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O Direito de superfície no Estatuto da Cidade

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Agenda 28/10/2010 às 09:59

3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

O advento da Revolução Industrial foi o ápice de um processo de mutação social para o modelo capitalista. Desde então a civilização ocidental vem presenciando profundas transformações econômicas, sociais e políticas sem precedentes.

Essa revolução implicou primeiramente na mudança no modo de produção: do agrícola para o industrial. Com isso, um grande número de transformações ocorreu, sendo de se destacar um novo arranjo populacional. As pessoas deixaram o campo, passando a viver nas proximidades dos aglomerados industriais em busca de oportunidades de trabalho. Assim são formadas as grandes cidades da Idade Contemporânea, que trouxeram consigo problemas igualmente grandes.

O adensamento populacional em áreas urbanas ocorreu de forma desordenada, provocando o surgimento de problemas estruturais como falta de saneamento básico, ausência de vias de acesso pavimentadas, transporte ineficaz e uma ocupação irregular do solo. Via de conseqüência se experimenta nos dias de hoje uma situação de déficithabitacional.

Na tentativa de disciplinar o planejamento urbano – o uso e ocupação do solo e a ordenação urbanística da atividade edilícia – desenvolveu-se o Direito Urbanístico, "ramo do Direito público que tem por objeto expor, interpretar e sistematizar as normas e princípios reguladores da atividade urbanística" [31]. Visando a dar efetividade à atividade urbanística, ao Poder Público municipal foi conferida a utilização de certos mecanismos jurídicos.

Em sede constitucional podemos destacar a possibilidade do IPTU progressivo e o mais estremado dos mecanismos: a desapropriação. Ao presente trabalho, contudo, interessa precipuamente a questão do Direito de Superfície, previsto apenas em lei ordinária, e, como meio de se a implementar o IPTU progressivo em sua modalidade extrafiscal, que por sua sistemática pode tornar inviável economicamente a propriedade que não atende à sua finalidade; sua Função Social.

Embora o Direito de Superfície seja um ramo do Direito urbanístico que tem muitos méritos, visto as particularidades que apresenta, podendo trazer benefícios para o cedente e para o cessionário, infelizmente, ainda faz parte do senso comum uma noção de propriedade contaminada pelo absolutismo, onde o proprietário poderia fazer de seu bem o que pretendesse.

Entendemos pelo exposto que para o presente estudo é importante traçarmos linhas sobre o IPTU progressivo, não o previsto no artigo 156, § 1º, I, da CF/88, que possui caráter eminentemente fiscal, mas o aventado no artigo 182, § 4º, II, do Texto Constitucional, o qual se liga estavelmente – para utilizar uma linguagem da química – ao Direito Urbanístico.

É importante a diferenciação entre as duas modalidades de IPTU progressivo, pois o primeiro surge em um contexto de política fiscal de capacidade contributiva [32]. Assim a autorização para o aumento das alíquotas surge em função de aumento na base de cálculo do tributo, o que convencionamos chamar progressividade fiscal. Na segunda modalidade, todavia, a idéia de progressividade "em função do tempo" é uma sanção pelo descumprimento da Função Social da Propriedade urbana, apresentando, portanto, caráter extrafiscal.

Interessa ao trabalho que ora se desenvolve o IPTU progressivo em sua nuança extrafiscal, já que é através dele que se torna possível a efetivação de políticas públicas urbanas. Não que o Direito de Superfície não tenha capacidade para isso de per si. Na verdade este traz muitas benesses ao proprietário do solo, como o recebimento do valor que se pode avençar e o Direito a imputar [33] a responsabilidade pelo pagamento dos tributos decorrentes da propriedade ao superficiário.

A ponderação que ora fazemos decorre da observação de que o IPTU progressivo, enquanto "medida acautelatória", será capaz de fazer os proprietários urbanos pensar muitas vezes antes de dar destinação qualquer a seus bens imóveis. Assim terrenos baldios rapidamente deixarão de ser mecanismos de especulação e criadouros de pestes urbanas para acomodar pessoas, a vocação natural de a propriedade urbana.

O IPTU progressivo extrafiscal, por óbvio, não é meio [34] tendente ao atendimento da Função Social, mesmo porque o proprietário pode se resignar e pagar tudo que o Poder Público municipal lhe impuser. Não parece muito inteligente que seja feito isso, mas nada impede que assim seja. Vemos assim que esta medida tem caráter de assegurar medidas públicas urbanas, não sendo uma política por si só. Através do IPTU progressivo o Poder Público poderá dar efetividade às políticas urbanas sem que tenha de tomar a medida da desapropriação. Além disso, poderá com esse auferir receitas, ao contrário da desapropriação, que em regra demanda dispêndio de valores, valores ou mesmo títulos públicos.

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A vantagem do Direito de Superfície quando comparado com a desapropriação encontra-se no fato de não implicar em perda de domínio pelo cedente do solo, que será utilizado pelo cessionário e desta forma cumprirá sua Função Social. Em razão de tal utilização, conseqüentemente, se cumpre a Função Social da Propriedade. Desta forma fica a salvo da medida tributária extrafiscal, de caráter real, a propriedade na qual se institui Direito de Superfície.

A propriedade não mais detém o caráter absoluto de outrora. Ao contrário, se lhe atribui uma função; uma finalidade.

Dentre as finalidades que deve ter a propriedade destacamos a produção de riquezas, que, em análise última, vem a corroborar com o desenvolvimento da coletividade. Assim é que se concebeu não mais se poder utilizar a propriedade ao bel prazer, incluindo aí a sua inutilização ou ainda a atividade meramente especulatória.

Ponderamos ainda que a propriedade de imóvel, incluído aí o urbano, deve fazer parte de um projeto maior, qual seja, adequar-se aos interesses meta-individuais do bem-estar e do interesse coletivo.

3.1 PROPRIEDADE E CAPITALISMO

Em uma sociedade capitalista como a que vivenciamos a questão da propriedade é indissociável do próprio sistema. 

O Direito de propriedade, como anuncia José Carlos Salles, "tem sido entendido de maneira diversa pelos povos, no tempo e no espaço, em razão das diferenças existentes entre os sistemas econômicos, políticos e jurídicos que adotaram" [35]. Assim a propriedade privada ora "é tida como condição indispensável ao progresso social; noutra (...) passa o Direito de propriedade a ser limitado ou até suprimido, encarado como obstáculo que emperra a produção e impede a justa distribuição da riqueza." [36]

Em nosso sistema o Direito de propriedade é resguardado, e, uma vez cumprida sua função tende a ser respeitado, a não ser que haja um interesse público maior que justifique uma medida que o contrarie. O absolutismo que já caracterizou a propriedade não mais existe em nossa sociedade.

Na Idade Antiga, precisamente em Roma, a propriedade possuía caráter absoluto [37]. Aquele que possuía o domínio do solo poderia usar, gozar, dispor e reaver a coisa, assim como não usar, não gozar e não dispor dela. Podia inclusive a abandonar à inutilidade sem que nada pudesse ser feito contra si.

Na Idade Média, "devido à acentuada intervenção do Estado na esfera patrimonial do indivíduo, o exercício do Direito de propriedade passou por profundas restrições quanto aos caracteres de exclusividade e extensão." [38] É de se destacar que as limitações vivenciadas na Idade Média em nada se assemelham ao regime da Função Social. Na verdade nessa época a propriedade privada ficava subjugada aos interesses das elites, principalmente da monarquia.

Tal realidade também foi comum na Idade Moderna. Podemos destacar que na França de Luís XIV a manutenção da nobreza era onerosa demais, pois apenas o povo, 3º estado, arcava com a manutenção da máquina real. Nesse contexto a propriedade apresentava-se cerceada em razão dos abusos da realeza, e não por uma justa ponderação de interesses e confrontamento de primazias.

Representando uma mudança radical no modelo intervencionista podemos destacar o surgimento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, como se pode ler em seu 17: "... a propriedade é um Direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indenização". Mais que isso, a propriedade foi alçada à condição de Direito Natural, como anuncia a dicção do artigo segundo da declaração em tela, onde lemos que "o fim de toda a associação política é a conservação dos Direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão".

No período que sucedeu à Revolução Francesa a caracterização da propriedade como Direito absoluto foi lugar comum, "talhada para garantir um modelo econômico e uma conseqüente necessidade prática: a de proteger o indivíduo contra o excessivo poder do Estado, permitindo-lhe o desempenho, totalmente autônomo, de sua atividade" [39].

Ocorre, todavia, que essa posição começou a não mais atender às novas demandas sociais, onde, não raras vezes, faz-se necessário ponderar os Direitos Individuais frente aos Direitos Sociais. Em muitos casos o bem jurídico a se tutelar só é definido diante do confronto de necessidades. Não que o preterimento de um em um momento o leve para uma situação de preterimento constante, mas não mais se pode falar de princípios absolutos, salvo o princípio da dignidade da pessoa humana, como se pode concluir da leitura da obra do professor Daniel Sarmento [40].

Persiste sim o Direito individual de propriedade, mas é fato que esse deve apresentar uma Função Social, por conseguinte, contribuir para a diminuição das desigualdades sociais e regionais. Essa função delimita o Direito de propriedade, condicionando-o ao atendimento dos interesses da sociedade como parte integrante do próprio conceito.

3.2 A FUNCÃO SOCIAL NO ORDENAMENTO JURIDICO BRASILEIRO

Mesmo que pela via indireta a idéia da Função Social da Propriedade passou a fazer parte da realidade legislativa brasileira com o advento da carta magna de 1934, posto que nessa se estabeleceu que a utilização da propriedade não poderia ir de encontro ao interesse social ou coletivo [41]. Na Constituição de 1946 também podemos destacar traços que remetem à idéia da Função Social, por exemplo, ao se criar a modalidade de desapropriação por interesse social.

Ainda que pudéssemos aventar a existência da Função Social nas cartas de 1934 e 46, verdade é que a Função Social, enquanto instituto autônomo, desatrelado do instituto da desapropriação, só foi mencionada expressamente pela Constituição de 1967, da qual nos parece producente colacionar a dicção do artigo 157, III, onde lemos que: "A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: III - Função Social da Propriedade." Tal como o artigo 170 [42] da carta em vigor, a de 1967 faz expressa alusão ao fato de que a propriedade deve estar ligada à idéia de Função Social, não mais se justificando de per si como quiseram os liberais revolucionários e os romanos em certas passagens.

Com a Constituição de 1988, contudo, é que se definiu o conteúdo da Função Social da Propriedade, tanto em relação à propriedade rural [43] quanto à urbana [44], esta última preocupação constante do Estatuto da Cidade.

3.3 A PROPRIEDADE URBANA E SUA FUNÇÃO SOCIAL

A necessidade de organizar o desenvolvimento urbano e diminuir o déficit habitacional é que deu azo à criação de políticas públicas. Surgiram assim normas de planejamento urbanístico, direcionadas às áreas consideradas prioritárias. Nessas áreas são impostas aos proprietários de imóveis certas obrigações, as quais acabam por imprimir um ar de significação pública.

É no diapasão descrito que a Função Social da Propriedade urbana se vincula ao conteúdo das políticas de planejamento e ordenação urbana. Algumas como fim em si mesmas, como ocorre com o regime da superfície. Noutro giro outras têm o fito de assegurar destinação legítima à propriedade, mas através de outras medidas. Funcionam na prática como medidas assecuratórias, exemplo do IPTU progressivo previsto no artigo 182, de caráter eminentemente extrafiscal.

No Brasil o problema da superlotação citadina é uma realidade. A escassez de moradia e a favelização constituem alguns dos maiores problemas enfrentados, refletindo diretamente as mazelas da miséria, agravada com o êxodo rural desordenado, sobretudo na década de 1970. Por ser este um fenômeno relativamente recente, realmente intenso há cerda de 30 anos, a questão da política urbana [45] só foi preocupação constitucional na carta de 1988. Podemos consignar assim que nesta carta se dedicou um capítulo inteiro a cuidar das pertinências urbanas, o que se justifica, já que essa constituição surgiu em um momento onde o Brasil já tinha a maior parte de sua população a morar em cidades.

Em relação ao Direito urbanístico, o Constituinte de 1988 atribuiu competências às três instâncias da Federação, o que foi bastante salutar porque a todas elas interessa obter a adequada ordenação do espaço urbano. Reservou à União Federal competência para a edição de normas gerais [46] e das diretrizes para o desenvolvimento urbano [47]. Aos Estados – incluído aí o Distrito Federal – resguardou o constituinte originário competência suplementar, conforme anuncia o artigo 24, §§ 1º e 2º.

Aos Municípios, entes da federação mais próximos da realidade dos cidadãos, a Constituição assegurou a competência legislativa urbanística, nos termos do art. 30, I. Cabe assim a estes "promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano", transcrição literal do que dispõe o artigo 30, VIII, da Constituição Federal.

Para a implantação da política instituída pelos dispositivos citados, o Constituinte conferiu ao Município instrumentos coercitivos para compelir o proprietário do solo urbano – não edificado, sub ou não utilizado – a promover o seu adequado aproveitamento. Dentre as possibilidades coercitivas podemos destacar a imposição do parcelamento ou edificação compulsórios e o IPTU progressivo. Neste último é que identificamos reais possibilidades de que o Direito de Superfície seja uma possibilidade efetiva, pois com a utilização deste deixa de ser economicamente interessante a manutenção de áreas improdutivas.

O Estatuto da Cidade "nasce em meio a grande polêmica, própria dos textos que introduzem limitações ao exercício de Direitos individuais, ensejando questionamentos acerca da constitucionalidade de vários de seus dispositivos." [48] Não se restringe a regulamentar os instrumentos instituídos pela Carta Magna, como o parcelamento e edificação compulsórios, o IPTU progressivo e a desapropriação. Dispõe também acerca do Direito de Superfície, de preempção [49] e de outorga onerosa do Direito de construir, que consiste na possibilidade de o município estabelecer determinado coeficiente de aproveitamento dos terrenos a partir do qual o Direito de construir excedente deve ser adquirido do Poder Público.

No que concerne ao IPTU progressivo de caráter extrafiscal podemos destacar que, após o estabelecimento de termos e os prazos para que o proprietário promova sua adequação à Função Social, mantendo-se este inerte, assistirá ao Poder Público Municipal prerrogativa de imposição de sanções administrativas, escalonadas e sucessivas no tempo.

Com essa medida o Poder Público tem a possibilidade de tornar economicamente inviável a propriedade urbana desviada de sua finalidade. Assim os proprietários pensarão mais vezes antes de adquirir imóveis apenas para fazer o jogo especulatório, ou mesmo deixar os bens adquiridos, no mais das vezes terrenos baldios, como verdadeiros criadouros de pragas urbanas, algo bastante comum em nossas cidades.

A progressividade do IPTU, nesse caso, far-se-á mediante a majoração anual de sua alíquota, cujo valor será fixado por lei municipal e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de 15% (art. 7º, § 1º). Assim o quantum da alíquota poderá ser dobrado até que atinja ao teto legal: 15% do valor do imóvel.

O mesmo artigo do Estatuto da Cidade determina que a progressividade poderá ser mantida por um período de cinco anos. Ainda que esse artigo fale de uma limitação, por ser o IPTU progressivo medida com natureza jurídica acautelatória, há discussão na doutrina a respeito da observância desse período.

Podemos assim destacar posicionamentos no sentido de que a exação máxima possa ser mantida até que se adimplida a obrigação, ou seja, se dê à propriedade destinação útil. Que se atenda ao postulado da propalada Função Social. Nesse sentir é o entendimento encontrado na obra de Odete Medauar e Fernando Almeida [50], que, fundamentando-se no caráter sancionatório e na função extrafiscal deste IPTU, entendem a manutenção da alíquota majorada pelo tempo do produzimeto dos efeitos pretendidos perfeitamente constitucional.

Noutro sentir é o entendimento de Maria Helena Costa [51], que, tratando dos dispositivos contidos nos §§ 1º e 2º do art. 7º, sustenta ser verdadeiramente confiscatória uma alíquota de 15%, bem como a manutenção desta por prazo superior a cinco anos.

Sobre a autora
Joana Sarmento de Matos

Juíza de Direito em Roraima. Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA. Professora licenciada de Direito Penal da FACSUM. Pós-Graduada em Direito Público pela UNIGRANRIO. Associada ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pelo Instituto Vianna Júnior.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATOS, Joana Sarmento. O Direito de superfície no Estatuto da Cidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2675, 28 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17712. Acesso em: 2 nov. 2024.

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