O Código de Trânsito Brasileiro inovou o ordenamento jurídico, prescrevendo dispositivos rígidos que revolucionaram a conduta do cidadão no trânsito. Muitos desses preceitos, no entanto, foram imbuídos de um caráter eminentemente punitivo, contrastando, essencialmente, com o escopo magno do diploma, que vislumbrava, intensamente, um código preventivo e educativo.
Com o intuito, ilusório, de dissipar, bruscamente, os desvarios dos motoristas que transgridem as regras de trânsito, o código revestiu-se de regras que atentam, manifestamente, contra os direitos dos cidadãos.
Dentre esses dispositivos que, relevam os direitos dos cidadãos, em face ao caráter arrecadatório e punitivo, encontra-se aquele que merece maior crítica e atenção, por atingir, invariavelmente, um número considerável de motoristas, e que tem tratamento diferenciado pelo código, pois possui um capítulo reservado ao mesmo, denominado "Do licenciamento". O dispositivo que abordaremos, nesse capítulo, é o que suscita maior interesse, ou seja , o art. 131, § 2º.
Os órgãos executivos de trânsito, tem exigido dos cidadãos, de forma ilegal, a prévia quitação de multas administrativamente aplicadas por infrações decorrentes da não observância das regras de trânsito, para que os mesmos possam renovar o licenciamento de seus veículos automotores, ou até mesmo efetuar a livre transferência destes.
De forma arbitrária, este pagamento exigido tem se constituído em uma condição "sine qua non". Ou o cidadão efetua o pagamento de todas as multas pendentes ou o mesmo é impedido de licenciar o seu veículo ou de até mesmo transferi-lo.
O licenciamento, no entanto, não pode ser condicionado, pois não há justificativa plausível que se refira a esse procedimento. Trata-se do cumprimento de uma obrigação por parte daquele que possui veículo automotor e que por lei, não lhe é concedido uma faculdade, mas sim uma obrigatoriedade.
O cidadão que se sentir compelido a esse condicionamento, deve exercitar plenamente o seu direito, utilizando-se de instrumentos legais, próprios, para impedir que tal atitude possa lhe causar algum prejuízo de ordem material ou moral.
Nos termos em que esse condicionamento se apresenta, o Mandado de Segurança é o instrumento legítimo que o cidadão goza, para impugnar essa atitude descabida de qualquer legalidade e idoneidade administrativa.
A Constituição Federal, no seu art. 5º, inciso LXIX, assim como a Lei regulamentar de n.º 1.533/51, dispõe sobre ilegalidade e abuso de poder.
Com base nesses argumentos, poder-se-ia perguntar: Os atos discricionários também podem ser atacados pelo instrumento do Mandado de Segurança?
A resposta é, sim. Tanto os atos discricionários quanto os atos vinculados podem ser atacados pelo mandado de segurança, pois a Carta Magna e a lei ordinária, ao aludirem a ilegalidade estão se reportando ao ato vinculado e ao se referirem a abuso de poder estão se reportando ao ato discricionário.
Destaca-se, no entanto, que com relação ao ato discricionário, não se deve levar em conta o exame do mérito, pois, quanto a isso, a competência é de inteira exclusividade do administrador. Trata-se sim, de verificar se ocorreram os pressupostos que autorizaram a edição do ato discricionário.
A prévia quitação das multas para que se faça o licenciamento do veículo, encontra intenso respaldo e argumento no próprio texto do Código de Trânsito Brasileiro, precisamente no seu art. 131, § 2º, que prescreve:
"Art. 131. O Certificado de Licenciamento Anual será expedido ao veículo licenciado, vinculado ao Certificado de Registro, no modelo e especificações estabelecidos pelo CONTRAN.
§ 2º . O veículo somente será considerado licenciado estando quitados os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas".
Antes de detalhar o dispositivo em questão, é de bom alvitre, elucidar que alguns estudiosos entendem que, a finalidade primordial do licenciamento não é arrecadar recursos para o erário, pois essa tarefa foi incumbida ao legislador, quando condicionou à quitação dos débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito para que se possa fazer o licenciamento.
Entendimento existe, no sentido de que a matéria possui disciplinamento específico no sistema jurídico vigente, mediante lei especial que é o próprio Código de Trânsito Brasileiro, diploma de natureza mista que tanto contém normas de direito material como de direito instrumental, invocando-se assim, o axioma jurídico de que a lei especial prefere a geral a induzir a aplicação obrigatória do diploma.
Sustenta-se ainda que, pelo fato de existir disposição específica, prevista em lei especial, esse diploma se revestiria de poder de coerção enquanto não fosse revogada ou, por via adequada, neutralizada, sendo assim um imperativo ao Estado observá-la, em respeito ao princípio da legalidade, pois seria uma norma cogente, que retiraria da administração a opção de não fazê-lo.
No entanto, apesar das robustas argumentações no sentido de conferir legitimidade e legalidade ao dispositivo em discussão, não há, substancialmente, qualquer, fundamentação que justifique a obstacularização ao licenciamento do veículo por parte dos órgãos executivos de trânsito.
Nesse mesmo entendimento, ainda favorável a ilegalidade da prática do ato, não se pode desprezar o fato de que o Estado dispõe de meios judiciais próprios e adequados para a cobrança das multas regularmente lançadas contra determinado veículo.
A Carta Política de 1998, consagra, como um dos primados constitucionais mais democráticos, o concernente à igualdade de todos perante a lei, donde exsurge que, para os efeitos legais, a Administração Pública e os administrados são absolutamente iguais. Assim, se os administrados estão sujeitos, para a cobrança dos créditos que, hipoteticamente, possam ter em face do Estado, ao uso das vias processuais indicadas, seria uma afronta admitir-se, em benefício da Administração, a utilização de meios coativos e impróprios para a cobrança de seus créditos.
A impropriedade do meio de cobrança da multas aplicadas, ou seja, coercitivamente, quando da renovação do licenciamento do veículo, é prática ilegal e descabida, porque nega ao impetrante o direito ao devido processo legal e a ampla defesa, confrontando-se nitidamente com o dispositivo constitucional assegurado na Carta Magna de 1988, em seu art. 5º, incisos LIV e LV. Assim, só pode ser cobrada, após o trânsito em julgado no processo judicial, sob pena de fomentar a desigualdade, perante a lei, entre o Estado e o cidadão.
Ainda que devidas a multas questionadas, ao Estado é outorgado o meio processual próprio para a respectiva cobrança: a execução fiscal.
Nesse mesmo contexto, não se pode olvidar, das multas que se encontram pendentes de julgamento, tanto na 1ª quanto na 2ª instância administrativa.
Quanto a essa situação, tentou-se ressalvar o recolhimento das multas, por intermédio da Emenda n.º 11, do Senador Valmir Campelo, publicada no Diário do Congresso Nacional, no dia 10 de maio de 1995, mas a mesma não prosperou.
Como o recurso administrativo, em matéria de trânsito, não possui efeito suspensivo, como regra, mas sim como exceção, o cidadão fica à mercê dos órgãos executivos de trânsito no que tange ao assunto. Nada mais injusto, pois o cidadão encontra-se, dessa forma, tolhido em seus direitos.
Certo é que, a autoridade de trânsito, inalteradamente, se reveste de um "poder de império" relativo que condiciona o cidadão a tomar uma atitude que melhor se adapte ao seu procedimento.
Em inúmeros casos, o cidadão se prostra perante os órgãos de trânsito, seja para evitar aborrecimentos vindouros decorrentes da pretensão via judicial, ou por desconhecimento de seus direitos, ou ainda por inviabilidade econômica. Nesse último caso, nota-se que, mesmo que o cidadão possua condições econômicas para que se faça valer do meio judicial adequado para cessar tal condicionamento, deve-se atentar ao fato de que muitas vezes, as custas processuais excedem em muito o valor pecuniário da multa, o que acaba servindo de empecilho ao cidadão na busca de seus direitos.
Esses flagrantes abusos, vem sido reiteradamente praticados pelos órgãos executivos de trânsito, que se valem desse ato ostensivamente ilegal, à luz do ordenamento jurídico, sem que nenhuma atitude se oponha a esse procedimento contumaz. É preciso ter iniciativa, pois algo precisa mudar!