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Emendatio e mutatio libelli

1. Introdução:

Como resultado da tentativa de tornar o processo penal brasileiro mais ágil e consentâneo com os novos valores e princípios concebidos pela ciência processual penal nos últimos anos; e visando, particularmente, à criação de um sistema acusatório mais puro, no qual as funções de julgar, acusar e defender fossem exercidas por pessoas diferentes – e exclusivamente por elas – foram encaminhados ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo sete projetos de leis elaborados pela comissão instituída pela Portaria nº. 61/00 do Ministério da Justiça para o trabalho de reforma do Código de Processo Penal.

No mês de junho do ano de 2008 três desses projetos foram aprovados e se convolaram nas seguintes leis: Lei nº. 11.689 e 11.690, ambas de 9 de junho de 2008, e Lei nº. 11.719, de 20 de junho de 2008.

A primeira lei altera o procedimento para apuração e julgamento dos crimes submetidos ao Tribunal do Júri; a segunda altera alguns dispositivos referentes às provas; e a última altera o procedimento para apuração e julgamento dos crimes comuns e os institutos da emendatio e mutatio libelli.

Neste texto, em breves palavras, trataremos das inovações trazidas pela Lei nº 11.719/2008 no regime da emendatio e da mutatio libelli.


2. A emendatio libelli:

A emendatio libelli ocorre quando o juiz verifica que a definição jurídica dada ao fato na denúncia ou na queixa está errada, fazendo, então, a correção em sua sentença, julgando o réu conforme a definição jurídica correta, dado que a capitulação feita pelo autor da ação penal não vincula o juiz. Ocorre a emendatio libelli, por exemplo, quando a denúncia descreve fatos que se subsumem ao tipo qualificado de furto mediante fraude e, no entanto, o classifica como estelionato.

A Lei nº 11.719/2008 não trouxe alterações substanciais no instituto. Em verdade, com a nova redação apenas se explicitou uma regra que decorria da própria natureza do instituto, qual seja, a de que o juiz, ao proceder à emendatio, não deve modificar a descrição do fato contida na peça inaugural.

No mais, permaneceu como era. Tanto na redação anterior como na alterada, não há necessidade de dar-se vista às partes para se manifestarem sobre a possibilidade de se dar nova definição jurídica aos fatos narrados na peça inaugural. Registre-se, no entanto, a existência de abalizada doutrina que defende que as partes devem ser instadas a se manifestar sobre a possibilidade de nova definição jurídica dos fatos, em homenagem ao princípio da ampla defesa. Prevalece, entretanto, o entendimento de que isso não é necessário, uma vez que o réu se defende dos fatos e não de sua capitulação jurídica.


3. A mutatio libelli:

Diferentemente da emendatio, a mutatio libelli sofreu substanciais alterações com a promulgação da Lei nº 11.719/2008. Faremos uma brevíssima explicação sobre a configuração do instituto para logo em seguida tratar pontualmente cada uma das alterações.

Não raras vezes, durante a instrução processual penal, acontece de serem produzidas provas que demonstram que os fatos efetivamente ocorridos não foram exatamente aqueles descritos na petição inicial. Nesse caso, diferentemente do que ocorre na emendatio libelli, não pode o juiz, simplesmente, proferir sentença adequando-a aos fatos provados, uma vez que tal conduta conflitaria com o princípio da demanda e com o princípio da correlação entre denúncia e sentença. Nesse caso, o autor da ação penal deverá aditar a petição inicial para adequá-la aos fatos que ficaram comprovados na instrução processual. A esse aditamento é que se dá o nome de mutatio libelli.

Veremos, agora, as alterações realizadas pela Lei nº. 11.719/2008 no instituto sub examine.

3.1. A necessidade de aditamento inclusive no caso de pena igual ou inferior:

Antes da Lei nº. 11.719/2008 o aditamento da denúncia ou da queixa pelo autorsó era cabível no caso em que a nova imputação implicasse a aplicação de pena mais grave. Caso a pena fosse igual ou inferior, o aditamento seria feito pelo próprio juiz da causa. Tal situação configurava flagrante conflito com o sistema acusatório previsto na Constituição Federal [01], na medida em que permitia ao juiz, de ofício, mudar os termos da acusação, agindo, dessa maneira, como verdadeiro órgão acusador. A novel legislação, todavia, corrigiu essa distorção, prevendo que o aditamento sempre será feito pelo Ministério Público, inclusive no caso de ação penal privada subsidiária da pública.

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No caso de ação penal privada a situação permanece a mesma: não cabe, dado que essa ação é regida pelo princípio da oportunidade.

3.2. Previsão de prazo para o Ministério Público promover o aditamento:

A nova redação prevê o prazo de cinco dias para que o parquet adite a denúncia ou a queixa. Antes, não havia previsão de prazo, motivo pelo qual se aplicava analogicamente o art. 46, § 2º, CPP (três dias).

3.3. Possibilidade de aditamento oral:

A Lei nº. 11.719/2008 previu a possibilidade de o aditamento ser feito oralmente, em harmonia com a alteração no procedimento judicial penal promovida por ela própria. Embora não haja previsão, a oportunidade para tal, segundo nosso entendimento, dar-se-á no momento em que seriam cabíveis as alegações finais orais (art. 403, caput, CPP), que será substituída pelo aditamento. A partir daí, o processo seguirá o rito previsto no art. 384, § 2º, CPP.

3.4. Aplicação do art. 28, CPP:

A nova lei prevê a possibilidade de o juiz lançar mão do art. 28, CPP, caso o Ministério Público não proceda ao aditamento. Sabe-se que o art. 28, CPP, atribui ao juiz a função de fiscal do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, o que é criticado por abalizadas vozes doutrinárias, que afirmam que tal conduta não é compatível com o sistema acusatório. Inclusive, o Projeto de Lei nº. 4.209/2001 – que é um dos sete projetos de leis redigidos para a reforma do CPP, citados alhures – prevê nova redação para o art. 28 do CPP, retirando do juiz aquela função. Pela nova redação, o controle da obrigatoriedade da ação penal pública ficaria a critério do próprio Ministério Público.

Vê-se, pois, que o novo § 2º do art. 384, contraria o espírito da reforma, que visava à criação de um sistema acusatório mais puro no processo penal brasileiro, e não constava do Projeto de Lei original encaminhado pelo Poder Executivo e redigido pela comissão de juristas instituída pelo Ministério da Justiça.

3.5. Manifestação da defesa:

3.5.1. Prazo:

Antes da reforma o prazo para a defesa se manifestar sobre a mutatio variava conforme o "autor" do aditamento. Se fosse o juiz – o que, como vimos, ocorreria caso a mutatio não trouxesse a possibilidade de aplicação de pena mais grave –, o prazo seria de oito dias. Se o autor do aditamento fosse o Ministério Público, o prazo para a defesa se manifestar seria de três dias.

Agora, com a inclusão do § 2º ao art. 384, o prazo será sempre de cinco dias (mesmo porque não se admite mais o aditamento pelo magistrado).

3.5.2. Continuação da audiência e provas:

A defesa, no mesmo prazo de cinco dias para se manifestar [02], poderá indicar até três testemunhas (§ 4º do art. 384), que serão ouvidas em audiência – que será a continuação da audiência prevista no art. 400, CPP, interrompida com o aditamento do Ministério Público. O § 2º prevê também novo interrogatório do réu, inovando em relação ao procedimento anterior, que não o previa, mas que, segundo a doutrina, poderia ser realizado, caso houvesse requerimento da defesa. Entendemos cabível, outrossim, em homenagem ao princípio da ampla defesa, a produção de quaisquer outras provas pelo réu, inclusive a prova pericial.

Após a produção de provas em audiência, o § 2º prevê que se passará aos debates e, na seqüência, ao julgamento. Entendemos que o melhor teria sido prever que, após a audiência, o processo seguiria conforme os arts. 402 e 403 do CPP, trazendo, assim, a possibilidade de as partes requererem as diligências que entendessem cabíveis ou apresentarem alegações finais orais, caso não haja o requerimento de diligências ou este seja indeferido pelo juiz.

3.6. Recebimento do aditamento:

Outra inovação da Lei nº. 11.719/2008, não prevista anteriormente, foi a regra de que o aditamento do Ministério Público deve ser admitido pelo juiz (§ 2º do art. 384). Entendemos que o juízo que deverá recair sobre o aditamento deverá ser o mesmo que deve recair sobre a denúncia. Assim, para rejeitá-lo o juiz deverá observar as hipóteses previstas nos incisos do art. 395 do CPP, o qual também teve a sua redação modificada pela nova lei.

3.7. Vinculação do juiz aos termos do aditamento:

A nova lei trouxe a previsão, no § 4º do art. 384, de que o juiz, na sentença, ficará adstrito aos termos do aditamento. Interpretando-se literalmente esse dispositivo, chega-se à conclusão que o juiz deverá julgar os fatos conforme os termos do aditamento, sem levar em consideração aqueles descritos na denúncia. Assim, se, por exemplo, a denúncia narrou fatos enquadrados no tipo de furto, mas o Ministério Público aditou a denúncia, nos termos do art. 384, para pedir a condenação pelo crime de roubo, o juiz não poderia condenar o réu pelo crime de furto, pois estaria adstrito aos termos do aditamento. Nesse caso, teria de absolver o réu. O Ministério Público, se quisesse ver o réu condenado pelo crime narrado na denúncia, deveria, então, propor nova ação penal.

Com efeito, poder-se-ia pensar ser natural que o juiz estivesse mesmo adstrito aos termos do aditamento, uma vez que, conforme o § 2º do art. 384, teria admitido-o. No entanto, olvida-se que o juiz, ao admiti-lo, não está admitindo a ocorrência dos fatos ali narrados – nem poderia, pois estaria externando a sua convicção antes mesmo da manifestação da defesa –, mas, em verdade, está apenas admitindo que existe a possibilidade de os fatos terem se dado conforme descritos no aditamento. Da mesma forma como ocorre com a denúncia, o juiz, ao receber o aditamento, não está aceitando os fatos ali narrados como verdadeiros. Em verdade, o juiz, ao receber o aditamento ou a denúncia, os submete a um mero juízo de delibação, no qual se analisa a correspondência do ato com as normas legais, sem se adentrar ao seu mérito.

O caso é parecido com o da chamada denúncia alternativa, que é aquela na qual, tendo em vista a impossibilidade de se determinar quais os fatos efetivamente ocorridos, imputa-se ao réu mais de uma conduta, alternativamente, cada uma enquadrada em um tipo penal diferente [03]. Sobre esse tema, temos a Súmula nº 1 das Mesas de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, cujo teor é o seguinte: "em princípio, não se deve admitir denúncia alternativa, ainda quando houver compatibilidade lógica entre os fatos imputados, pois seu oferecimento quase sempre acarreta dificuldades ao exercício do direito de defesa". Em contrapartida, manifestando opinião contrária à da súmula, tem-se o REsp nº 399.858, no qual se admite a denúncia alternativa, por entender que ela não compromete os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Percebe-se que mesmo a súmula dos eminentes professores de direito processual penal da Universidade de São Paulo não descarta, de todo, a validade da denúncia alternativa, condicionando-a, ao que parece, à ausência de prejuízo ao direito de defesa. Logo, a questão é saber se a denúncia alternativa prejudica ou não a defesa do réu. Assim, desde que a ampla defesa e o contraditório não sejam sacrificados, a denúncia alternativa é admitida, valendo o mesmo argumento para o caso da imputação alterada pela mutatio libelli, de modo a considerar que o juiz só estará adstrito aos termos do aditamento se, não o fazendo, isto puder ocasionar prejuízo à defesa.

Tal conclusão decorre de uma interpretação conforme a constituição do art. 384, § 4º, in fine, do CPP. Com efeito, embora tantas vezes se esqueça, não é apenas a defesa que tem o direito ao devido processo legal, mas também a acusação. Sabe-se que o Estado-jurisdição, ao se substituir à autotutela dos indivíduos, está assumindo para si a responsabilidade de bem resolver os conflitos. Dessa forma, a atividade jurisdicional somente se legitima se os conflitos forem resolvidos de forma satisfatória, conforme o direito posto. Assim, considerando que o direito a uma prestação jurisdicional justa e efetiva decorre do princípio do devido processo legal, contemplado em nossa Constituição no inciso LIV do art. 5º, as normas que não forem consentâneas com esse princípio devem ou ser afastadas ou ser interpretadas de forma a não conflitar com ele.

No caso, atendida a regra do art. 384, § 4º, in fine, CPP, que determina que o juiz estará adstrito aos termos do aditamento, ainda que a não-observância da regra não causasse nenhum prejuízo à defesa, ter-se-ia uma inconstitucional violação do princípio do devido processo legal em prejuízo da acusação. Ora, da mesma forma que o réu tem o direito à ampla defesa, ao contraditório e a todos os demais princípios decorrentes do princípio-mor do devido processo legal, a acusação também tem o direito de ver o processo sendo conduzido segundo esses mesmos princípios. Assim, é despropositado, sem nenhuma razoabilidade mesmo, que o Ministério Público tenha de interpor uma nova ação penal nos mesmos termos de denúncia contida em processo, no qual, ocorrendo a mutatio libelli, o juiz, considerando-se adstrito aos termos desta, tivesse absolvido o réu das imputações que lhe foram feitas no aditamento. Ora, se o réu teve a oportunidade de se defender de ambas as imputações, qual o prejuízo para a defesa? Nenhum! Já para a acusação – e para a sociedade, em conseqüência – o prejuízo seria manifesto: ou a demora em se buscar a ressocialização de um criminoso ou a sua impunidade, pela extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva. Sem contar, ainda, o tempo que o membro do parquet e o juiz despenderiam em uma nova ação penal absolutamente desnecessária, enquanto tantas outras ações absolutamente necessárias aguardam julgamento, o que vai ao encontro dos princípios da economia processual e da duração razoável do processo.

A regra do art. 384, § 2º, in fine, CPP, parece partir da presunção de que sempre que houver aditamento a condenação pelos termos da denúncia acarretará prejuízo à defesa. Entretanto, consideramos que tal presunção não guarda relação com a realidade, pois, como já alertamos, se o réu teve a oportunidade de se defender tanto da imputação original quanto do aditamento, não há razão para que o juiz não possa condená-lo pelos fatos que lhe foram originalmente imputados na denúncia. O juiz, apenas, deve tomar a precaução de cuidar para que as alegações finais sejam oferecidas considerando-se ambas as imputações, pois, sendo essa peça indispensável, a sua ausência ou no processo, ou deficiência, torna o julgamento nulo.


4. Conclusão:

Tratamos nestas breves linhas sobre as alterações produzidas pela Lei nº. 11.719/2008 nos institutos da emendatio e mutatio libelli. Em relação à emendatio, a alteração veio apenas para melhorar a redação do artigo 383, CPP, sem, no entanto, trazer qualquer modificação substancial.

Em relação à mutatio, todavia, as mudanças foram significativas, consistindo, basicamente, na definição de regras mais claras sobre o rito e prazos a serem observados no caso de aplicação do instituto, além da tentativa de se afastar resquícios de um sistema inquisitorial, que permitia ao juiz, em certos casos, a própria iniciativa do aditamento, agindo, assim, como verdadeiro órgão de acusação.

Mostramos também que, neste particular, o legislador, pela redação dada ao art. 384, § 1º, CPP, não constante do projeto de lei original, contrariou a orientação da comissão instaurada para promover a reforma do Código de Processo Penal brasileiro, que visava a criar um sistema acusatório mais puro no Brasil, inclusive com a previsão de mudança da redação do art. 28 do CPP pelo Projeto de Lei nº. 4.209/2001, em trâmite na Câmara dos Deputados, para atribuir ao próprio órgão ministerial, e não mais ao juiz, a função de fiscal do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. Resta saber se, no momento da votação desse Projeto de Lei o Congresso Nacional irá se lembrar de alterar ou revogar o art. 384, § 1º, CPP, ou, então, manter a atual redação do art. 28 do CPP.

Por fim, analisamos, de forma crítica, a nova regra do art. 384, §4°, in fine, que prevê que o juiz, no momento de proferir a sentença, estará adstrito aos termos do aditamento. Esta, certamente, será a alteração que gerará as discussões mais acaloradas, dadas as graves conseqüências que sua observância – ou não – poderá acarretar.


Notas

  1. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2008. P. 493.
  2. A redação da lei não é clara sobre se os cinco dias para a juntada do rol de testemunhas (art. 384, § 4º) são os mesmos cinco dias para a manifestação sobre o aditamento (art. 384, § 2º). O melhor entendimento é o de que ambos os prazos se iniciam na mesma data, evitando-se, assim, dilações desnecessárias no trâmite do processo.
  3. Parece existir na doutrina e na jurisprudência certa confusão sobre a definição do que seja denúncia alternativa, nomeando-se com o mesmo termo situações diferentes, como a que imputa ao réu condutas diversas, alternativamente; e a que, embora se imputando ao réu apenas uma conduta, a ela são dadas classificações jurídicas alternativas.
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIORENZA, Fábio Henrique Rodrigues Moraes. Emendatio e mutatio libelli. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2621, 4 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17333. Acesso em: 22 dez. 2024.

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