A Emenda Constitucional n.º 66/2010 acabou com a separação judicial e/ou possibilitou o divórcio independentemente dos requisitos previstos no art. 1.580, caput e § 2º, do Código Civil? Eis seu teor:
"EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66
Dá nova redação ao § 6º do art. 226 da Constituição Federal, que dispõe sobre a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio, suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos.
Art. 1º O § 6º do art. 226 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 226. .................................................................
....................................................................................
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio." (NR)
Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação."
(Brasília, em 13 de julho de 2010).
Na hermenêutica das normas constitucionais, com mais razão há que prevalecer a interpretação literal da norma, salvo a hipótese de norma principiológica, que compreende toda uma gama de aplicações e prevalece, pelo princípio da razoabilidade e interpretação sistêmica da constituição, sobre as demais normas definidoras de direitos e obrigações e outras, meramente declaratórias, como é o caso em exame.
A razão precípua dessa limitação exegética reside na necessidade de segurança jurídica. Considerando que apenas a constituição pode excepcionar suas próprias normas, desde que a exceção decorra de preceitos da constituição primitiva, conforme elaborada pelo constituinte originário, a interpretação que deve, por excelência, ser conjugada com a literal é aquela de acordo com a própria constituição. A interpretação conforme a Constituição não é outra coisa senão uma interpretação sistêmica, sob a qual deve estar a interpretação das normas infraconstitucionais.
Mais raramente, admite-se a interpretação teleológica da norma constitucional, para que a mesma alcance os fins a que se destina.
Falar, no entanto, em interpretação conforme a vontade da norma, quando uma norma constitucional não tem desígnio em si mesma, é um disparate, convenhamos.
Falar, então, em interpretar a norma constitucional segundo a vontade do legislador, mostra-se com mais razão um contrassenso. A norma constitucional diz o que quer dizer; quanto ao que não quer dizer, se cala ("lex quod volet dixit; quod non volet tacet").
A revogação das disposições do Código Civil relativas ao divórcio só poderia ocorrer dentro das hipóteses do art. 2º da LICC.
Entretanto, não houve revogação expressa do art. 1.580, caput e § 2º, do Código Civil, pela Emenda Constitucional em exame.
Tampouco houve revogação tácita.
No caso concreto, a Emenda Constitucional n.º 66/2010 é meramente declaratória, por se limitar a exprimir que o casamento pode ser dissolvido com o divórcio.
Não há nenhuma incompatibilidade entre o Código Civil e o § 6º do art. 226 da Carta Magna, porquanto o casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, conforme dispõe o art. 1.571, § 1º, do Código Civil.
A separação judicial continuará existindo, pois apenas põe fim à sociedade conjugal. Tanto é assim, que esta pode ser restabelecida a qualquer tempo, antes do divórcio, por vontade dos cônjuges separados, qual dispõe o art. 1.577 do Código Civil e art. 46 da Lei n.º 6.515/1977.
Cogitar-se-ia, porventura, em atribuir alguma força jurígena à ementa da Emenda Constitucional n.º 66?
Jamais!
Ementas destinam-se apenas a fazer um comentário resumido sobre a norma, no mais das vezes classificando-a. Ainda que a ementa diga qual seria a finalidade da norma, não tem o condão de fazer a norma subsumir-se a ela.
Lamentavelmente, o constituinte derivado lavrou algo inútil, em sua seara legislativa. O instituto do divórcio, no direito brasileiro, continua sendo disciplinado pelo Código Civil em vigor, que em seu artigo 1.580, caput e § 2º, preceitua as três situações permissivas do divórcio: I- após decorrido 1 (um) ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial; II- após decorrido 1 (um) ano da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos; e III- no caso de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos.
Não se trata de dizer que o parágrafo 6º do art. 226 da Constituição Federal, com a redação que lhe conferiu a Emenda Constitucional n.º 66, tenha eficácia contida. O que ocorre, conforme já dito antes, é que consiste em norma meramente declaratória.
Não obstante as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, previstos no art. 5º da Carta Magna, tenham aplicação imediata à respectiva promulgação, como preceitua o § 1º do referido artigo, o Excelso Pretório entendeu que a Lei n.º 1.533/1951 foi inteiramente recepcionada pela Constituição de 1988, inclusive quanto à previsão de que o direito de requerer mandado de segurança extinguir-se-á decorridos 120 (cento e vinte) dias, contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado. A Lei n.º 12.016/2009 revogou a Lei n.º 1.533/1951, porém manteve, em seu artigo 23, tal exigência de prazo para a interposição do writ.
O único autor que insistia em tese contrária era eminente professor Nelson Nery Junior, em seu Código de Processo Civil Anotado, sob o argumento de que o art. 5º, LXIX, da Carta Política, não fez qualquer restrição de tempo para a impetração do mandado de segurança.
Nessa linha de raciocínio, não faz diferença alguma o § 6º do art. 226 da Constituição Federal, em sua redação atual, não conter a expressão "na forma da lei", eis que tratar-se-ia de um ocioso apêndice.
Destarte, reitero que o instituto do divórcio continua sendo disciplinado pela legislação civil (infraconstitucional, portanto), sendo que no caso concreto não constato o preenchimento de qualquer dos requisitos alternativos para que o pedido mediato tenha êxito.
Os argumentos favoráveis ao entendimento de que o divórcio pode, em decorrência da Emenda Constitucional n.º 66/2010, ser requerido a qualquer tempo e que o instituto da separação judicial perdeu sua razão de ser, se resume em dois enfoques.
O primeiro deles está na necessidade de uma intervenção mínima do Estado na vida privada de seus cidadãos.
O segundo reside na necessidade de desafogar o Poder Judiciário com relação a demandas em varas de família.
Não discordo da necessidade de intervenção mínima do Estado na vida privada, tampouco da necessidade de uma Justiça mais célere e eficaz. Tratar-se-ia, se assim não fosse, de se indispor com as disposições contidas nos incisos V e LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal.
O juiz, no entanto, não pode decidir de acordo com o que se mostra mais justo e adequado, segundo critérios meramente axiológicos, mas decidir conforme a norma positivada e, na lacuna da lei, aplicar as fontes subsidiárias desta, qual previstas no art. 4º da LICC e art. 126 do CPC.
A interpretação que faço do art. 226, § 6º, da Constituição Federal, com a redação decorrente da Emenda Constitucional n.º 66/2010, não pode ser outra que não a que expus anteriormente, sob pena de se abrir um precedente gravíssimo na interpretação das demais normas constitucionais lacônicas.
Caso se entenda que o divórcio possa ocorrer a qualquer tempo, será o início de toda uma rediscussão de normas constitucionais lacônicas ou meramente declaratórias, pois deixarão de sê-lo e passarão a agir efetivamente no mundo material, sem necessidade de normas infraconstitucionais.
Para que a nova redação do art. 226, § 6º, da Carta Política, tivesse o efeito pretendido pelo legislador, sua redação deveria ser:
"Art. 226. (...)
(...)
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, a qualquer tempo" (Grifei).
Ou ainda:
"Art. 226. (...)
(...)
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, independentemente de qualquer requisito" (Grifei).
Nada disso ocorreu.
A intenção do legislador foi boa. Mas como diz o adágio, "de boas intenções o inferno está cheio".
Concluo com outro ditado popular: "Tudo continua como antes no quartel de Abranches".