Com advento da Lei 11.343/06 (Lei de Tráfico de Drogas), o legislador ordinário criou a figura jurídica penal do tráfico privilegiado, prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06.
A doutrina e a jurisprudência citam os ensinamentos referentes ao homicídio privilegiado-qualificado, em que existe harmonia entre característica subjetiva do privilégio (§ 1º do art. 121), com as qualificadoras de caráter objetiva (§ 2º, inc. III do art. 121 do Código Penal).
Entre o privilégio que é benéfico ao réu e a qualificadora que é maléfica, prevalecerá a que beneficia o acusado.
Ainda o homicídio privilegiado-qualificado não consta no rol dos rotulados crimes hediondos, o que reforça inda mais a teoria.
Portanto a doutrina e a jurisprudência de forma unânime entendem que o homicídio privilegiado-qualificado, não se trata de crime hediondo.
Rogério Greco in Código Penal Comentado, pág. 249, 4ª edição, 2010, editora Impetus, nos orienta sobre o surgimento do homicídio privilegiado-qualificado:
"Majoritariamente, a doutrina, por questões de política criminal, posiciona-se favoravelmente à aplicação das minorantes ao homicídio qualificado, desde que as qualificadoras sejam de natureza objetiva, a fim de que ocorra a compatibilidade entre elas.
Dessa forma, poderia haver, por exemplo um homicídio praticado mediante emboscada (qualificadora de natureza objetiva), tendo o agente atuado impelido por um motivo de relevante valor moral (minorante de natureza subjetiva."
O Superior Tribunal de Justiça assim posicionou-se:
"A jurisprudência dos Tribunais Superiores, incluidamente do Excelso Supremo Tribunal Federal, é firme na compreensão de que as circuntâncias privilegiadoras, de natureza subjetiva, e as qualificadoras, de natureza objetiva, podem concorrer no mesmo fato-homicídio, à falta de contradição lógica." (STJ, HC 28623/PR, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, 6ª T., DJ 21/11/2005, p. 303)
Sobre a hediondez, Fernando Capez in Curso de Direito Penal, Parte Especial, vol. 2, pág. 42, 7ª edição, 2007, nos ensina:
(TJSP, RT 781/565, TJRJ, RT 804/648)"Assim, o reconhecimento do privilégio afasta a hediondez do homicídio qualificado."
"Homicídio qualificado privilegiado: Não é crime hediondo."
Eis o exemplo de Fernando Capez em relação ao homicídio privilegiado-qualificado:
(Fernando Capez in Curso de Direito Penal , Parte Especial, vol. 2, pág. 41, 7ª edição, 2007)"...pai que presencia o homicídio de sua filha e, sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a essa injusta provocação, arma uma emboscada para o homicida."
Da mesma forma que o homicídio privilegiado-qualificado não se trata de crime hediondo o trafico privilegiado não o será.
O privilégio previsto no § 4º do art. 33 da Lei de Tóxicos é incompatível com a Lei 8.072/90 pela não previsão no texto legal.
Dispões a Lei 8.072/90 sobre o tráfico de drogas:
"Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:"
Basta uma rápida leitura do art. 2º da Lei dos Crimes Hediondos para se constatar que não é previsto o tráfico privilegiado (art. 33, § 4º da Lei 11.343/06) prevendo somente o tráfico ilícito de entorpecentes.
A Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) é taxativa e não permite interpretação extensiva, não se revestindo de hediondez o tráfico privilegiado.
Dispõe o § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06:
"Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa."
O § 4º da Lei 11.343/06 prevê que o réu primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.
Ao preencher os requisitos do § 4º do art. 33 da Lei de Tóxicos o juiz monocrático de 1ª instância deve operar o decote de 1/6 a 2/3 da pena, como direito subjetivo do sentenciado, podendo chegar em 01 ano e 08 meses de reclusão.
Caso o réu preencha os requisitos e o juiz monocrático não aplique as diretrizes previstas no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06, caberá apelação criminal, para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, onde a decisão será reexaminada por três desembargadores (um relator, um revisor e um vogal) que certamente aplicarão os benefícios.
A polêmica sobre tráfico privilegiado está no fato de se tratar ou não de crime hediondo, e jamais quanto a aplicação do § 4º da Lei 11.343/06.
Muitos juízes aplicam o benefício previsto no § 4º da Lei de Tráfico de Drogas determinando como regime inicial o fechado, considerando-o crime hediondo.
Ora, para a corrente que entende que o privilégio prevalece em relação à traficância, o tráfico privilegiado não se trata de crime hediondo, sendo perfeitamente possível o regime aberto para o inicial cumprimento da pena conforme preconiza a letra "c" do § 2º do art. 33 do Código Penal, bem como o livramento condicional após o cumprimento de 1/3 da pena (art. 83, inc. I do Código Penal).
Indo mais adiante, será possível inclusive a substituição da reprimenda corporal por duas restritivas de direito, tendo-se em vista a ausência de violência ou grave ameaça aliado ao princípio constitucional da individualização da pena.
Princípio da individualização da pena: Por esse princípio, a pena deve ser individualizada nos planos legislativo, judiciário e executório, evitando-se a padronização a sanção penal. Para cada crime tem-se uma pena que varia de acordo com a personalidade do agente, o meio de execução etc. Veja art. 5º, inc. XLVI, 1ª parte, da Constituição Federal.
No Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais o tráfico privilegiado foi sustentado pela primeira vez, pelo Exmo. Sr. Dr. Alexandre Victor de Carvalho mais novo desembargador a ocupar o cargo máximo da magistratura estadual em Minas Gerais.
Eis o trecho do voto do Ilustre Desembargador Alexandre Victor de Carvalho, que assim manifestou sobre o tema, na Apel. Crim. nº 1.0024.07.488163-2/001:
"A Lei 11.343/06 criou a figura do Tráfico Privilegiado, que, tal como o homicídio privilegiado, por exemplo, não é crime equiparado a hediondo, não se aplicando a ele a restrição da Lei 8.072/90. Nesse sentido:"
"A figura mais controversa, a nosso ver, será a do . 33, § 4º, que prevê a figura do "Trafico de drogas Privilegiado", ficando uma causa de diminuição de pena de 1/6 a 2/3, quando o agente for primário de bons antecedentes e não se dedique às atividades criminosas, nem integre organização criminosa."
"Utilizamos aqui o mesmo raciocínio fixado pela jurisprudência quanto ao crime de homicídio qualificado-privilegiado não ser considerado hediondo. Embora o homicídio qualificado seja crime hediondo, a presença da figura do privilégio não foi prevista no art. 1º, I, da Lei nº 8.072/90."
Sendo assim, afastando os rigores da Lei 8.072/90, o sentenciado poderá requerer a progressão de regime após cumprir mais de 1/6 da pena, e, não 2/5 ou 3/5 conforme prevê o § 2º do art. 2º da Lei 8.072/90 com as alterações trazidas pela Lei 11.464/07, o livramento poderá ser requerido ao atingir mais de 1/3 da pena, conforme inc. I do art. 83 do Código Penal, desde que a pena seja igual ou superior a 02 anos, e conforme o caso será possível aplicação da suspensão condicional da pena ou a substituição da reprimenda corporal, mesmo com a previsão em contrário do § 4º do art. 33 e art. 44 ambos da Lei 11.343/06 (Lei de Tráfico de Drogas).
O Egrégio Tribunal de Justiça, nas vozes de seus ilusres desembargadores, reforçam a tese:
EMENTA: TÓXICO - TRÁFICO - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - CONDENAÇÃO MANTIDA - AUMENTO DO REDUTOR APLICADO PELA MINORANTE - REGIME PRISIONAL ABERTO - SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. - Mantém-se a condenação pelo delito do artigo 33 da Lei 11.343/06 se, pelo local e condições que a ação foi desenvolvida, ficou comprovado que a droga apreendida destinava-se ao tráfico. - Aumenta-se o percentual referente à minorante prevista no artigo 33, §4º, da Lei 11.343/06, pelo réu preencher todos os requisitos exigidos no dispositivo. - Reconhecida a modalidade de tráfico privilegiado afasta-se a natureza hedionda do delito, possibilitando o cumprimento inicial da pena em regime diverso do fechado e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. APELAÇÃO CRIMINAL N° 1.0702.09.633360-5/001 - COMARCA DE UBERLÂNDIA - APELANTE(S): JOÃO PAULO MAESTRI - APELADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS - RELATOR: EXMO. SR. DES. HERBERT CARNEIRO – Publicação: 23/06/2010
Prevêa súmula nº 10 do TJMG:
"A Lei 8.072/90 não veda a concessão do "sursis".
E mais:
(Embargos Declaratórios nº 1.0452.08.036164-8/002 – publicação: 24/03/2010 – Desembargador Relator Alexandre Victor de Carvalho)EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - TRÁFICO DE DROGAS - INCIDÊNCIA DO § 4º DO ART. 33 DA LEI 11.343/06 - TRÁFICO PRIVILEGIADO - REGIME ABERTO - SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA - POSSIBILIDADE - OMISSÃO E OBSCURIDADE NÃO CONFIGURADAS. Inexistindo omissão e obscuridade no acórdão embargado que aplicou o regime aberto ao tráfico privilegiado e concedeu a suspensão condicional da pena, analisando toda a matéria jurídica e fática pertinente, devem ser rejeitados os embargos de declaração.
Pois bem, tem-se que, o tráfico privilegiado, figura híbrida, em que o tráfico é prejudicial ao réu e o privilégio favorável prevalece o mais benéfico ao acusado.
Em 18/03/2010 o Ministro Ayres Britto votou pela inconstitucionalidade do art. 44 e do § 4º do art. 33 ambos da Nova Lei de Tóxicos no tocante à proibição da conversão da pena privativa de liberdade em restritivas de direito para os condenados por tráfico de drogas no HC nº 97256, numa clara ofensa ao princípio da individualização da pena.
EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR OUTRA RESTRITIVA DE DIREITOS. POSSIBILIDADE. A jurisprudência desta Corte está alinhada no sentido do cabimento da substituição da pena privativa de liberdade por outra, restritiva de direitos, nos crimes de tráfico de entorpecentes. Nesse sentido, o HC n. 93.857, Cezar Peluso, DJ de 16.10.09 e o HC n. 99.888, de que fui relator, DJ de 12.12.10. Ordem concedida.( HC 102678/MG - MINAS GERAIS - HABEAS CORPUS -
Já no dia 01/09/2010 o HC 97256 foi julgado no STF onde foi reconhecida a inconstitucionalidade dos dispositivos da nova lei de tóxicos que proíbem a conversão de pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.
A decisão do HC 97256 tem efeito apenas "inter partes", contudo será precedente para as demandas que versarem sobre o assunto.
A partir do momento que surge o tráfico privilegiado, afasta-se a hediondez do delito, sendo permitida a progressão de regime, substituição da pena e livramento condicional após o cumprimento de 1/3 da pena (inc. I do art. 83 do Código Penal Brasileiro).
Para o condenado por crime hediondo, o livramento condicional será após o cumprimento de 2/3 da pena, conforme inc. V, do art. 83 do Código Penal senão vejamos:
"Art. 83 - O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desde que:
V - cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza."
Já ao condenado por crime doloso (não hediondo), o livramento condicional será após o cumprimento de 1/3 ou ½ da pena dependendo do caso.
Em nosso estudo só nos interessa o réu primário de bons antecedentes, e que não integre organização criminosa (§ 4º da Lei 11.343/07) ficando fora o condenado reincidente em crime doloso que cumprir mais d e1/2 da pena.
Por seu turno prescreve o inc. I do art. 83 do Código Penal:
"I - cumprida mais de um terço da pena se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes;"
E o Tribunal de Justiça de Minas Gerais assim decidiu sobre o livramento condicional no tráfico privilegiado:
(Agravo de Execução nº 1.0000.08.488542-5/001 – Comarca de Divinópolis – Relator: Exmo. Sr. Des. Alexandre Vítor de Carvalho)"Ementa: Agravo de Execução – Tráfico de Drogas Privilegiado – Não se enquadra no rol dos delitos hediondos – Livramento Condicional. Estágio necessário. Mais de um terço do cumprimento da pena. O tráfico privilegiado não é delito hediondo, em que resguardo dos princípios constitucionais da legalidade, dignidade da pessoa humana, proporcionalidade e individualização as penas. Assim, o sentenciado pode obter o benefício do livramento condicional desde que cumpra mais de um terço da pena e tenha bom comportamento carcerário."
A decisão do agravo acima transcrito foi unânime, contando ainda com os votos dos Iminentes Desembargadores Maria Celeste Porto e Pedro Vergara.
Não podemos deixar de mencionar o § 4º do art. 159 do Código Penal, que traz a figura da delação premiada, causa de diminuição de pena, capaz de diminuir a reprimenda corporal de um a dois terços.
Estaremos diante de outra figura híbrida chamada de extorsão mediante seqüestro privilegiada, onde a hediondez é deixada de lado face ao privilégio?
Com certeza é outro tema polêmico, a ser tratado em outro trabalho científico.
Com a evolução doutrinária e jurisprudencial em um futuro próximo, a pecha da hediondez (Lei 8.072/90) será afastada do tráfico privilegiado como o é em relação ao homicídio privilegiado-qualificado, sendo possível estabelecer regimes iniciais mais brandos para o cumprimento da pena, bem como aplicação de pena alternativa e livramento condicional após o cumprimento de 1/3 da pena aos sentenciados.
Notas
1 - Tráfico privilegiado: a hediondez das mulas – jus navigandi – 01/2009
2 – Acórdãos TJMG
3 – STF: HC 97256
4 – Constituição Federal de 1998
5 – Definições para Princípio da Individualização da Pena: direitonet.com.br
6- Rogério Greco in Código Penal Comentado, pág. 249, 4ª edição, 2010, editora Impetus
7 - Fernando Capez in Curso de Direito Penal , Parte Especial, vol. 2, pág. 41, 7ª edição, 2007
8 -Lei 11.343/06, Lei 8.072/90