas à saúde, [31] acrescentando, ainda, disposições relativas à aprendizagem. [32]

Em razão dos diversos casos de corrupção que grassavam no Serviço de Assistência a Menores, sendo o principal deles a ausência de vínculo contratual dos estabelecimentos particulares que recebiam repasses per capita para cada internação, e da ineficácia de seu sistema de internação que funcionava como um mecanismo reprodutor de práticas criminais, em meados da década de 1950, as autoridades públicas passaram a defender a criação de uma nova instituição, que atendesse e superasse, a um só tempo, as exigências impostas pela doutrina de internamento implantada pelo Serviço de Assistência a Menores, fomentada pelos antigos Juizados de Menores e estimulada por pais desejosos de se verem livres da obrigação de criar seus filhos. [33]

Neste contexto é instituída a Fundação Nacional do Bem Estar do Menor - FUNABEM, cujas diretrizes foram fixadas pela Lei n.º 4.513, de 1º de dezembro de 1964, durante o governo Castelo Branco, incorporando àquela o patrimônio e as atribuições do Serviço de Assistência a Menores, porém sob um viés de valorização da dimensão familiar e comunitária do menor pelo qual, teoricamente, a internação era recomendada somente em último caso.

Essa nova estratégia político-institucional de combate à marginalização da infância, que estabeleceu as bases para a teoria da situação irregular – cuja ideologia era fundada na idéia de segurança nacional da Escola Superior de Guerra –, propugnava uma atitude reativa por parte do estado, que só atuaria nos casos em que a situação de desamparo ou de prática de delitos fosse flagrante e por meio de uma rede de atendimento correicional-repressiva que, segundo Custódio:

[...] atuava com vistas na irregularidade da condição infantil, reforçando o papel assistencialista do Estado numa prática absolutamente centralizada, com motivações ideológicas autoritárias do regime militar. A solução ao "problema do menor" era a política de contenção institucionalizada, mediante o isolamento como forma de garantir a segurança nacional e a imposição de práticas disciplinares com vistas à obtenção da obediência. [34]

Já a Constituição de 1967 e a sua Emenda Constitucional n.º 1, sem representar nenhum avanço, apresentavam, respectivamente, os seguintes dispositivos: artigos 158 e 165, proibindo o trabalho aos menores de 12 anos e o trabalho noturno e insalubre às mulheres e menores de 18 anos; artigos 170 e 178, impondo às empresas a obrigação de ministrar em cooperação a aprendizagem; e artigos 168 e 176, incisos II, prevendo a obrigatoriedade e a gratuidade do ensino nos estabelecimentos primários oficiais para todos entre sete e quatorze anos.

No plano internacional, a temática específica do trabalho infantil foi abordada na Convenção n.º 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aprovada em Genebra no ano de 1973, a qual entrou em vigor em 19 de junho de 1976, anunciando, em seu artigo 1º, a luta pela erradicação do trabalho infantil com a elevação progressiva da "idade mínima de admissão a emprego ou trabalho em um nível adequado ao pleno desenvolvimento físico e mental do jovem".

Para tanto, em seu artigo 2º, proibia o trabalho às crianças em idade escolar ou, em qualquer hipótese, aos menores de 15 anos ou, a depender de algumas circunstâncias, aos menores de 14 anos (parágrafos 3 e 4) e, em seu artigo 3º, a proibição de trabalhos insalubres para menores de 18 anos (inciso 1).

Embora a Convenção n.º 138 date do ano de 1973 e a despeito de a OIT ter pretendido, na sua implantação, obrigar os países a adotarem uma política nacional de combate ao trabalho infantil que, paulatinamente, se tornasse independente em relação aos instrumentos internacionais, no Brasil, ela teve seu texto aprovado pelo Congresso Nacional somente em 1999, pelo Decreto Legislativo n.º 179, sendo promulgada por meio do Decreto n.º 4.134, de 15 de fevereiro de 2002.

Antecedendo a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, foi promulgada a Lei n.º 6.697, em 10 de outubro de 1979, que instituía o novo Código de Menores brasileiro (e a Doutrina da Situação Irregular), o qual dispunha, em seu artigo 1º, sobre a assistência, proteção e vigilância aos menores de até dezoito anos de idade que se encontrasse em situação irregular.

Segundo o Código de Menores de 1979 (artigo 2º e incisos), os menores estariam em situação irregular nas seguintes circunstâncias: se privados de condições essenciais a sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de falta, ação ou omissão dos pais ou dos responsáveis ou da manifesta impossibilidade dos mesmos em provê-las; se vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; se em perigo moral, devido a encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes ou em razão de sua exploração em atividade contrária aos bons costumes; se privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; e se autor de infração penal.

Explicitando a retomada das antigas concepções caritativas e filantrópicas, agora também permeadas pela burocracia institucional de um Estado autoritário que via na miséria uma moléstia bacteriana a ser erradicada pelo antibiótico da repressão, Custódio refere que:

O Código de Menores de 1979 será a perfeita formatação jurídica da Doutrina da Situação Irregular, constituída a partir da Política Nacional do Bem-Estar do Menor adotada em 1964. Trouxe a concepção biopsicossocial do abandono e da infração, fortaleceu as desigualdades, o estigma e a discriminação dos meninos e meninas pobres, tratando-os como menores em situação irregular e ressaltou a cultura do trabalho, legitimando, portanto, toda ordem de exploração contra crianças e adolescentes. [35]

E é por estas vias que, guardadas as devidas peculiaridades, as medidas levadas a cabo no âmbito das políticas de assistência à infância e juventude durante a ditadura militar brasileira eram, ao mesmo tempo, reflexo e espelho do que ocorria nas outras dimensões da vida social do país.

Com efeito, a matriz ideológica repressora e centralizadora do regime militar provocou o acirramento de suas contradições. Já não resistiam mais os argumentos pretensamente legitimadores do golpe de 1964 – agitação política, desenvolvimento nacional e estabilidade econômica, eis que desde meados dos anos setenta até o início dos oitenta a economia brasileira entrara em declínio e a inflação ascendia a níveis alarmantes, assim como os canais de expressão política estavam suprimidos.

Ao analisar as premissas econômicas, sociais e políticas que levaram a sociedade a promover os movimentos pela redemocratização do país na década de oitenta, Rodrigues destaca o que ele chama de "ressurgimento da sociedade civil":

Diversos estudos já demonstraram que, durante a década de 1970, a presença de militantes de extração católica, ligados a organizações de esquerda e de sindicalistas, privados dos canais usuais de expressão por causa da repressão política, acabou contribuindo para o desenvolvimento de uma enorme rede de movimentos populares urbanos. [...] Quando iniciaram os anos 1980, a sociedade civil brasileira contava com um novo padrão organizacional, com uma densidade política diferenciada, uma disposição militante de caráter autônomo que contrastava com as vinculações populistas do período pré-1964. [36]

Neste sentido, em que pese os aspectos político-partidários do período em que foram debatidas as questões referentes ao novo paradigma legal para os direitos da criança e do adolescente, esses mesmos argumentos servem para ilustrar o contexto social e político de transição (ainda que "lenta e gradual") em que se deu o surgimento da Doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente:

É assim que a década de 1980 constitui-se o marco da afirmação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, com a inscrição na Constituição Federal dos princípios da Doutrina da Proteção Integral, superando definitivamente toda matriz autoritária do menorismo instaurado ao longo da história brasileira. No entanto, para compreensão do alcance das mudanças torna-se imprescindível compreender o universo infanto-juvenil a partir de sua realidade concreta após este período. [37]

O próximo desafio, portanto, foi e está sendo transportar as mudanças alcançadas no plano teórico e abstrato das normas, e na burocracia institucional do Estado, para o mundo real em que vivem as crianças e os adolescentes brasileiros.

Sobre o autor
Leonardo Eberhardt Rosa

Bacharelando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, campus Capão da Canoa (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Leonardo Eberhardt. Perspectiva jurídica das raízes históricas dos direitos da criança e do adolescente.: Olhando o passado para compreender o presente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2605, 19 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17209. Acesso em: 16 nov. 2024.

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