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Atuação não governamental na proteção dos patrimônios cultural e ambiental brasileiros: mais do que um direito, uma tendência

Agenda 01/06/2000 às 00:00

O primeiro indício de preocupação governamental com a preservação do patrimônio cultural brasileiro data do ano de 1742, quando o então Vice-Rei do Brasil, André de Melo e Castro, Conde de Galveias, escreveu ao Governador de Pernambuco ordenando a paralisação das obras de transformação do Palácio das Duas Torres, construído por Maurício de Nassau, em um quartel para as tropas locais, ocasião em que foi determinada a restauração do palácio.

Depois de um amadurecimento de quase dois séculos, foi instituída com a Constituição Federal de 1934 a primeira disposição legal sobre proteção ao patrimônio cultural brasileiro. Estabelecia aquela Carta, em seu art. 148, que cabia à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e artístico do País; atribuição estatal que foi reafirmada em todas as demais Constituições brasileiras.

Na atual Carta Política o Estado continua com a incumbência de promover a preservação do patrimônio histórico-cultural (art. 23, III), mas com o seu advento desapareceu a exclusividade estatal de atuação nesta área. As Normas de Quito, sobre conservação e utilização de monumentos e lugares de interesse histórico e artístico editadas em 1967, após reunião da Organização dos Estados Americanos já prenunciavam que "Do seio de cada comunidade pode e deve surgir a voz de alarme e ação vigilante e preventiva. O estímulo a agrupamentos cívicos de defesa do patrimônio, qualquer que seja sua denominação e composição, tem dado excelentes resultados, especialmente em localidades que não dispõem ainda de diretrizes urbanísticas e onde a ação protetora em nível nacional é débil ou nem sempre eficaz"(i).

Os novos tempos mostram efetivamente que o Estado, por si só, na maioria das vezes não tem condições de atuar de maneira pronta e eficaz para a satisfação de todos os anseios públicos. Daí, a nova tendência constitucional de incentivar a participação da sociedade na definição e execução de medidas que visam a melhoria da condição de vida da própria população. Ademais, é de se ressaltar que com a nova ordem constitucional a República Federativa do Brasil foi alçada à condição de Estado Democrático de Direito, que tem como uma de suas notas características a participação popular, que assume grande importância principalmente quando se trata de ações atinentes à proteção de interesses metaindividuais. O exercício do direito de voto, em escrutínio secreto, passou a não mais satisfazer totalmente o eleitor. A ausência de um conjunto de obrigações dos eleitos, previamente fixadas, fez com fosse conferido à sociedade o direito de participação contínua e mais próxima dos órgãos de decisão em matéria de direitos difusos, onde a própria comunidade, como titular, é a maior interessada(ii). Tecnicamente, esse direito é chamado de status constitucional ativo, pelo qual o cidadão recebe competências para participar do Estado, com a finalidade de formação da vontade estatal. (iii)

No que diz respeito à preservação do patrimônio cultural brasileiro, a nova Constituição foi clara ao dispor em seu art. 216, § 1º que: O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

Vê-se, pois, que com a nova Carta Magna desapareceu do ordenamento jurídico brasileiro a exclusividade de atuação estatal no que pertine à preservação do patrimônio cultural, posto que agora a participação comunitária em tais ações passou a ser um direito constitucionalmente assegurado. Essa participação nas ações de preservação do patrimônio cultural deve se dar mediante a atuação conjunta de parcelas organizadas da comunidade (associações culturais, instituições escolares etc.) (iv) com os entes federativos (União, Estados e Municípios), observada logicamente a ação fiscalizadora dos órgãos competentes (IPHAN, IBAMA etc.).

No que diz respeito especificamente aos sítios históricos e arqueológicos, na maioria das vezes além do aspecto cultural que encerram em si, se mostrará existente também o relevo paisagístico do local em que se situam, numa incindível conjugação de valores ambientais e culturais.

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Verificada a existência de interesse ambiental, maior se faz a possibilidade de atuação comunitária na preservação do bem (CF, art. 225, caput). A Declaração do Rio de Janeiro, da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, de 1992, em seu art. 10, diz: O melhor modo de tratar as questões do meio ambiente é assegurando a participação de todos os cidadãos interessados, no nível pertinente.

Como também afirmado por Alexandre Charles Kiss, o direito ambiental faz os cidadãos saírem de um estatuto passivo de beneficiários, fazendo-os partilhar da responsabilidade na gestão dos interesses da coletividade inteira. (v)

          Obedecendo a essa moderna tendência, foi criado por lei federal da década de oitenta, no município de São Raimundo Nonato (Piauí), o Parque Nacional da Serra da Capivara, com o duplo objetivo de proteger os sítios arqueológicos ali existentes, além de vastas extensões de caatinga primária que integram a paisagem onde se localizam os sítios. A administração do Parque foi entregue a uma organização não governamental: a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), criada em 1986, que atua em conjunto com o IBAMA. Foi essa, talvez, a primeira experiência brasileira no que pertine à parceria comunidade-governo na área de preservação dos patrimônios cultural e ambiental nacionais.

Outra característica do novo modelo preservacionista adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro é o mínimo de intervencionismo estatal no que diz respeito às propriedades privadas que abrigam os valores de interesse cultural e ambiental. A experiência demonstrou ao longo dos tempos que o Estado é muito mais eficiente quando atua como fiscalizador do que como proprietário ou administrador, pelo que a intervenção obtusa (como o caso de desapropriação, v.g.) em assuntos desta natureza mostra-se como a última alternativa.

A propósito, o Decreto 1.922, de 05 de junho de 1996, dispôs sobre a criação das Reservas Particulares do Patrimônio Natural, áreas de domínio privado a serem especialmente protegidas pelos seus proprietários, mediante reconhecimento e fiscalização do poder público, podendo ser utilizadas para o desenvolvimento de atividades de cunho científico, cultural, recreativo e de lazer.

Seguindo este último modelo, em Andrelândia, Sul de Minas Gerais, o Núcleo de Pesquisas Arqueológicas do Alto Rio Grande - sociedade civil sem fins lucrativos - mediante parceria com o Município, está implantando o Parque Arqueológico da Serra de Santo Antônio, que será a primeira unidade privada de conservação ambiental e arqueológica totalmente administrada por uma ONG, no Brasil.

Como se vê, o direito de participação comunitária na esfera de proteção aos patrimônios cultural e ambiental nacionais tem gerado bons frutos, e seu exercício talvez venha a se constituir na alavanca de inversão do triste quadro de abandono de tais valores em nosso país. Os cidadãos brasileiros, cada vez mais conscientes da importância de se proteger esses patrimônios, se reconhecem como seus guardiães e assumem gradativamente a responsabilidade solidária de preservá-los, impondo a si mesmos o dever de transmiti-los na plenitude de sua integridade às gerações vindouras.

Conforme escreveu com muita propriedade Jurema Kopke Eis Arnaut: "Ter consciência nacional não é mais um privilégio de poucos no Brasil. Ao contrário, é significativo hoje o número de brasileiros que, individualmente ou organizados em entidades civis, têm consciência de que somente com sua participação e consequente comprometimento com as determinações advindas do poder público será possível transformar o Brasil num país justo social, política e economicamente". (vi)


NOTAS

  1. Normas de Quito, 1967. item VIII – 2. in Cartas Patrimoniais. IPHAN, p. 136.
  2. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 7. Ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 94.
  3. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 6. Ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 461.
  4. FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 172.
  5. La mise en oeuvre du Droit de l’Environnement. Problématique er moyens. Conférence Européenne Environnement et Droits de l’Homme, Salzbourg.
  6. Caderno de Ensaios, nº 1, Memória e Educação. IBPC. Rio de Janeiro, 1992.
Sobre o autor
Marcos Paulo de Souza Miranda

Promotor de Justiça. Coordenador da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais. Especialista em Direito Ambiental. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais. Autor do livro "Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro" (Belo Horizonte: Del Rey, 2006).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Marcos Paulo Souza. Atuação não governamental na proteção dos patrimônios cultural e ambiental brasileiros: mais do que um direito, uma tendência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 42, 1 jun. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1726. Acesso em: 23 dez. 2024.

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