Um deputado federal foi condenado pelo STF por ter cometido vários crimes previdenciários. Seria o primeiro – na história deste país - a ir para a cadeia (por ordem do STF). A mídia populista delirou: "STF condena deputado federal a 7 anos de prisão. Ele deve cumprir pena em regime semiaberto" (O Estado de S. Paulo de 28.09.10, p. A13). O mesmo jornal, em editorial (30.09.10, p. A3), escreveu: "É a primeira vez desde 1988 (...) que o STF manda um político para a cadeia". "Condenação histórica. Pela primeira vez, STF manda um político para a prisão" (O Globo de 28.09.10, p. 3). "STF manda político para a prisão pela primeira vez" (Folha de S. Paulo de 28.09.10, p. A4).
Muitos outros jornais (e jornalistas) do país, embalados pelo populismo penal, escreveram praticamente a mesma coisa ("finalmente um político vai para a cadeia"). Mas se esqueceram completamente dos privilégios! Os privilégios não contam?
Por mais estarrecedor que possa parecer, por mais que a mídia tenha transmitido ao "povão" (conhecido como opinião pública) algo que ele (ela) adora ouvir ou ler ("político vai para a cadeia"), a realidade pode ser completamente distinta da que foi divulgada pela mídia (esse cenário alternativo, aliás, que não tem nada a ver com o populismo penal, não foi explorado por ela).
É o seguinte: nos crimes tributários e previdenciários a impunidade do investigado (ou processado ou condenado) fica garantida com o simples pagamento do tributo ou da contribuição sonegada. Isso é lei no Brasil e a jurisprudência é firme. Pagou, liquidou. Isso faz parte do rol dos privilégios que só são admitidos para alguns crimes (da elite, claro).
Temos duas maneiras de reagir contra os privilégios: (a) tentando derrubá-lo (quando é injusto, absurdo, aberrante) ou (b) lutando pela sua ampliação para todos (erga omnes), quando correto. Na extinção da punibilidade pela terceira via do direito penal que é o pagamento (nos crimes tributários e previdenciários) o mal não está nessa solução (reconhecidamente) civilizada (isso é coisa de gente rica), sim, no fato de só beneficiar uma elite ("os amigos"), ou seja, de não estender esse "privilégio" para todas as pessoas que tenham cometido crimes não violentos (ricos e pobres).
Aos crimes previdenciários, assim como aos crimes tributários, é dado tratamento diverso (desigual, privilegiado: coisa de gente rica) no que tange à possível extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo ou da contribuição. Trata-se de entendimento consolidado no STF desde 2003 (HC 81.929-RJ, rel. min. Cezar Peluso). No mesmo sentido: STJ, HC 17.367-SP, rel. min. Hélio Q. Barbosa; STF, HC 85.452-SP, rel. min. Eros Grau.
Nosso legislador, que em todo momento aprova novas leis penais (cada vez mais rigorosas) contra os ladrões, sequestradores, estupradores e assassinos ("os inimigos"), quase sempre se mostra conivente e complacente com alguns crimes ou criminosos (sonegadores, corruptos etc.), favorecendo somente alguns (as elites). A evolução sócio-histórica do patronato brasileiro, que ainda prepondera no Legislativo, sinaliza que a elite política tende a se "ver" como digna de privilégios, por vezes superior à própria lei, ou merecedora de benefícios (Laura Frade).
No Brasil, a sensação que temos é a de que lutar por tratamento igualitário é coisa de pobre. Nobre (rico, elite) o que quer mesmo é tratamento especial. A pobreza política do povo brasileiro (em geral) e do legislador em particular é de dar dó (Pedro Demo).
Os agentes históricos que disputam o poder (o dinheiro público, as benesses, os privilégios, o patrimonialismo) usam as desigualdades econômicas em seu benefício, prevendo nas leis algumas regalias que só favorecem determinadas classes. "Tudo para o enriquecimento da nação e o proveito do grupo que a dirige" (Faoro).
Qual é o malefício que gera o sistema penal brasileiro atual em relação aos crimes tributários e previdenciários? É o seguinte: sabendo-se que o pagamento, em qualquer tempo, extingue a punibilidade, pode ser que o contribuinte não pague o tributo ou a contribuição e, quando descoberto, paga e tudo fica em ordem. Do ponto de vista penal, é isso mesmo. Mas não se pode esquecer que existem outros aspectos relevantes em jogo: ética, reputação, confiabilidade, honorabilidade etc.