4 O PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO: O IMPLÍCITO PILAR DA AXIOLOGIA GARANTISTA
Partindo do pressuposto de que ao legislador é vedada a redação de normas maniqueístas, por propiciarem juízo de valor, observa-se que ao julgador, a consideração das mesmas e a apreciação de elementos subjetivos, que sequer podem ser comprovados ou refutados em virtude da imaterialidade e da não lesividade a qualquer bem jurídico tutelado pela norma, como a conduta interna do processado [48], restam proibidas, pois conforme magistério de Ferrajoli,
El juez […] no debe someter a indagación el alma del imputado, ni debe emitir veredictos morales sobre su persona, sino sólo investigar sus comportamientos prohibidos. Y un ciudadano puede ser juzgado, antes de ser castigado, sólo por aquello que ha hecho, y no, como en el juicio moral por aquello que es [49].
Por este viés, a teoria garantista traz a lume o princípio da secularização que, embora não esteja explicitado dentre seus axiomas, traduz-se no postulado fundamental de uma sociedade pluralista, na qual as leis devem ser elaboradas e aplicadas sob os prismas da tolerância, da igualdade substancial e da dignidade da pessoa humana, sendo inadmitida a punição de "[...] meros estados de ânimo pervertido, condições pessoais ou comportamentos imorais, perigosos ou hostis [...] [50]", eis que esses quesitos internos não integram as cláusulas do pacto social.
Desse modo, depreende-se que a essência secularizadora teve seu berço no ideal iluminista, no qual os dogmas religiosos e o ranço inquisitorial deram espaço à laicização do Estado que se comprometeu a perseguir somente ações ou omissões proibidas em busca da racionalização do controle.
Cumpre ressaltar que na Declaração Universal dos Direitos Humanos o princípio da secularização é ratificado, quando dispõe sobre o gozo de direitos e liberdades "[...] sem distinção de qualquer espécie [...] ou qualquer outra condição [51]".
Por fim, relembra Carvalho [52] que tal princípio também está contemplado na Carta Magna vigente através da combinação dos direitos fundamentais da liberdade de expressão e da manifestação do pensamento, da liberdade de consciência e de crença, da inviolabilidade do direito à intimidade e da vida privada, bem como da liberdade à convicção política ou filosófica [53], configurando-se como mecanismo crucial na limitação do arbítrio punitivo estatal.
5 A REDEFINIÇÃO GARANTISTA DOS PLANOS DAS TEORIAS DO DIREITO, DO ESTADO E DA POLÍTICA E SUA VINCULAÇÃO COM A DEMOCRACIA SUBSTANCIAL
No intuito de salvaguardar os direitos fundamentais e a democracia substancial, a teoria garantista propõe uma redefinição dos planos que repercutem na esfera penal, representados pelos planos da teoria do direito, da teoria do Estado e, por fim, da teoria política [54].
Desse modo, enquanto o primeiro centra-se na perspectiva interna do Direito, preconizando por um modelo estritamente normativo em que a revisão crítica da dicotomia entre vigência e validade revela-se imprescindível [55], observa-se que a segunda, ao preceituar por um governo sub lege e per lege [56], determina que a simples indicação de quem deve e como deve decidir, própria de um sistema de democracia política, é incapaz de legitimar o conteúdo de uma norma ou decisão. Neste sentido, para que essas sejam consideradas válidas, há de se observar regras sobre o que se deve decidir ou não, pois numa democracia substancial, não pode a maioria suprimir, decidir e sequer omitir direitos de uma minoria [57].
Diante disso, uma vez explanadas breves linhas sobre o câmbio proposto nos planos das teorias do direito e do Estado, resta apresentar alguns apontamentos acerca da redefinição da teoria política também preconizada.
Nessa linha, sob o escoro da crucial orientação da democracia substancial, a nova concepção da teoria política por Ferrajoli sustentada consiste em uma filosofia externa e ilustrada do papel do Estado, o qual, ao invés de converter-se num Estado-fim, prevalente sobre o indivíduo, deve ser comprometido com o resguardo e efetividade dos direitos fundamentais a fim de consubstanciar um verdadeiro Estado-instrumento em que a famosa equação do "Estado Liberal mínimo e Estado Social máximo" deve encontrar concretude na minimização da seara punitiva estatal e na maximização dos direitos do cidadão [58].
Por todos estes aspectos, conclui Ferrajoli que a Teoria do Garantismo Penal representa
[...] sin duda, la mayor conquista jurídica del siglo: una suerte de segunda revolución que cambia, junto con la estructura del derecho, el papel de la Ciencia jurídica, el de la Jurisdicción, la naturaleza de la Política y la propia calidad de la Democracia. […] Como consecuencia de ello, en el Estado constitucional de Derecho, el legislador ya no es omnipotente: las leyes no sólo serán válidas por su procedimiento de creación, sino por ser coherentes con los principios constitucionales. Y también dejaría de ser omnipotente la Política: también ella y la legislación («que es su producto»), quedarán subordinadas al derecho. El cambio es total: «ya no será el Derecho el que pueda ser concebido como instrumento de la política, sino que la política ha de ser asumida como instrumento para la actuación del Derecho» [59].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante o exposto, observa-se que a Teoria do Garantismo Penal, delineada sob os postulados da democracia substancial, em nada se confunde com as matizes defendidas pelo abolicionismo penal, pois enquanto este nega a legitimidade do direito penal, aquele o admite, desde que em consonância com as garantias penais e processuais penais por ele contempladas.
A par disso, explanou-se nas supracitadas páginas a axiologia de Luigi Ferrajoli, a qual invoca a responsabilidade do legislador e do julgador, sendo que ao primeiro é vedada a redação de normas maniqueístas e arbitrárias por propiciarem juízo de valor, enquanto ao segundo é defeso a consideração de normas alicerçadas em critérios subjetivos por impedirem a falseabilidade.
Ilustrou-se ainda, que o sistema garantista, como instrumento de intervenção mínima, pautado na redefinição das teorias do direito, do Estado e da política, propõe-se a conferir ao Direito Penal um modelo racional, opondo-se às políticas criminais expansionistas e extremistas, que recaem mormente sobre aqueles que se encontram à margem da sociedade.
Ademais, considerando que o objetivo crucial do processo penal é o resguardo da liberdade dos cidadãos alcançados pela teia do sistema penal, não deve o juiz, em sua nobre função de salvaguarda dos direitos fundamentais, ser reduzido a um mero aplicador da lei vigente, pois é cediço que, em meio aos interesses escusos ou de clamor público que no decorrer da história sempre permearam as legislações, a positivação de um instituto não significa, propriamente, que ele esteja conforme os valores fundamentais, aos quais é subordinado.
Porém, o aludido raciocínio parece não encontrar guarida na prática, pois o que se vê é um amontoado de decisões judiciais extremamente calcadas no legalismo infraconstitucional, de modo a cristalizar uma verdadeira aberração aos valores contidos no texto fundamental. Com efeito, Schier comenta que esse é um dos grandes problemas atuais, pois "de nada vale qualquer concepção emancipatória se continuarem os juízes a aplicar leis do século passado com a cabeça do século passado [60]", negando a força normativa da Constituição. Neste sentido, como bem ponderou Ferrajoli, "quizá la verdadera utopía no es hoy la alternativa al derecho penal, sino el derecho penal mismo y sus garantías; no el abolicionismo, sino el garantismo, de hecho inevitablemente parcial e imperfecto [61]"…
Nessas circunstâncias, resta evidente a premente necessidade de uma significativa mudança desta (ir)racionalidade inquisitorial, pois do contrário, apenas permaneceremos mudando a violência de lugar, retirando-a das ruas para perpetrá-la no sistema jurídico.
REFERÊNCIAS
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CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra, 1991.
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CARVALHO, Salo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
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______. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. Crimen y Castigo. Cuaderno del departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho - UBA, año 1, n.° 1, ed. Depalma, Buenos Aires agosto de 2001. pp.17-31.
______. O direito como sistema de garantias.In: OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades (Org.) O novo em direito e política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
HULSMAN, Louk. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 2. ed. Niterói: Luam, 1997.
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SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. 1 ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999.
STRECK, Lenio Luiz. A Jurisdição Constitucional e as possibilidades hermenêuticas de efetivação da Constituição: breve balanço crítico nos quinze anos da Constituição Brasileira. In: (RÚBIO, Davi Sanchéz; FLORES, Joaquín Herrera; CARVALHO, Salo de (org). Direitos Humanos e globalização. [recurso eletrônico] Fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. pp.341-473.
______. Tribunal do júri: símbolos & rituais. 3. ed. rev., mod. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
Notas
- STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do júri: símbolos & rituais. 3. ed. rev., mod. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 25.
- FERRAJOLI, Luigi. O direito como sistema de garantias.In: OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades (Org.) O novo em direito e política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 94.
- CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. p. 139.
- Interessante relembrar que "[...] os modelos de pureza, os padrões a serem conservados mudam de uma época para outra, de uma cultura para a outra". Desse modo, "[...] cada esquema de pureza gera sua própria sujeira e cada ordem gera seus próprios estranhos [...]". Cf. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 16-23.
- Neste sentido, invoca-se a esplêndida reflexão de Streck que, embora tenha sido motivada pela abordagem da baixa aplicabilidade das diretivas constitucionais, revela-se adequada diante dos preceitos garantistas, eis que estes, alicerçados em direitos fundamentais limitadores do poder punitivo, encontram-se mormente salvaguardados pelas constituições. Cf. STRECK, Lenio Luiz. A Jurisdição Constitucional e as possibilidades hermenêuticas de efetivação da Constituição: breve balanço crítico nos quinze anos da Constituição Brasileira. In: (RÚBIO, Davi Sanchéz; FLORES, Joaquín Herrera; CARVALHO, Salo de (org). Direitos Humanos e globalização. [recurso eletrônico] Fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. p. 348.
- STRECK, Lenio Luiz. A Jurisdição Constitucional e as possibilidades hermenêuticas de efetivação da Constituição: breve balanço crítico nos quinze anos da Constituição Brasileira. In: (RÚBIO, Davi Sanchéz; FLORES, Joaquín Herrera; CARVALHO, Salo de (org). Direitos Humanos e globalização. [recurso eletrônico] Fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. p.348.
- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001. p. 231 e ss.
- Ibid., p. 247-248.
- Impende registrar que a Criminologia da Reação Social é constituída pela Criminologia Interacionista e pela Criminologia Radical ou Crítica. Para maiores informações conferir CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 98; BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 87.
- CHRISTIE, Nils. Una sensata cantidad de delito. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004. p. 120-179.
- MATHIESEN, Thomas. The politics of abolition. London: Martin Robertson, 1974. passim.
- HULSMAN, Louk. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 2. ed. Niterói: Luam, 1997. p. 91.
- Ibid., p. 92.
- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001. p. 252.
- Ibid., p. 341.
- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001. p. 248.
- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001. 93-98.
- Ibid., p. 110-113.
- Ibid., p. 21-23.
- Ibid., p. 369.
- Ibid., p. 368.
- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001. p. 101.
- Ibid., p. 370-374.
- Ibid., p. 349-378.
- FERRAJOLI, Luigi. O direito como sistema de garantias.In: OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades (Org.) O novo em direito e política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 95-102.
- Ibid., p. 376.
- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001. p. 505-508.
- Ibid., p. 506-507.
- Ibid., p. 399-340.
- Ibid., p. 396.
- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001. p. 464-466.
- Ibid., p. 484.
- Ibid., p. 485-487.
- Ibid., p. 500.
- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001. p. 508.
- Ibid., p. 483.
- Ibid., p. 93.
- Ibid., p. 549.
- Ibid., p. 549.
- Ibid., p. 546.
- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001. p. 564.
- Ibid., p. 610-612.
- Ibid., p. 549.
- Ibid., p. 580-612.
- Ibid., p. 567.
- Ibid., p. 45-51.
- Ibid., p. 613-614.
- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001.p. 610-612.
- Ibid., p. 223.
- CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 29.
- Artigo II da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
- CARVALHO, Salo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 174.
- Art. 5º, caput e incisos IV, VI, VII, IX e X da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
- STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do júri: símbolos & rituais. 3. ed. rev., mod. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 23; CARVALHO, Salo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 96.
- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001. p. 851-853.
- Ibid., p. 855-856.
- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001. p. 853-859.
- Ibid., p. 860-865.
- FERRAJOLI, Luigi. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. Crimen y Castigo. Cuaderno del departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho - UBA, año 1, n.° 1, ed. Depalma, Buenos Aires agosto de 2001. p. 27.
- SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. 1 ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999. p. 62.
- FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001. p. 342.